“Em 64, acabou tudo”, diz ex-piloto de Jango – Especial para o QTMD?
Momento
em que o Comandante Mello Bastos contava como fez para que o avião em
que trouxe João Goulart de Buenos Aires para Porto Alegre, em 1961, não
fosse atacado por aviões de caça: "Voei baixinho". Foto: Ana Helena
Tavares
Paulo Mello Bastos, ex-piloto da
Aeronáutica e da Varig, resgatou uma caixa-preta. Não a de um avião
acidentado, mas a de um país que foi impedido de voar.
Ana Helena Tavares
O
livro “A caixa-preta do golpe” conta como o que aconteceu em 1º de
Abril de 1964 tolheu o sonho dos trabalhadores brasileiros de
construírem um país mais justo através das reformas de base. Seu autor
escreve com propriedade: era líder sindical atuante e foi ele quem
pilotou o avião trazendo Jango de Buenos Aires para Porto Alegre, em
1961.
O então vice-presidente voltava da China
para assumir a presidência, após a renúncia de Jânio Quadros. O voo foi
tenso, pois o avião estava ameaçado de ser abatido por militares
brasileiros que queriam dar o golpe já naquele ano. Com a criação da
“Cadeia da Legalidade”, Leonel Brizola, então governador do Rio Grande
do Sul, havia feito da capital gaúcha o pouso mais seguro.
Com invejável lucidez e incrível vitalidade aos 94 anos, o comandante Mello Bastos contou, em entrevista exclusiva ao
“Quem tem medo da democracia?”, sua bela história.
Correio Aéreo e definição de fronteiras
“Quando Getúlio
estava no poder, havia fazendeiros paraguaios com suas terras dentro do
Brasil. Dois terços do Exército brasileiro eram aquartelados no sul.
Então, Getúlio criou a “Marcha para o Oeste”. Começou devolvendo todos
os troféus que o Brasil tinha ganhado na Guerra do Paraguai. Um gesto
simpático para que as fronteiras fossem bem definidas.”.
“Eu
fazia correio aéreo (pela Aeronáutica), de norte a sul, por todas as
áreas fronteiriças, e ajudei nessa definição. Depois, passei para a
reserva, no posto de tenente-coronel, com 20 anos de serviço ativo (em
1953). Cortei todas as minhas vinculações, saí do Clube Militar, passei a
ter uma vida civil e fui para a Varig, onde fiquei 10 anos”, contou.
Em São Borja com Getúlio
Mello Bastos conheceu Getúlio Vargas na intimidade de sua fazenda em São Borja (RS): “Fui
Lá (no final da década de 40), com uma comitiva, para convencê-lo a se
candidatar em 50, já que não tinham cassado os seus direitos políticos, e
a criar Petrobras. Ele lá com seu charutão… Aceitou, elegeu-se e
criamos a Petrobras”.
Em 1954, Getúlio se suicidou. “Ele
havia chamado os generais para o Catete, para discutir a situação do
Brasil perante o mundo, as conspirações, os golpes… Só um, o Brigadeiro
Epaminondas, ministro da Aeronáutica, se definiu a favor de Getúlio. Os
outros ficaram calados. Disse Getúlio: ‘Já que os senhores não se
decidem, decido eu’. Saiu da reunião, subiu para o quarto, deu um tiro
no coração e morreu.”
De acordo com Mello Bastos, logo após o suicídio de Getúlio, “foi decretada intervenção em todos os sindicatos”.
JK: “criador e vaidoso”
Falou ainda sobre Juscelino Kubistchek: “Fez um bom governo. Era um sujeito criador e muito vaidoso.” Sobre a criação de Brasília, disse que “é um capítulo à parte em nossa história.”
E garantiu que não foi ideia de JK.“Era
ideia da coroa. Para evitar ataques de navios piratas, o imperador (D.
Pedro II) pensou em transferir a capital para o interior, mas não fez”, historiou Mello Bastos.
Jânio Quadros: “inteligente, mas mau caráter”
Sobre Jânio Quadros, disse que “era inteligente, mas muito mau caráter. Armou uma visita de Jango à China comunista.”. E descreveu, em detalhes, como fez João Goulart chegar são e salvo ao Brasil naquele ano de quase golpe (1961).
