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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quinta-feira, maio 24, 2012

Nos EUA, vítimas de esterilização forçada lutam para receber indenizações


Leis estaduais permitiam a prática da eugenia até 1979 nos EUA; só Carolina do Norte planeja reparar vítimas
Southernstudies.org

Mulheres protestam contra política de esterilização nos anos 70 nos EUA; principais alvos eram negros e outras minorias

Durante 74 anos, leis que autorizavam a esterilização compulsória de pessoas consideradas "incapazes" vigoraram nos Estados Unidos. Como resultado dessas políticas de eugenia, que miravam principalmente mulheres, negros e pessoas consideradas mentalmente incapacitadas, aproximadamente 60 mil norte-americanos foram privados do direito à reprodução. Amaparados por suas famílias, os sobreviventes dessas ações lutam agora pelo direito de serem indenizadas.
Embora muitos desses Estados tenham pedido formalmente desculpas por esse capítulo de suas histórias, até hoje, apenas a Carolina do Norte tem dado passos para compensar as vítimas financeiramente. Em janeiro, um grupo de trabalho do governo estadual recomendou um valor de 50 mil dólares para cada pessoa atingida, e o governador Bev Perdue separou 10,3 milhões de dólares para cobrir o custo. Cerca de 2 mil afetados que continuam vivos podem ser beneficiados.
Ironicamente, esse Estado foi um dos principais aplicadores dessa política (cerca de 7.600 habitantes foram esterilizados entre 1929 e 1974 – muitos nem tiveram ciência de que estavam sendo submetidos a essas operações). Essas pessoas eram consideradas “deficientes mentais” e “impróprias para a reprodução”. Dentre eles, 48% eram mulheres e 40% eram negros ou índios.
A prática já era aplicada e tolrada desde o século XIX, mas foi legalizada pela primeira vez na Pensilvânia em 1905 e abolida definitivamente em 1979, com a última revogação decretada no Estado da Virgínia. A Califórnia foi, de longe, o Estado que mais executou essa medida, em 20.108 habitantes, cerca de um terço das esterilizações em todo o país. No total, 32 Estados norte-americanos adotaram essa prática durante o século XX.
Vítimas
Um dos casos mais dramáticos é o de Elaine Riddick, uma mulher negra com 60 anos. Ela testemunhou ao site Mother Jones que, em 1968, quando era apenas uma adolescente de 14, foi estuprada e engravidada por um vizinho. A comissão estadual de eugenia a declarou “intelectualmente débil” e “promíscua”. E, assim que deu à luz a seu único filho, foi esterilizada pelos médicos. Por ser menor de idade, era necessária uma permissão dos parentes. Coube à sua avó analfabeta assinar a permissão com um “X”. Para Tony, filho de Elaine, é como se ela tivesse sofrido um segundo estupro, só que cometido pelo Estado.
Uma das últimas vítimas foi Janice Black, também negra, e residente de Charlotte. Quando ela era adolescente, sua família decidiu que ela não deveria ter filhos, e assistentes sociais ligados a ela a classificaram como “intelectualmente débil”. Em 1971, Janice só sabia assinar seu nome, e aceitou ser operada. Atualmente, ela trabalha na limpeza de equipamentos no mesmo hospital em que sua meio-irmã a levou para ser esterilizada, há 40 anos. “Sinto que não fui tratada honestamente, como se não fosse um ser humano”, protesta ao site.
Charles Holt, branco, recebeu contra sua vontade uma vasectomia em 1968, enquanto vivia, ainda adolescente, em um abrigo do Estado para pessoas com problemas emocionais – devido ao julgamento feito por um assistente social. A comissão de eugenia o liberou quando ele fez 19 anos, logo depois que ele foi esterilizado. Seus pais concordaram como procedimento, mas Holt só soube anos depois que foi submetido à operação. “O médico disse que eu poderia voltar para a casa se eu fizesse uma operação”, afirmou, sem que tenham dito a verdadeira finalidade.
Um ano depois, ele se apaixonou e começou a ter planos para formar uma família, quando descobriu que era estéril. Entrou em depressão e sofreu de alcoolismo. Só se recuperou após ajudar a criar três crianças. Anos depois, ganhou deles oito netos. “Ele teria sido um pai (biológico) formidável, seus filhos teriam disciplina e educação. Ele sabe e sempre soube tomar conta de crianças: troca fraldas, cozinha, limpa e, mais importante, sabe amar”, diz Melissa Hyatt, uma de suas filhas adotadas.
Para ela, cada vítima mereceria pelo menos um milhão de dólares, já que cada um recebeu uma sentença perpétua. “Não ficaram 20 anos atrás das grades, mas sofreram cicatrizes mentais e emocionais pagando por algo que eles nunca fizeram”, protesta.
*Com informações do site Mother Jones.
*GilsonSampaio 

A GUERRA CONTRA OS FRACOS NASCEU NOS EUA


Os Estados Unidos são tidos como um dos países onde a democracia nasceu e criou raízes. Isso é verdade, mas frequentemente se esquece que essa mesma democracia, que garantiu as liberdades individuais e civis, tinha aspectos oligárquicos. Tanto que o país conviveu com a escravidão por quase cem anos e depois disso com uma política de apartheid nos estados sulistas que duraria até os anos 1960 do século passado. 

