José Alencar manda lembranças
Por: João Sicsú, no CartaCapital
O
Plano Real inaugurou, em 1994, uma nova era para o Brasil. A alta
inflação foi transformada em estabilidade monetária. Experiências bem
sucedidas, críticas aos erros do passado e a teoria econômica fomentaram
o alicerce do Plano Real, que tem origem e concepção inatacáveis. Para
debelar a hiperinflação alemã de 1923-4, o maior macroeconomista de
todos os tempos, John Maynard Keynes, fez proposta detalhada cuja teoria
e diagnóstico são encontrados, por coincidência ou não, no Plano Real.
A
execução do plano brasileiro, no entanto, não pode receber os mesmos
elogios. Devido a erros de execução e interesses, seus executores
trocaram um regime de alta inflação por um de altos juros com câmbio
valorizado. O Plano Real não promoveu o prometido alinhamento de preços
na fase anterior ao seu lançamento, no dia 1º de julho de 1994.
Posteriormente, manteve os preços retraídos se utilizando de elevados
juros que atraíam dólares para o país. Dólares que valorizavam o câmbio e
que, por sua vez, estimularam a entrada de produtos importados para
competir no mercado doméstico.
A taxa de juros
básica da economia (a taxa Selic) era mantida em patamares
estratosféricos. A equipe econômica que administrou a execução do Real
considerava que o Brasil era um país subdesenvolvido e que, portanto,
não poderia ter, ao mesmo tempo, inflação baixa e juros baixos. Houve um
economista, um dos pais do Plano Real, que durante muito tempo
propagandeou a ideia que a taxa de juros básica real de equilíbrio no
Brasil seria, no mínimo, de 10% ao ano. Ou seja, mesmo com inflação
zero, o país deveria ter uma taxa de juros básica nominal de 10% ao ano.
Por outras vias ideológicas (ou talvez pelas mesmas), os juros foram
mantidos em níveis inaceitáveis até recentemente.
Esses
juros estratosféricos foram incorporados à cultura econômica das
famílias, dos empresários, dos banqueiros, dos governantes, dos
dirigentes de fundos de pensão e de poupadores. Os empresários da
indústria nunca gostaram de juros elevados. Mas, de imediato,
descobriram caminhos para compensar as dificuldades no setor produtivo:
os ganhos gerados pelos departamentos de contabilidade de suas empresas,
que foram transformados em departamentos de estratégias financeiras e
tributárias.
Consumidores também não gostavam de
juros elevados. Mas, logo, descobriram que a melhor conta a fazer seria
saber se a prestação do crediário cabia dentro do seu salário,
independentemente da taxa de juros. Os consumidores levavam em conta,
ainda, se havia perspectiva de manutenção dos seus empregos durante o
período de pagamento dos crediários. Dirigentes de fundos de pensão
sempre saborearam juros elevados. E os banqueiros? Nem é preciso
comentar as artimanhas teóricas, ideológicas e políticas que faziam (e
fazem) para manter os juros altos no Brasil.
Para
enfrentar o regime de altos juros, o atual governo vem implementando um
amplo conjunto de medidas desde o primeiro dia de mandato da presidenta
Dilma. O governo não lançou, de uma só vez, um pacote ou plano de
medidas. Primeiramente, Dilma trocou o presidente do Banco Central. Saiu
Henrique Meirelles, um personagem ligado ao sistema financeiro privado,
por Alexandre Tombini, um técnico de carreira do Banco central. E, a
partir de 31 de agosto do ano passado deu início a um processo de
redução contínua da taxa Selic de juros.
Em
reuniões consecutivas desde agosto de 2011, o Banco Central reduziu a
taxa de juros Selic para 9% ao ano. Espera-se que haja outras quedas nas
próximas reuniões. No mês passado o governo orientou os dois maiores
bancos públicos comerciais a reduzir as taxas de juros das suas
operações de crédito. Banco do Brasil e Caixa Econômica lançaram
programas que forçaram os bancos privados a seguir o mesmo caminho.
Recentemente,
o governo lançou uma das medidas mais ousadas do seu plano de
enfrentamento dos altos juros: mudou as regras de rendimento da
poupança, que fazia parte do conjunto de barreiras que impunham rigidez à
queda dos juros. A poupança era considerada “imexível”, um valor
cultural do regime de altos juros.
A poupança
rendia 0,5% ao mês mais a TR (taxa referencial de juros, que é muito
baixa, em torno de 0,08% ao mês). As regras da poupança impunham um piso
para as demais aplicações, inclusive títulos do governo, já que a
poupança se apresenta como alternativa segura e rentável. Caso o governo
venha a reduzir ainda mais a taxa de juros Selic, que remunera os
credores da dívida pública, poderá perder demandantes de seus títulos,
que migrarão para a poupança, deixando o governo sem financiamento.
O
governo desfez essa engrenagem. Agora, quando a taxa Selic atingir 8,5%
ao ano ou menos, novos depósitos de poupança (feitos a partir de 3 de
maio) vão render 70% da taxa Selic e continuarão isentos de imposto de
renda. Sendo assim, a poupança não deslocará demandantes de títulos
públicos para as suas contas. Não transformará rentistas financeiros em
pseudo-poupadores. Poupadores desejam segurança, rentistas desejam
rentabilidade.
“Mexer na poupança” foi uma medida
muito ousada já que a oposição, os banqueiros e a mídia conservadora
estavam babando de vontade para colar em Dilma o rótulo que Collor
carrega até hoje: “mexeu na poupança”. Tiro n’água. A presidente goza de
alta popularidade e associou a mudança da poupança ao movimento de
redução das diversas taxas de juros da economia. Estratégia bem
sucedida.
O plano de redução dos juros de Dilma
merecia o nome de Plano José Alencar, o vice-presidente de Lula.
Alencar, durante os oito anos de seus mandatos, sempre fez campanha pela
redução dos juros. Era voz isolada pela imprensa e no Palácio do
Planalto, principalmente no primeiro mandato de Lula. José Alencar era
empresário e sabia que juros elevados representavam transferência de
renda, aumento de custos, redução de competitividade e desestímulo ao
investimento.
Um dia, José Alencar me
confidenciou que um parente emprestou dinheiro para ele iniciar a sua
vida de negócios com juros maiores que os do sistema bancário. Desabafou
e sorriu: “é por isso que não gosto de juros”.
Neste
momento em que o Brasil vive uma fase de busca do crescimento
continuado, da inflação controlada e dos juros baixos, José Alencar
certamente está mandando lembranças, boas lembranças. Está mandando
também luz e estímulos de coragem porque o plano de redução dos juros é
também um plano político de enfrentamento de interesses arraigados de
concentração de renda.
*Ocarcará
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