O então piloto soube da renúncia voando: “Eu
ia do Rio de Janeiro para Uberaba, levando 30 ou 40 fazendeiros a um
leilão de gado, sempre havia isso. Eu estava na escuta, sabia da
agitação e anunciei: o presidente Jânio Quadros renunciou.”
“Parece
que eu joguei toneladas de gelo, foi um silêncio absoluto. Um caos…
Jango estava na China, voltou por Paris e Nova York, onde conferenciou
com Kennedy. E, em lugar de fazer Nova York – Rio de Janeiro, como até
hoje se faz, ele veio pelo Pacífico. E chegou a Buenos Aires. O Brasil
todo revoltado, armado, aquela complicação toda.”
O voo histórico
“A
Varig sabia que eu era janguista e, para resguardar, fui buscá-lo. Eu
era comandante de avião a jato, Caravele, beleza de avião. Então, fiz um
plano. Em vez de vir a 40 mil pés, 13 mil metros, eu vim a 300 pés,
infringindo. Porque, como o avião de caça ataca, com metralhadora, de
baixo para cima, eu vindo baixinho ele não tem espaço para me atacar,
senão ele bate. Eu que trouxe o Jango de Buenos Aires para Porto
Alegre”, relatou orgulhoso da missão cumprida.
Logo após deixar o presidente em segurança, Mello Bastos foi de Porto Alegre para São Paulo, onde recebeu voz de prisão.
“Jango
ficou em Porto Alegre e, naquela mesma noite, eu fiz um voo para Natal.
Pousei em São Paulo. Estava tudo revoltado lá… Mandaram me prender.
Muito embora eu estivesse na reserva (como Coronel da Aeronáutica), o
cara que queria me prender tinha dois anos atrás de mim na antiguidade
(patente inferior).”
“Então,
eu disse: Mudou agora, é?! Onde é que já se viu?! Sou mais antigo que
você e você vai me prender?! Me dá essa pistola aí, eu disse. E ele:
‘Ah, não vou lhe prender… É que querem falar com você lá dentro’. Fui…
Entrei lá… Todos os oficiais numa sala. Poxa, eu tinha trazido o
presidente da República e eu sabia de tudo, né…”
“Mas,
em determinadas horas, eu sou meio de teatro… Entrei acenando e
dizendo: boa noite, boa noite, pode ficar todo mundo descansadinho,
podem voltar para casa, porque o presidente da República, Dr. João
Goulart, eu já trouxe, deixei em Porto Alegre para ele tomar um
banhozinho, mudar de roupa para assumir a presidência.”, contou gesticulando os acenos e continências daquela noite.
“O
céu de Brigadeiro é aquele sem nuvens, perfeito para voar, mas eu voava
em qualquer tempo. Sempre exerci a profissão com vontade, com amor,
buscando dar o meu melhor. E não tem mistério para isso: é só se
dedicar.”, assegurou o comandante.
“Greve Mello Bastos”
Em 1963, ele foi demitido da Varig, deflagrando uma grande paralisação dos transportes no Brasil – conhecida como “greve Mello Bastos”.
A convocação foi feita pelo CGT (Comando Geral dos Trabalhadores) e
atendida não apenas por aeroviários e aeronautas, mas também por
trabalhadores de transportes ferroviários, marítimos e petroleiros.
Toda
essa solidariedade se explica. Além de comandante da Varig, Mello
Bastos era diretor da Confederação Nacional dos Trabalhadores de
Transportes Marítimos, Fluviais e Aéreos, e presidente-fundador da
Federação. Se não bastasse, junto com Dante Pellacani, Hércules Corrêa e
Oswaldo Pacheco, compunha o secretariado político do CGT.
“Foi
aí que eu peguei a minha ‘ficha de comunista’… Engraçado… Um cara cujo
salário era 10 mil dólares ia lutar para rebaixar o salário? Isso não
existia!”, frisou.
Petróleo e maniqueísmo
Segundo Mello Bastos, a luta pelo petróleo foi “o que definiu a nação” e deu o tom do maniqueísmo que caracterizou a época: “Eram chamados de comunistas todos os militares que defendiam que a Petrobras tinha que ser inteiramente brasileira. Nós chamávamos os outros de entreguistas.”, lembrou.
