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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

terça-feira, maio 15, 2012

23 ANOS DEPOIS QUE A REVISTA VEJA ZOMBOU DE CAZUZA, É ELA QUEM PARECE AGONIZAR EM PRAÇA PÚBLICA

Em um texto tão expressivo quanto poético, Luiz Cesar, do blog Brasil que Vai!, lembra a edição da revista Veja que foi às bancas há 23 anos com a foto de uma vítima da Aids que, nos termos da revista, “agonizava em praça pública”: Cazuza.

A reportagem sobre Cazuza e os atuais escândalos envolvendo a revista Veja mostram que 23 anos não bastaram para transformar o perfil da revista, que continua tão oportunista como na ocasião da reportagem. No entanto, os 23 anos e a permanência da arte de Cazuza, viva e transformada, ainda nos dias atuais, mostra que Veja estava errada.

Como diz Luiz Cesar, na ocasião a revista “zombou da doença de Cazuza e abreviou sua morte”. Agiu apenas em nome de seus interesses comerciais e viu na figura de um ídolo da época uma ótima oportunidade para denunciar os excessos de uma “juventude transviada que não hesitava em atentar contra a moral e os bons costumes”.

A aparência, “as declarações já fragilizadas pela demência cerebral que acomete os infetados pela AIDS nos estágios mais avançados da doença”, tudo foi usado pela revista para construir uma imagem “agonizante”, “decadente” de Cazuza, de modo a dizer aos leitores, principalmente jovens, eis a triste consequência da liberdade.

Defender a moral e os bons costumes de personagens como Cazuza  foi a missão a que Veja se impôs naquela reporcagem. Nada mais natural. Quem defende a moral e os bons costumes geralmente representa o que há de mais conservador na sociedade e, se há uma moral realmente válida, aqueles que muito insistem nela escondem as piores imoralidades.

Também é próprio dos pequenos, pintar os realmente grandes de forma pequena e frágil. A crítica, a lucidez, a potência da juventude nunca interessaram a revistas como a Veja. Pra resumir, Cazuza era o que Veja já não era, por isso era preciso talvez destruí-lo também pelo fato de ele tão claramente dizer em suas músicas aquilo que regava, e ainda rega, boa parte da consciência conservadora e autoritária nacional: uma piscina cheia de ratos, ideias que não correspondem aos fatos…

Mas o tempo não para e esse mesmo tempo eternizou as músicas de um ídolo que se consagrou em praça pública e continua a inspirar uma juventude igualmente transgressora que hoje resiste e luta, à sua maneira, com inteligência, contra aqueles que querem uma nação sem povo. Tempo que também fez cair as máscaras de uma revista que precisa abreviar mortes, atropelar sentimentos, inventar fatos e acobertar crimes para suprir a sua falta de ideologia.

Veja trecho do texto de Luiz Cesar:

Quando Veja matou Cazuza diante da própria mãe
Por Luiz Cesar
Completaram-se 23 anos desde que Veja zombou de Cazuza e abreviou sua morte. Mal disfarçando o intento comercial por trás do anúncio antecipado da morte de um ídolo popular, a revista foi além e o expôs como um boneco de pano pronto a ser estraçalhado em expiação às transgressões que a juventude ousa com frequência lançar contra os guardiões da ordem e da boa moral.
Entre a reportagem denegritória e a morte passou-se pouco mais de um ano. Tomaram os desabafos de um homem fragilizado pela demência cerebral que acomete os infetados pela AIDS nos estágios mais avançados da doença como confissões pecaminosas de quem haveria de confrontar-se em fim com os próprios erros.
Ao invés de oferecer ao cantor o espelho que refletisse a ordem doente de que Veja era parte com seu apoio a Collor – como depois reclamara em canção outra vítima da AIDS, Renato Russo – estamparam o retrato do castigo, para que por meio da culpa outros não ousassem apontar as piscinas cheias de ratos dos que lucram com o desespero humano.
O ídolo de uma geração que festejava com rock o fim de um tempo de opressão foi apresentado aos fãs como um ser autodestrutivo, viciado desde criança, promíscuo e de talento duvidoso. Um insano que na hora da morte impunha sua esfinge esquálida aos funcionários da gravadora, cantando noite e dia suas últimas canções a eles que temiam sua morte nas dependências do estúdio.
Na vida privada Cazuza foi apresentado por Veja como um corpo que resistia a morrer, carregado que era de um lado para o outro no colo de um empregado abnegado, a um só tempo guarda-costas e enfermeiro, pelo que insinuava uma agonia em completo abandono.
Tampouco da mãe do enfermo Veja teve comiseração. E mostrou-a como uma mulher consumida pelo pesar de sentir-se responsável pela sorte do próprio filho, a quem não soube dar os ensinamentos de que uma criança precisaria ainda antes da adolescência. (Texto completo)
*Educaçãopolítica

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