Mas há uma coisa que poucos sabem: durante 74 anos, a democracia americana tinha leis que autorizavam a esterilização compulsória de pessoas consideradas “incapazes” ou “inferiores” – fossem negros, deficientes mentais ou mulheres. A isso se dá o nome de eugenia, prática de “purificação racial” hoje condenada e que normalmente é associada ao nazismo, mas que nasceu na Inglaterra e foi aplicada nos EUA e – pasmem! – na Suécia. Nos EUA, cerca de 60 mil cidadãos americanos foram esterilizados entre 1929 e 1979 e muitos sequer foram informados de que estavam sendo submetidos a essas operações. Entre eles, 48% eram mulheres e 40% negros ou indígenas. A progressista Califórnia foi o estado que mais adotou essa medida, esterilizando cerca de 20 mil – um terço do total.  

Em 2004 fiz uma resenha para a IstoÉ de um livro, A Guerra contra os Fracos, de Edwin Black, que retrata essa tragédia 

As raízes do Holocausto 
Adolf Hitler copiou de eugenistas americanos política que eliminava "raças inferiores" 

Cláudio Camargo

Algumas palavras ficaram tão associadas a crimes aberrantes que simplesmente desapareceram do vocabulário corrente. É o caso da “eugenia” ou “higiene racial”, um movimento racista e pseudocientífico surgido no início do século XX que classificava as pessoas segundo a hereditariedade, esterilizando os “incapazes” (doentes mentais, epilépticos, alcoólatras, criminosos comuns, deficientes visuais, pobres, mas também negros, judeus, poloneses...) com o objetivo de preservar e ampliar a “raça superior”, branca e nórdica. Embora tenha sido aplicada em escala industrial e genocida apenas na Alemanha nazista, a eugenia tomou corpo e ganhou forma e robustez nos EUA. Os epígonos de Hitler apenas copiaram e universalizaram o modelo. Essa incrível história, pouco conhecida, é contada agora, num minucioso relato, em A guerra contra os fracos – a eugenia e a campanha norte-americana para criar uma raça superior, do jornalista americano Edwin Black. 

Nos domínios de Tio Sam, berço da democracia moderna, a eliminação de grupos étnicos indesejáveis não foi perpetrada por sinistras tropas de assalto, como no III Reich, mas por “respeitados professores, universidades de elite, ricos industriais e funcionários do governo”. Criada na Inglaterra no século XIX pelo matemático Francis J. Galton, a eugenia (composta do grego “bem nascido”) atravessou o oceano e encontrou campo fértil em terras americanas. Sob a batuta do zoólogo Charles Davenport, o movimento eugenista obteve apoio de instituições renomadas, como a Carnagie Institution – que montou a primeira empresa de eugenia em Long Island –, da Fundação Rockefeller e de uma plêiade de acadêmicos, políticos e intelectuais. 

O movimento cativou tanto a elite americana da época que, a partir de 1924, leis que impunham a esterilização compulsória foram promulgadas em 27 Estados americanos, para impedir que determinados grupos tivessem descendentes. Uma vasta legislação proibindo ou restringindo casamentos também foi criada para barrar a miscigenação. Confrontada com tamanha violação dos princípios da Constituição americana, a Suprema Corte deu sua bênção à eliminação dos mais fracos. “Em vez de esperar para executar descendentes degenerados por crimes, a sociedade deve se prevenir contra aqueles que são manifestadamente incapazes de procriar sua espécie”, disse o juiz Oliver Wendell. Entre os anos 1920 e 1960 pelo menos 70 mil americanos foram esterilizados compulsoriamente – a maioria mulheres.
 
Edwin Black, que ficou famoso em 2001 com o best-seller A IBM e o Holocausto, lembra que a cruzada eugenista de Tio Sam não foi apenas um crime doméstico. “Os esforços americanos para criar uma superraça nórdica chamaram a atenção de Hitler.” Antes da guerra, os nazistas praticaram a eugenia com total aprovação dos cruzados eugenistas americanos. Não sem uma ponta de inveja, claro: “Hitler está nos vencendo em nosso próprio jogo”, declarou em 1934 Joseph DeJarnette, superintendente do Western State Hospital, da Virgínia. 

Desmascarado pelo genocídio hitlerista, o antes arrogante movimento eugenista baixou a guarda. Mesmo assim, entre 1972 e 1976, hospitais de quatro cidades esterilizaram 3.406 mulheres e 142 homens. Muitas mulheres pobres foram ameaçadas com a perda de benefícios sociais ou mesmo a guarda dos filhos. 

Condenada pela comunidade acadêmica em 1977, a eugenia escondeu o rosto e buscou refúgio nos cromossomos da engenharia genética. Mas, assim como no passado a eugenia contaminou causas sociais, médicas e educacionais importantes, hoje ela pode inocular o vírus da intolerância em projetos científicos fundamentais, como o genoma e o processo de clonagem para fins terapêuticos. Afinal, é sabido que, ao brincar de Deus, o homem costuma fazer a obra do diabo. 



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