A mídia e o golpe
“Maria Antonieta disse diante de uma multidão: ‘Por que não dão brioche para o povo?’” Mello Bastos revelou acreditar que é isso o que a grande mídia, que ele definiu como “representante da alta burguesia”, diz
diariamente ao povo e foi o que disse em 64 para desvirtuar as atenções
sobre o que realmente estava acontecendo e ajudar no golpe. Para ele, “se
não houvesse o jornalismo, tudo seria pior. Mas é preciso que só se
procure o caminho da verdade. Sendo assim, é insubstituível na
sociedade”.
Preso na embaixada
Em
09 de Abril de 1964, poucos dias do golpe, Paulo Mello Bastos teve os
direitos políticos cassados pelo Ato Institucional – Nº 1. No dia
seguinte, o jurista Clóvis Ramalhete, já falecido e que era próximo
politicamente ao então líder sindical, disse que iria esperá-lo na
esquina da embaixada chilena.
Corriam, no rádio, diversos boatos sobre Mello Bastos. “Um
dava conta de que eu tinha sido morto na Baixada Fluminense. Outro
dizia que eu tinha sido preso ferido na Baixada Santista. Que estavam me
procurando, isso estavam…”.
Achando que Clóvis Ramalhete “não iria se expor” e desconfiado das intenções do jurista, com quem tinha o que definiu como “amizade de conveniência”, Mello Bastos decidiu não ir à embaixada chilena.
Foi para a uruguaia. “Eu
estava todo bonito… Meu paletó era cor de petróleo. A embaixada do
Uruguai estava cheia. Já tinha umas 20 autoridades lá dentro. Polícia na
porta. Não entrava ninguém. Tive que dar uma “chave de galão”, que é
quando o cara impõe sua autoridade pelo posto (hoje seria uma
“carteirada”). Mostrei minha carteira de coronel e consegui entrar.”
“Um
cara me perguntou: ‘O que o Senhor quer?’ Achei um desaforo num clima
daqueles… Mandei que chamasse o embaixador e rápido. Ele foi… O
embaixador chegou e me perguntou: ‘O Senhor é o Comandante Mello
Bastos?’ Digo:sou.”
“E
fiquei lá 71 dias até o governo uruguaio mandar um avião me buscar. Um
amigo me deu o livro “O crime do século”, sobre o assassinato de
Kennedy, para eu levar. E fiquei 3 anos e 2 meses exilado no Uruguai.
Tinha gente infiltrada lá.”, garantiu.
A infiltrada
Mello Bastos contou sobre uma jornalista, casada com um fotógrafo, chamada Madalena:
“Ela era do PTB e chegou a escrever matérias para o partido. Um dia,
nos encontramos saindo da casa de Brizola (no exílio). Ela me perguntou:
‘você é comunista?’ Eu disse: ‘então você não sabe que a pessoa quando
diz que é comunista é logo perseguida?! Me admira você, uma jornalista,
bem informada, me perguntar isso.’ Respondi que não sou, porque não sou
mesmo. E se fosse, também diria que não. Anos mais tarde, já no Brasil,
eu li uma matéria que revelava que ela tinha sido ‘cachorra da
ditadura’. Quer dizer, estava lá no Uruguai para passar informações
sobre o comportamento dos exilados”.
Um delegado agente da CIA
“Eu
morava com um general no exílio. Um dia tocou o telefone às 4h da
manhã. Era a Polícia de Segurança. Disseram: ‘o Senhor está convidado a
ir à delegacia’. Eu disse: ‘não aceito o convite!’ E disseram: ‘tem que
ir de qualquer maneira’. Fui… Cheguei lá e dei de cara com um delegado
que eu sabia que era agente da CIA. Ele era também juiz de futebol.”
“Primeiro,
ele me disse uma verdade: ‘o Senhor esteve na fronteira.’ Sim, estive.
Fui buscar minha esposa (que ainda é viva e acompanhou a entrevista). ‘O
Senhor cruzou a fronteira’. Não, não cruzei.”
“‘O
Senhor sabe que está ameaçado de morte?’ Digo: ‘é difícil, não tenho
inimigos’. E ele disse: ‘tem muitos! A sua segurança está por um fio e o
governo uruguaio tem compromisso com a vida do Senhor. Queremos pôr
vigilância na sua porta’.”
“Digo:
‘eu não quero!’ E ele disse: ‘então, o Senhor vai assinar uma
declaração’. Digo: ‘redija!’ Ele redigiu e eu assinei, eximindo a
polícia uruguaia de qualquer ocorrência que atingisse a minha segurança,
da violência até a morte.”
