Acusada de irregularidades, USP começa a 'julgar' estudantes
Primeiros
depoimentos serão entre os dias 16 e 22. Advogados que auxiliam na
defesa dos alunos consideram inconstitucional o processo que pode
resultar na expulsão de 54 pessoas
A
administração da Universidade de São Paulo (USP) começa na próxima
quarta-feira (16) a colher o depoimento dos estudantes que ocuparam o
prédio da Reitoria em novembro de 2011 em protesto contra a presença da
Polícia Militar no campus do Butantã, zona Oeste de São Paulo, e à
detenção de três estudantes que fumavam maconha na Cidade Universitária.
Até agora, 34 alunos foram convidados a prestar esclarecimentos à
Corregedoria da USP. As primeiras inquirições ocorrem até o dia 22. No
total, 54 estudantes estão sendo processados e correm sérios riscos de
expulsão – ou, nas palavras da reitoria, eliminação – da universidade.
“Os
processos administrativos em andamento dizem respeito a ações ilícitas,
como invasão, depredação de bem público, vandalismo, supressão de
documentos, impedimento do direito de ir e vir de professores, alunos e
funcionários, entre outras”, diz a USP, por meio de sua assessoria de
imprensa, após negar-se a conversar com aRede Brasil Atual.
“Essas ações são consideradas como crimes pelo Código Penal Brasileiro.
O poder disciplinar fundamenta-se na Constituição Federal de 1988 e no
direito administrativo geral brasileiro.”
Mas
o grupo de advogados que colabora com a defesa dos estudantes tem
outros argumentos. “As acusações estão previstas no artigo 250 do
Regimento Disciplinar da USP”, esclarece o coletivo. A normativa foi
definida pelo Decreto 52.906, baixado pelo então governador-interventor
de São Paulo Laudo Natel em 27 de março de 1972, durante a ditadura
militar. Talvez por isso o documento classifique como “infração
disciplinar”, entre outras, a prática de ato atentatório à moral e aos
bons costumes, a promoção de manifestações e propaganda
político-partidária, a afixação de cartazes fora dos locais a eles
destinados ou o apoio a ausências coletivas nos trabalhos escolares.
“É
importante frisar que a Constituição Federal de 1988 estabeleceu
algumas garantias individuais, dentre elas a liberdade de manifestação e
organização política, que são naturais num Estado que se pretenda
democrático”, dizem os advogados. “Entretanto, o artigo 250 do Decreto
afronta claramente a Constituição, que é a lei maior do país. Portanto, é
incompatível com uma universidade democrática.”
Provas
O
grupo que colabora com a defesa dos estudantes explica que o único
elemento que sustenta os processos administrativos movidos pela USP – em
outras palavras, a única prova de acusação – é o Boletim de Ocorrência
lavrado pelos policiais militares em 8 de novembro de 2011, dia em que a
Tropa de Choque cumpriu ordem de reintegração de posse e retirou os
ocupantes do prédio da reitoria. “Mas o documento serve apenas para
registro do fato, não tem força probatória”, diz o coletivo. “O B.O. é
explícito ao afirmar que nenhuma conduta foi individualizada. Assim, a
atitude da universidade é contrária ao próprio boletim, que traz apenas a
acusação genérica de 'falta grave'. E o Decreto 52.906 não define o que
é 'falta grave'.”
Os
advogados lembram que um dos principais direitos do acusado num Estado
democrático é o de receber uma boa acusação, que individualize a conduta
irregular e especifique exatamente o que lhe está sendo imputado.
“Somente a partir disso é que a ampla defesa pode ser exercida em sua
plenitude. E não é isso que acontece nos processos administrativos em
curso”, explicam. “A Constituição afirma que não é possível punir alguém
sem individualizar condutas. Essa tentativa de 'imputação coletiva',
portanto, é completamente descabida do ponto de vista jurídico.”
Outra
particularidade da ação que corre na USP é a onipotência da
administração universitária em colher o depoimento dos acusados, julgar
as ações e estipular punições. “O regimento interno dá margem
indiscriminada para o aplicador da sanção: fica a seu total critério
estipular, a partir de uma falta disciplinar qualquer, qual será a pena
do acusado”, diz o grupo que auxilia na defesa dos alunos. Já que não
existem regras pré-fixadas, a reitoria poderá punir os alunos a seu bel
prazer. E a depender do ofício enviado aos estudantes em abril,
convocando-os para prestar depoimento, o processo administrativo visa à
sua “eliminação” dos quadros universitários.
Perseguição
Uma
das pessoas que receberam o documento – com a assinatura do próprio
reitor, João Grandino Rodas – foi Rafael Alves, 30, matriculado desde
2011 no curso de Letras. Rafael será um dos primeiros a depor, já na
quarta-feira. É um dos poucos que aceitam falar abertamente sobre o
caso: está convencido de que sofre perseguição política devido à sua
atuação no movimento estudantil da USP. “Já fui expulso da universidade
uma vez por participar de manifestações em defesa da moradia estudantil.
O reitor cita meu nome nas entrevistas que concede à imprensa”,
lamenta. “Por isso, quanto mais visibilidade meu caso tiver, melhor.”
O
estudante conta que não estava ocupando a reitoria no dia em que a
Cidade Universitária foi sitiada pela Tropa de Choque. “Era integrante
do movimento como membro da comissão de negociação. Estava participando
da ocupação, mas não estava dormindo lá quando a polícia chegou”,
argumenta. “Estava do lado de fora, protestando, e fui levado para o
interior do prédio pelos próprios policiais.” Rafael conta que não foi o
único: outros alunos que faziam pressão em frente à reitoria,
denunciando a ação truculenta da PM, também acabaram lá dentro. Alguns
deles eram moradores do Conjunto Residencial da USP, que fica ao lado da
reitoria, e acordaram de madrugada com as bombas e os ruídos do
helicóptero que acompanhou a operação.
“Tenho
tudo filmado. Apareço em imagens da televisão do lado de fora do
prédio, antes da entrada da polícia. Não estava cometendo crime nenhum”,
explica. “E os companheiros que estavam na reitoria dormiam quando os
policiais chegaram. Isso está no B.O., que também diz que os estudantes
foram presos em flagrante pelo crime de depredação do patrimônio
público. Como é possível, se estavam dormindo?”
Rafael
adianta que, no depoimento, terá todas as condições de provar sua
inocência, inclusive com testemunhas. “Só não sei se será suficiente”,
pondera, demonstrando total falta de confiança na isenção da comissão
designada para apreciar seu caso – três professores escolhidos pela
universidade, cujos nomes permanecem em sigilo. A lisura do processo
tampouco lhe dá esperanças. “Tendo a acreditar que o resultado será
aquele que o reitor quiser.”
Na
quarta-feira haverá uma manifestação organizada pelo movimento
estudantil para denunciar o processo administrativo e a perseguição
política na USP. A marcha começará em frente à reitoria, no campus do
Butantã, e seguirá até a sede da Procuradoria da Universidade, na rua
Alvarenga, também na zona Oeste da capital. “Queremos chamar a atenção
para o fato”, justifica Rafael. “Caso sejamos punidos com a eliminação,
que a sociedade ao menos tome conhecimento das irregularidades.”
*Cappacete
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