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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sexta-feira, maio 18, 2012

Brasil e Inglaterra frente ao poder da mídia



Venicio A. de Lima *



A Inglaterra do século 17 constitui a referência moderna obrigatória para o entendimento da liberdade de expressão republicana centrada na vita activa e no autogoverno.



A terra de John Milton e Tom Paine tem sido um dos palcos fundamentais do debate entre republicanos e liberais em torno da ideia de liberdade, ao mesmo tempo em que lá se constituíram modelos importantes de prestação do serviço público de radiodifusão (BBC), de regulamentação (OfCom) e de autorregulamentação (PCC) das atividades da mídia.

Por tudo isso, as revelações tornadas públicas originalmente pelo tradicional The Guardian, no início de 2011, de práticas “jornalísticas” criminosas desenvolvidas rotineiramente pelo tabloide News of the World, do grupo News Corporation, desencadearam reações imediatas por parte do governo britânico, de instituições privadas e de cidadãos.

Uma investigação já foi concluída na Comissão de Cultura, Mídia e Esporte da Câmara dos Comuns e seu relatório divulgado no último dia 30 de abril; pelo menos outras três ainda estão em andamento no âmbito da polícia (Weeting, Eldeven e Tutela); várias ações civis impetradas por cidadãos que se consideram vítimas de invasão de privacidade também estão tramitando. E o inquérito mais importante de todos, mandado instalar pelo primeiro-ministro com o objetivo de esclarecer “o papel da mídia e da polícia no escândalo de escutas telefônicas ilegais” (Inquérito Levison), em julho de 2011, prossegue interrogando, entre outros, jornalistas e empresários.

Uma das consequências mais concretas das denúncias até agora foi o anúncio da agência autorreguladora (PCC), em fevereiro passado, de que estava sendo descontinuada para dar lugar a outra, com poderes de interferência mais eficazes.

E no Brasil?

Nas últimas semanas os brasileiros estão tomando conhecimento de atividades criminosas entre grupos empresariais privados, políticos profissionais no exercício do mandato, setores da polícia e do Judiciário, além da aparente cumplicidade de importantes órgãos da mídia tradicional. A se confirmar, estaríamos diante de um gravíssimo desvirtuamento profissional e ético do papel da imprensa, colocada a serviço de interesses políticos e empresarias privados e criminosos.

Escutas telefônicas apontam para uma relação que vai muito além daquela admissível entre o jornalista e sua fonte. Há indícios não só de um comando da fonte criminosa sobre a pauta jornalística, mas, sobretudo, de uma cumplicidade em relação a objetivos empresariais e políticos.

Lá e cá
Ao contrário da Inglaterra, onde a denúncia sobre o News of the World se tornou pública pela ação de um veículo da grande mídia (The Guardian), aqui a primeira reação – salvo uma rede de TV (Record) e uma revista semanal (Carta Capital) de menor circulação – foi ignorar o envolvimento da mídia no escândalo. Num segundo momento, a solidariedade explícita e ameaçadora dos principais grupos privados de mídia com o grupo sob suspeita.

Uma CPMI foi instalada no Congresso Nacional, mas até agora não há indicação clara sobre a disposição de investigar o envolvimento de grupos de mídia com as ações criminosas.

No Brasil não há órgão de regulação ou de autorregulação da mídia, portanto, ações específicas nessas áreas não existem nem existirão.

Já o governo brasileiro tem revelado total inapetência para assumir o papel de protagonista em relação à regulação democrática do setor de mídia. Nem mesmo os princípios e normas da Constituição de 1988 foram regulamentados, e portanto, na sua maioria, não são cumpridos. Há décadas se anuncia um projeto de marco regulatório para o setor de comunicações que, até agora, não se materializou.

Ao contrário da Inglaterra, no Brasil não há compromisso histórico com a liberdade de expressão. Nosso liberalismo nunca foi democrático e prevalece uma interdição branca até mesmo do debate público das questões ligadas à regulação do setor de mídia. Recentemente, a bandeira da liberdade de expressão foi indevidamente apropriada pelos mesmos grupos que apoiaram o golpe de 1964, responsável pela censura oficial que vitimou, inclusive, seus próprios apoiadores por mais de duas décadas.

Aparentemente, todavia, temos algo em comum com a Inglaterra: graves desvios no comportamento de jornalistas e de seus patrões. Mas ainda não temos no Brasil nem os instrumentos institucionais, nem a vontade e a força políticas para enfrentar o poder desmesurado da grande mídia.

* é professor de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor, dentre outros, de Liberdade de Expressão vs. Liberdade de Imprensa – Direito à Comunicação e Democracia, Publisher, 2010

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