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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quarta-feira, maio 16, 2012

Uma CPI de pernas curtas com sintomas de anencefalia

Interferência direta do STF revela a falácia de independência entre os poderes da República
"A impunidade é segura, quando a cumplicidade é geral."Marquês de Maricá
Extraído do blog Brasil da Corrupção
Anote aí: essa CPI do Cachoeira tem todos os sintomas de um feto anencefálico que não resistirá à luz do dia. Que o diga o egrégio senador Pedro Simon, que jogou no lixo da esclerose a aura de vestal dos bons costumes ao escrevinhar no GLOBO (o que não é sua praia) a defesa prévia de intocáveis – o procurador geral e jornalistas que devem explicações como qualquer mortal – revestindo seus argumentos inusitados do verniz da boa intenção e até de epítetos axiomáticos.
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Da sua lavra saiu a mesma fumaça da cortina que encobre o processo de cerceamento dos trabalhos de uma investigação parlamentar que se aceita como uma balela. Qualquer passo fora do acordado será estigmatizado com o anátema do diversionismo destinado a esvaziar o julgamento sensacional do que já foi julgado em prosa e versos nos mesmos palanques que o bravo senador gaúcho vê montarem na encenação de uma nova farsa em que, como observou, “os papéis foram bem distribuídos”, segundo seu raciocínio: “há também entre os membros da CPI quem se dedica a acusar jornalistas, numa clara ação de vindita que libera mágoas e ódios em acontecimentos passados”.
A este respeitado e celebrado prócer de carreira bem sucedida não ocorreu discutir o que consubstancia a independência e harmonia entre os poderes, nos termos sucintos do artigo segundo da sagrada Constituição republicana.
Nem lhe passou pela cabeça questionar a hermenêutica que levou um ministro dessa exibida suprema corte a interferir nos trabalhos da CPI para garantir ao principal indiciado, colarinho branco revestido em ouro, o “direito” de só depor depois de conhecer as acusações produzidas contra ele noutra esfera, a do Poder Executivo, como se a inquirição parlamentar estivesse apensada e condicionada forçosamente à investigação policial que, aliás, já havia sido abusivamente brecada em 2009 por um ato insustentável de um procurador que se acha acima do bem e do mal.
Não precisa ser advogado para saber que o traseiro não tem nada a ver com as calças. Mas a penca de causídicos que povoa esse parlamento acocorado engoliu a seco o pito do pináculo de um Judiciário que legisla todo santo dia, fazendo restar a quem tinha esse ofício a desabonadora senda do tráfico de influência na sombria cerimônia do “dá lá, toma cá”.
Quando li o título e a assinatura da matéria na página de opinião do GLOBO, nesta terça-feira, 15 de maio de 2012, imaginei que era desse constrangimento que o senhor Pedro Jorge Simon, professor de Direito, iria verberar na defesa da liberdade processual da CPI, cuja agenda independe do que se fez alhures, embora essa, com sua ânsia palanqueal, tenha sido montada como uma carroça diante dos bois: vai investigar o investigado por alguns delegados teimosos que, calados numa operação batizada de “Vegas”, romperam o cerco com outra, a “Monte Carlo”, matando várias coelhos com duas cajadadas.
Qual nada! O octogenário plêiade nem se tocou diante desse constrangimento dos seus pares, porque, com toda a experiência acumulada, sabe muito mais do que eu o que se passa por debaixo dos panos.
Carlos Augusto de Almeida Ramos, que este mês festejou na cadeia temporária seus bem vividos 49 anos, não é um Anizio Abraão qualquer, embora seja seu parceiro, irmão, camarada. E tenha começado sua intrépida carreira com o know-how levado para Goiás pelo pai, que foi da máfia do Castor.
Suas práticas foram tão ousadas que reduziram a cinzas própria lenda de Grigoriy Yefimovich Rasputin, o mago russo que embeveceu a tzarina Alexandra Feodorovna e deu as cartas em Petrogrado até às vésperas dos sete dias que abalaram o mundo, no outono conturbado de 1917.