Convivência com Jango no exílio
Segundo Mello Bastos, João Goulart era “uma figura humana maravilhosa. Não perseguia nem discriminava e não se vingava de ninguém, de nada. Era um homem pacifista.”. Além de ter sido piloto do avião presidencial, Mello Bastos conviveu durante algum tempo com Jango no exílio. “Havia
uns doze sargentos exilados conosco. Jango todo mês pagava a estadia
dos doze. Ele dava o dinheiro para mim e para o Waldir Pires, que
recentemente foi ministro da Defesa, e nós repassávamos para a dona da
pensão. Era gozado… Ele tinha uma perna dura, com defeito. Virava pra
gente, metia a mão no bolso e já estava com o dinheiro contado.”
Reformas de base
Sobre
as reformas de base, defendidas por João Goulart e apoiadas pelo CGT
(Comando Geral dos Trabalhadores), Mello Bastos disse que a intenção era
que, para debater as propostas, fosse formada uma Assembleia Nacional
Constituinte: “Queríamos promover debates durante 1 ou 2
anos. Em cidades, vilas, fazendas, reunindo todos os sindicatos. Depois
de todo mundo palpitar, cada categoria escolheria seus representantes
para uma Constituinte. Tinha até um cara, (Francisco) Julião, de
Pernambuco, que dizia: ‘Reforma Agrária – na lei ou na marra’. Nada de
golpe! Quando chegou em 64, acabou tudo. Foi dado o golpe e todo mundo
teve que desaparecer não sei como.”, lamentou-se.
CGT
Contando sobre a criação do CGT, o ex-líder sindical fez questão de explicar a origem da palavra “pelego”: “Getúlio
tinha dividido o movimento sindical à semelhança da organização
italiana fascista, de Mussolini. Naquela época, na Itália como aqui, o
presidente da Confederação (dos pilotos) tinha um belo carro e levava
tudo na base da influência política. Vivia cheio de pelegos em volta.”, contextualizou Mello Bastos.
Para, em seguida, definir:
“Pelego é o couro do carneiro que as pessoas usavam muito no Rio Grande
do Sul para se cobrirem por causa do frio. Então, passou a ser usado
para designar o cara que fazia tudo só para se proteger e era menino de
recado do Ministro do Trabalho.”.
E continuou:
“Construímos o CGT para dar combate aos pelegos. Começaram a achar que
estávamos querendo comandar a política do país… O que não era… Miguel
Arraes, por exemplo, era nosso companheiro. Sarney quase foi para o
nosso lado, mas, quando viu que a coisa ficou preta, caiu fora…”.
José Sarney: “nunca foi de confiança”
Instigado a detalhar sua opinião sobre o atual presidente do Senado, Mello Bastos ponderou: “Ao substituir Tancredo, Sarney
prestou um grande serviço ao país. Pacificou e evitou uma guerra civil,
porque o homem no qual se tinha esperança morreu, ficou um vazio e os
militares estavam com as armas nas mãos. Prestou um ‘servição’, mas
nunca foi de confiança”.
Corrupção na ditadura
“Nossa senhora, como havia!, garantiu Mello Bastos. “Você
acha que o (Mário) Andreazza construiu a ponte Rio-Niterói (batizada de
‘Costa e Silva’) com dinheiro que ganhou de herança? A estrada
Rio-Teresópolis é outro exemplo. E digo mais: eu trabalhei em empresa de
consultoria em engenharia. Conheci o pai do Eike Batista: Eliezer
Batista. Sei bem como esses caras ganham dinheiro.”.
Volta do exílio e prisão
Mello
Bastos voltou do exílio em 1967. Estava clandestino e era considerado
morto. Primeiro foi para São Paulo, em seguida para o Rio de Janeiro: “Eu
não podia sair de casa. Mas tinha amigos importantes que me diziam:
‘você tem que colocar a cara de fora!’ Foi o que eu fiz… Vendi meu
carro, um fusca vagabundo, e comprei um táxi. Trabalhei de taxista. Saía
cedinho de casa e nem saía do carro para comer.”
