Páginas

Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quinta-feira, maio 24, 2012

Nunca esqueça: a questão é Bradley Manning, não o casamento gay

John Pilger
Na semana em que Barack Obama recebeu o Prémio Nobel da Paz, em 2009, ele ordenou ataques de bombardeamento sobre o Iémen, matando um número confirmado de 63 pessoas, 28 das quais crianças. Quando Obama anunciou recentemente que apoiava o casamento do mesmo sexo, aviões americanos estraçalhavam 14 civis afegãos. Em ambos os casos, o assassínio em massa não era novidade. O que importava eram as cínicas vacuidades de uma celebridade política, produto de um espírito de época conduzido pelas forças do consumismo e dos media com o objectivo de desviar a luta pela justiça social e económica.
A concessão do Prémio Nobel ao primeiro presidente negro por ele "oferecer esperança" era tanto absurda como uma expressão autêntica do estilo liberal que controla grande parte do debate político no ocidente. O casamento entre o mesmo sexo é uma de tais distracções. Nenhuma "questão" desvia a atenção com tanto êxito como esta: não o voto livre no Parlamento sobre a redução de idade de consentimento gay promovido pelo conhecido libertário e criminoso de guerra Tony Blair; nem as fendas em "telhados de vidro" que em nada contribuem para a libertação das mulheres e simplesmente ampliam as exigências do privilégio burguês.
Obstáculos legais não deveriam impedir pessoas de se casarem umas com as outras, pouco importando o género. Mas isto é um assunto civil e privado; a aceitabilidade burguesa ainda não é um direito humano. Os direitos associados historicamente com o casamento são os da propriedade: o próprio capitalismo. Elevar o "direito" de casamento acima do direito à vida e à justiça real é tão sacrílego como procurar aliados entre aqueles que negam a vida e a justiça a muitos, desde o Afeganistão até a Palestina.
CONVERSÃO DAMASCENA
Em 9 de Maio, horas antes da sua damascena declaração sobre casamento do mesmo sexo, Obama enviou mensagens a doadores da campanha tornando clara a sua nova posição. Ele pedia dinheiro. Em resposta, segundo o Washington Post, sua campanha recebeu um "fluxo maciço de contribuições". Na noite seguinte, com os noticiários agora dominados pela sua "conversão", ele compareceu a uma festa de levantamento de fundos na casa de Los Angeles do actor George Clooney. "Hollywood", relatou a Associated Press, "é o lar para alguns dos mais famosos apoiantes do casamento gay e os 150 doadores que estavam a pagar US$40 mil para comparecer ao jantar de Cloooney sem dúvida sentir-se-ão estimulados pelo anúncio decisivo de Obama no dia anterior". Espera-se que a festa de Clooney arrecade um recorde de US$15 milhões para a reeleição de Obama e será seguida por "mais outra festa para levantamento de fundos em Nova York patrocinada pelos apoiantes gay e latinos de Obama".
A espessura de um papel de cigarro separa os partidos Democrata e Republicano sobre políticas económica e externa. Ambos representam os super ricos e o empobrecimento de uma nação da qual milhões de milhões de dólares do fisco foram transferidos para uma indústria de guerra permanente e para bancos que são pouco mais do que empresas criminosas. Obama é tão reaccionário e violento quanto George W. Bush e sob certos aspectos é até pior. A sua especialidade pessoal é utilizar os drones Hellfire armados com mísseis contra pessoas indefesas. Sob a cobertura de uma retirada parcial de tropas do Afeganistão, ele enviou forças especiais dos EUA para 120 países onde são treinados esquadrões da morte. Ele ressuscitou a velha guerra fria em duas frentes: contra a China na Ásia e com um "escudo" de mísseis destinados à Rússia. O primeiro presidente negro presidiu o encarceramento e vigilância do maior número de pessoas negras do que os que estavam escravizados em 1850. Ele tem perseguido mais denunciantes – que contavam a verdade – do que qualquer dos seus antecessores. O seu vice-presidente, Joe Biden, um ardente belicista, chamou o editor da WikiLeaks, Julian Assange, de "terrorista hi-tech". Biden também se converteu à causa do casamento gay.
BRADLEY MANNING
Um dos verdadeiros heróis da América é o soldado gay Bradley Manning , o denunciante que alegadamente proporcionou à WikiLeaks gigantesca quantidade de provas da carnificina americana no Iraque e no Afeganistão. Foi a administração Obama que caluniou a sua homossexualidade como anormal e foi o próprio Obama quem declarou como culpado um homem não condenado por qualquer crime.
Quem entre os bajuladores e actores na festa do dinheiro de Clooney, em Hollywood, gritou: "Recordem Bradley Manning"? Que eu saiba, nenhum eminente porta-voz dos direitos dos gay manifestou-se contra a hipocrisia de Obama e Biden que afirmam apoiar o casamento do mesmo sexo enquanto aterrorizam um homem gay cuja coragem deveria ser uma inspiração para todos, pouco importando as preferências sexuais.
O feito histórico de Obama como presidente dos Estados Unidos foi silenciar o movimento anti-guerra por justiça social associado ao Partido Democrata. Tal deferência para com um extremismo oculto e corporificado num astuto operador amoral trai a rica tradição de protesto popular nos EUA. Talvez o movimento Occupy siga, como dizem, esta tradição, talvez não.
A verdade é que aquilo que importa para os que aspiram controlar nossas vidas não é o pigmento da pelo ou o género, ou se somos gay ou não, mas a classe a que servimos. Os objectivos são assegurar que olhemos para dentro de nós mesmos, não para fora, os outros, e que colaboremos no isolamento daqueles que resistem. Este desgaste de criminalizar, brutalizar e banir o protesto também pode facilmente transformar as democracias ocidentais em estados de terror.
Dia 12 de Maio, em Sydney, Austrália, terra da Terça-feira Gorda de Carnaval dos Gay e Lésbicas, um desfile de protesto em apoio do casamento gay encheu o centro da cidade. A polícia olhou-o benevolentemente. Era uma vitrina de liberalismo. Três dias depois, houve uma marcha para assinalar a Nakba ("A Catástrofe"), o dia de luto em que Israel expulsou palestinos da sua terra. Mas uma proibição policial tinha de ser anulada pelo Tribunal Supremo.
Esta é a razão porque o povo da Grécia deve ser a nossa inspiração. Pela sua própria experiência penosa eles sabem que a sua liberdade só pode ser recuperada enfrentando, o Banco Central alemão, o Fundo Monetário Internacional e os seus próprios quislings em Atenas. Povos por toda a América Latina alcançaram isto: os indignados da Bolívia que despediram os privatizadores da água e os argentinos que disseram ao FMI o que fazer com a sua dívida. A coragem de desobedecer foi a sua arma. Recordem Bradley Manning.
16/Maio/2012
O original encontra-se em johnpilger.com/...
*GilsonSampaio

Nenhum comentário:

Postar um comentário