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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sexta-feira, maio 11, 2012

Da soja, da Argentina e da Zona N€uro

 

A Argentina consegue recuperar mesmo sem as receitas do Fundo Monetário Internacional? Lógico que comecem os ataques.

Um dos maiores mitos sobre a economia argentina, repetido quase todos os dias, é que o seu rápido crescimento nos últimos dez anos tem sido apenas um boom das exportações.
Por exemplo, na última semana o New York Times escrevia:
Na onda de um boom nas exportações de produtos como a soja, a economia da Argentina cresceu com uma taxa média de 7,7% de 2004 a 2010, quase o dobro em comparação com 4,3% do Chile, País que é frequentemente citado como um modelo para as políticas económicas.
Michael Shifter, provavelmente a fonte mais citada acerca da América Latina na imprensa dos Estados Unidos, escreveu um artigo sobre a Argentina com um tom bastante depreciativo, declarando que:
Se a venda e o preço da soja, as principais exportações,  permanecem altos, então o País pode continuar no caminho do crescimento económico.
É difícil encontrar um economistas que diga que o notável crescimento económico notável da Argentina nos últimos 9 anos (que levou a níveis recordes em termos de emprego e de redução da pobreza) foi impulsionado pela soja ou pelo boom das exportações. Talvez porque isso não é verdade.

Pensará o Leitor: "O que interessa?". Interessa, interessa...

O que significa um boom de mercadorias ou bens de crescimento liderado pelas exportações? Uma possível resposta poderia ser baseada na simples quantidade: a produção e a exportação desses produtos estão a crescer ao ponto de representar muito do crescimento real do País em termos de produtividade. Será a Argentina uma república fundada no feijão de soja?

Então podemos fazer as contas e observar que o crescimento real do PIB (o Produto Interno Bruto) no período 2002-2010 (este o último ano em que podemos ter dados completos) e perguntar quanto desse crescimento foi devido à exportação de bens reais.

Acontece que apenas 12% do crescimento do PIB argentino nesse período deveu-se a qualquer tipo de exportação. E acontece que apenas uma fracção daquele 12% foi devido à exportação de feijões de soja. Assim, o crescimento económico da Argentina não foi determinado pelas exportações, nem mesmo remotamente.

Depois temos a outra possível resposta, baseada nos preços das commodities: será que o custo dos feijões de soja e dos outros produtos argentinos favoreceu de forma determinante o crescimento do País? Pois o preço subiu, de facto, e este pode ter sido um estímulo para a economia, de várias maneiras, mesmo que a quantidade física de exportação não esteja a crescer tão rapidamente quanto a economia (dito de outra forma: a Argentina pode produzir sempre a mesma quantidade de commodities, mas, como os preços destas aumentaram no mercado internacional, o País ganha mais).

Se isso fosse verdade, seria de esperar que o valor em Dólares das exportações desses produtos crescesse rapidamente também, mais rapidamente do que o resto da economia. Mas não foi isso que aconteceu.

O valor das exportações agrícolas, incluindo, claro, a soja, como proporção do PIB da Argentina não aumentou: constituíam cerca de 5% do PIB em 2002, quando a economia começou a crescer, e 3,7% em 2010. Até baixou.

Em outras palavras, não há uma história plausível que, de acordo com os dados, possa apoiar a ideia de que o crescimento da Argentina nos últimos 9 anos tem sido favorecido (ou até determinado) pelo boom das exportações.

Mas porque é importante? Porque não deixar em paz os Argentinos com a soja deles?
Porque as informações viajam, dum lado até o outro do planeta: e, se bem manipuladas, podem fornecer uma imagem distorcida da realidade. E favorecer determinados pontos de vista em detrimento de outros.

Como foi observado pelo economista Paul Krugman:
Os artigos sobre a Argentina quase sempre têm um tom negativo: são irresponsáveis, querem ré-nacionalizar alguns sectores, é só populismo, na verdade estão mesmo mal.
Mas a Argentina não está mal. Longe disso.
Aliás, desde que abandonou as políticas do FMI e do Banco Mundial está bem melhor.

O mito do boom das exportações é uma das maneiras com as quais os críticos justificam o crescimento económico do país, excluindo outras hipóteses. Mas, na realidade, a expansão económica foi impulsionada pelo consumo interno e pelo investimento. E isso aconteceu porque o governo argentino tem feito mudanças particularmente importantes nas escolhas macro-económicas: política fiscal, política monetária e taxas de câmbio. Isto é o que salvou a Argentina dos anos da Depressão (1998-2002) e que transformou o País numa das economias que mais crescem nas Américas.

As políticas que estão a impor-se nas economias da Zona NEuro (especialmente nas mais vulneráveis) são muito semelhantes às que foram implementadas na Argentina durante a depressão. Essas políticas eram pró-cíclicas, no sentido de que ampliavam o impacto da recessão. Juntamente com uma taxa de câmbio fixa e sobrevalorizada (Euro...diz nada?), a economia piorou.
Só com o facto de não pagar a dívida e desvalorizar a moeda, a Argentina tornou-se livre de mudar as suas políticas macro-económicas.

Se as autoridades europeias (Comissão Europeia, o BCE e o FMI) continuarem a bloquear (conscientemente) a recuperação económica da Zona NEuro, com a tão aclamada "austeridade", alguns Países serão obrigados a considerar alternativas mais razoáveis.

A experiência da Argentina, em termos reais ao invés das representações míticas, mostra qual o caminho: desvalorização da moeda, repúdio das dívidas, investimentos.

Muitos estão apavorados na Europa: "Eh, mas se não pagarmos a dívida mais ninguém aceitará fornecer os bens dos quais precisamos, não é?".
Não, não é. A Argentina, País com 40 milhões de habitantes, fez isso e hoje tem uma economia cuja taxa de crescimento está entre as maiores no globo. E não tem nada a ver com a soja ou com os preços das mercadorias.

Na Zona NEuro, pelo contrário, perante a falta de crescimento são cortadas as possibilidades de investimento, público em primeiro lugar e privado a seguir.

Falta trabalho? Então vamos facilitar os despedimentos.
Faltam investimentos públicos? Então vamos pôr rígidos limites para as despesas do Estado.
Falta investimento privado? Então vamos aumentar as taxas.
As pessoas estão mais pobres? Então vamos cortar os serviços.

É como ver uma pessoa afogar-se perto da praia e atirar-lhe um balde cheio de água.

O que mais será preciso para entender conceitos tão básicos?


Ipse dixit.
*InformaçãoIncorrecta

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