“Até
um dia que me prenderam. Perguntei: ‘por ordem de quem?’ Responderam:
‘do chefe de polícia’. E eu: ‘Por quê?’ E eles: ‘ah, comandante! Nós
sabemos de tudo… O senhor veio do Uruguai, pousou no Galeão, depois foi
para a Tchecoslováquia, passou uma temporada lá, voltou pro Galeão de
novo e agora está aqui na clandestinidade’. Digo: ‘meus parabéns! Não
foi nada disso!’ Já viu que os caras estavam por fora, né…”
“Aí
me levaram para o DOPs. Num regime ditatorial, não fazia diferença eu
ser coronel… Quiseram que eu fizesse uma declaração de bens… Depois,
pediram pra eu fazer uma declaração sobre como voltei pro Brasil, como
cruzei a fronteira, quem me trouxe… Menti. A verdade é que voltei de
ônibus, com identidade falsa, etc…. ”
Filha torturada
Mello
Bastos foi solto em pouco tempo e não chegou a ser torturado, mas sua
filha, a jornalista Solange Bastos, que também acompanhou a entrevista,
foi. “Violentamente, no DOI-CODI”, conta o
pai. Na época, ela era aluna do Colégio de Aplicação na Lagoa (Rio de
Janeiro) e tinha uma professora que era do Partido Comunista. “Eu nunca incentivei meus filhos à participação política”, garantiu Mello Bastos.
“Mas ela quis ir para o Chile, estudar. Estava lá quando Allende caiu.
Participou de um panelaço lá. E, quando voltou, foi presa. Posta em
câmara de gelo, etc…”.
A luta pela anistia
Como narra em seu livro “Bastidores da Anistia”, Mello Bastos ajudou a construir a Lei de Anistia. “Fui
para Brasília (meados da década de 70). Eu era representante de nomes
como Oscar Niemeyer e minha missão era iniciar uma campanha de
desmoralização da ditadura no exterior. Um trabalho diário. O então 1º
secretário da ABI (Associação Brasileira de Imprensa), Henrique
Cordeiro, um sujeito fantástico, era quem coordenava essa
desmoralização.”
“Como
era feito isso? Nós enviávamos para outros países (principalmente para a
Europa) denúncias sobre as barbaridades que a ditadura estava fazendo
aqui. Essas denúncias eram escritas e organizadas em envelopes, uns 15
ou 20 de uma vez (não podiam ser muitos para não dar na vista). E eu
colocava no Correio. A imprensa europeia quase sempre publicava. Era
difícil para o governo brasileiro dizer que as denúncias eram falsas.
Foi um processo lento, uma lei negociada. Mas a minha tarefa eu cumpri.”
Nesse momento, o comandante,
hoje completamente anistiado, vai às lágrimas. Para ele, a anistia foi
mesmo “ampla, geral e irrestrita”. “Eu, na Anistia, me
dediquei de corpo e alma. Um vai e vem de deputados, senadores, uma
loucura… Tinha um senador alagoano, Teotônio Vilela, que liderou a
campanha no Senado. Da última vez que ele entrou na ABI, o salão cheio,
todos choraram” (e o comandante chora de novo).
Figueiredo: “ditador, torturador”
“Ditador e torturador” foram
os termos usados por Paulo Mello Bastos para definir João Batista
Figueiredo, general que estava no poder na época da Lei de Anistia.
Mello Bastos contou que o pai de Figueiredo participou de uma revolta em
1922 e foi anistiado, mas assegurou que a abertura política só
aconteceu porque o general não teve outra saída.
“Figueiredo
nunca sonhou em ser presidente, foi colocado lá, aquilo deve ter pesado
nele. A pressão internacional era muito grande e o Brasil estava
isolado, como está hoje a Coréia do Norte. Isso é uma coisa que influi
comercialmente, em importações/exportações, dívidas, e é muito difícil
para um governo controlar”, sustentou Mello Bastos. Internamente, a pressão também era grande. “Teotônio
Vilela era um usineiro rico. E a Igreja também estava pressionando. E o
povo, de um modo geral. Quando saiu a Lei de Anistia, foi uma festa”, lembrou jogando as mãos para o ar como quem solta papel picado.
“Congresso legítimo”
Para Mello Bastos, o Congresso que aprovou a Lei de Anistia “era
legítimo e possuía deputados corajosos, que, inclusive, citavam outros
países onde havia ditaduras para comparar com o Brasil”.