Rasputin valia-se dos dotes da mistificação e da devassidão, oferecendo seu talento bandido a um império em decadência. Carlos Augusto, o Cachoeira, aprendeu a cercar pelas sete e a distribuir benesses a brancos e pardos, com o que alastrou incólume seu próprio império criminoso pelos meandros de todos os podres poderes, sendo certo que, à parte do jogo sujo que move a CPI, muito se teria a conhecer, fosse honesta a sua propositura e cirúrgico o seu proceder.
Não é demais relembrar o defeito de nascença dessa investigação parlamentar. Em geral, as congêneres fazem suas próprias descobertas e, em havendo lisura, as reúnem em relatórios destinados ao Ministério Público, que dá continuidade com a abertura do processo devido.
Essa se inspirou no samba do crioulo doido, pegou o bonde andando e chamou a si, para efeito artístico, o que a Polícia Federal já descobriu em dose dupla. Trata-se, portanto, de uma comissão sob desconfiança, que terá de garimpar com coragem e faro canino para usar o já apurado como bússola e ir onde os policiais não puderam chegar. E para mexer em qualquer vespeiro, indiferente à mau querência dos portadores de dotes avantajados.
Do contrário, essa CPI tem tudo para ser uma farsa, ao sabor dos cascateiros, transformando-se em antro de acordos dos cavalheiros de rabo preso.
Mal começou, aliás, e já mostrou essa fatalidade torpe e hipócrita. Quando o procurador Roberto Gurgel se disse minado pelos réus do “mensalão”, as entrelinhas de sua peroração portavam um recado.
Ele poderia estar lembrando também que daqui a pouco vai estar com o chicote nas mãos e na crista da onda. Muitos dos que o estão incomodando com a cobrança sobre o breque inexplicável que deu sobrevida à quadrilha do mago anapolino terão parceiros nos bancos dos réus e, quem sabe, da astúcia de cada um dependerá a catilinária na sua hora e vez.
Até prova em contrário, pelos defeitos de nascença, em contraste com os alvos principais e periféricos, temos muito pouco a esperar dessa CPI de medíocre coreografia.
Há toda uma cadeia de interesses armada para contigenciá-la, para limitar ao quarteirão o seu espaço investigatório, ao contrário do que aconteceu na CPI dos Correios, que atravessou o rubicão, farejou em outras paragens e só não chegou a derrubar um governo ou a impedir sua reeleição porque faltou autoridade moral aos que desejavam tal desfecho.
Será de uma pobreza frustrante se essa CPI ficar no que já está fazendo a Comissão de Ética do Senado em relação ao preposto do delinquente naquela casa. E se ciscar só no entorno dos negócios mais explicitamente ilegais já apontados. Essa organização criminosa, com a máfia italiana, tem tentáculos muito mais corrosivos nas frentes consentidas – e a construtora Delta não é seu único braço legal.
Também não ficará bem para o Congresso – e nisso o governador Marcondes Perillo tem razão – se cingir-se apenas aos mal feitos de uma única empreiteira, quando se sabe das traquinagens de outras muito mais ousadas.
Por que não resgatar os autos da “Operação Castelo de Areia”, que pôs na cadeia por alguns dias diretores da poderosa Camargo Corrêa, mas que o STJ demoliu com uma penada, sob a alegação de que houve escutas ilegais?
Por que não se avança no sentido de uma legislação de tolerância zero contra os corruptores que permanecem no proscênio, lépidos e fagueiros, em deslumbrantes farras parisienses, mesmo depois de desmascarados na fita, como aconteceu com a Locanty, Rufolo e outras terceirizadas, pilhadas oferecendo grana a granel a um suposto funcionário público?
Por quê? Ora, não precisa ser jornalista para concluir que num país de maus hábitos aceitos pela população como elementos culturais inevitáveis qualquer coisa não ultrapassa às muretas da conveniência, dos acordos compensatórios e da cristalização da impunidade como regra no trato com a coisa pública – regra cada vez mais pétrea e mais intocável.
O resto é matéria para vender jornal e dar audiência à mídia eletrônica.
*GilsonSampaio

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