A execração pública como punição
“Se
eu estou de um lado e você está de outro, seus dentes são iguais aos
meus, você tem sofrimentos como eu tenho, a única diferença entre nós é o
desejo, a fixação, de obter privilégios. Quando uma autoridade do
regime dizia para um agente do Estado: ‘ou você tortura fulano ou você
morre!’ claro que ele torturava. Mas para torturar alguém, por vontade,
você tem que ter raiva… Ora, os torturadores nem conheciam aquelas
pessoas! Então não faziam por prazer, mas para adquirir a confiança de
seus superiores, promoção, vantagens, prestígio, status, dinheiro! Foi
isso o que aconteceu. Ou seja, quem tinha prazer era o mandante, ele era
o maior torturador, é ele que deveria ser preso. Mas todos já morreram.
Quem colocou a mão para torturar tem que ser punido através da
execração pública”, recomendou Mello Bastos.
E completou: “O
mais importante é que os arquivos sejam abertos e que se saiba os
locais onde os torturadores enterraram corpos. E que se saiba quem foram
os comandantes das operações, no Araguaia, por exemplo. Se algum
estiver vivo, que responda por tudo ou diga quem estava mais acima… Mas
quem torturou e está ainda vivo eu, sinceramente, não prenderia. Por
mim, eu fritava eles e fazia picadinho (diz rindo)… E depois mandava
rezar uma missa para irem para o inferno. Agora sério: os caras já
velhos vão ficar quanto tempo presos? Eu faria assim… Proibia o cara de
se mudar e pendurava na porta da casa dele uma placa: ‘Aqui mora um
torturador’”.
“Levante da Juventude” e “Esculacho”
Isso
já tem sido feito em alguns pontos do Brasil por um grupo, denominado
“Levante da Juventude”, num movimento a que chamam “Esculacho”. Mas o
ex-líder sindical sugere que isso fosse oficial. Para ele, “diante
do que esses caras devem, a prisão não é nada. Matá-los também não
serve. Muito pior que estar preso, onde estará protegido de ser morto,
com comida e médico à disposição, é sair na rua e ser alvo de chacota.
Todos apontando, gargalhando e dizendo: ‘ah, aquele cara torturou um
montão’”
E que ninguém diga para Mello Bastos que isso é ‘revanchismo’…
“Ora, esses caras nunca foram julgados… Eu não quero que peguem os
torturadores e torturem eles! Isso, sim, seria revanchismo! Não quero
saber o que eles fizeram para fazer o mesmo com eles. Se for assim, a
coisa não acaba nunca. O que diz a lei? Que tortura é crime
imprescritível. Desaparecimento de corpos também. Então, que sejam
julgados.”
Perguntado sobre sua
opinião a respeito do comportamento dos jovens que protestaram contra a
comemoração do golpe de 64 em frente ao Clube Militar, o comandante
respondeu sem hesitar: “Eu acho que os jovens estão sempre
certos. Eles agem sem medir as consequências porque são movidos pelo
impulso e não conseguem encontrar outra maneira de influenciar no
sistema. Qual o instrumento legal que eles têm? Nenhum! Então, o que
lhes resta é cuspir.”
Comissão da Verdade
Mello Bastos considera que é importante que a Comissão da Verdade dê certo para “mostrar que o Brasil tem organização”. Acredita que vai dar certo, e que poderá ser uma “satisfação para a sociedade”,
mas acha que deveria ser investigado apenas o período da ditadura
militar e sente falta de alguém de peso liderando a Comissão. “Imagina se D. Hélder Câmara fosse vivo e estivesse à frente disso? Seria uma maravilha”, suspira.
“Muito satisfeito” com Dilma
O ex-líder sindical disse estar “muito satisfeito” com Dilma, mas “com pena” da presidente: “Ela
tem que arrumar a casa… Até tem uma meia dúzia de senadores e deputados
corretos… Mas, fora isso, qual o material que ela dispõe? Os partidos e
os políticos que eu conheço, você conhece, todo mundo sabe… Não deve
ser fácil.”
Vivemos uma “democracia política”
Segundo Mello Bastos, “o Brasil vive hoje uma democracia
política, mas, devido à dependência do poder econômico, não é uma
democracia social. Esta nenhum país no mundo vive. ”. E quem tem medo? “Quem tem malfeitos”, resumiu.
=> Essa entrevista é a 12ª de uma série sobre a ditadura.
Clique aqui para conferir as anteriores.
*GilsonSampaio