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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

terça-feira, agosto 20, 2013

A via uruguaia poderia servir de inspiração na América Latina




A via uruguaia poderia servir de inspiração na América Latina



A experiência de José Mujica no poder poderia servir de inspiração a outros governos de viés progressista na região (Daniel Caselli / AFP)

por Vladimir Safatle/Carta Capital
Os países latino-americanos que assumiram uma via à esquerda confrontam-se atualmente com a necessidade de reinventar seus caminhos. Venezuela, Equador, Bolívia, Argentina, Brasil e Peru passam, cada um à sua maneira, por desafios oriundos de seus modelos de governo.
Argentina, Brasil e Venezuela são sacudidos por manifestações que pedem mudanças nos governos, mesmo que, no caso brasileiro, a base dos manifestantes não seja a mesma encontrada na Argentina e Venezuela. Em larga medida, temos no nosso país uma insatisfação com a timidez das políticas sociais e reformistas do governo, o que não é o caso em nossos vizinhos, assombrados com um descontentamento alimentado, em grande parte, de setores conservadores da vida social. Equador e Bolívia, por sua vez, ainda estão em um processo de reinvenção de suas instituições. Isso os torna, muitas vezes, dependentes de figuras carismáticas incumbidas de levar a cabo o processo de transformação política e refundação do país. O Peru, de Olanta Humala, ainda é uma incógnita nesse processo.
Em todo esse cenário, um país se destaca, no entanto, de maneira inesperada e impressionante. Trata-se do Uruguai. Há tempos a pequena nação ganha evidência na mídia latino-americana e mundial graças à sua corajosa política de modernização social que a colocou na vanguarda em temas essenciais: aborto, casamento homossexual, entre outros. Agora, vemos os uruguaios prestes a inaugurar uma prática inovadora no que diz respeito à política relativa a drogas, por meio da estatização da produção e do controle do consumo de maconha.
A capacidade dos uruguaios em assumir riscos e procurar inventar novas respostas para velhos problemas é louvável. Mesmo que sua política relativa a drogas possa produzir novos problemas, é certo que as práticas de combate e criminalização usadas compulsivamente no resto do mundo demonstraram-se radicalmente ineficazes e contraprodutivas. Chegou a hora de procurar alternativas e, neste ponto, os uruguaios têm algo a nos ensinar.
No que diz respeito a uma política de esquerda, há de se admirar a via uruguaia. Ela baseia-se na ampliação da pauta das questões políticas e na incorporação, sem medo, das demandas sociais de modernização de costumes. Algo completamente diferente do que tem acontecido no Brasil, onde a escolha foi pela tentativa de empurrar paulatinamente pequenas mudanças, na esperança de que elas acabem assimiladas aos poucos pela sociedade. Nesse ritmo, talvez, daqui há 15 anos conseguiremos discutir francamente questões que os uruguaios já terão resolvidos.
Outro ponto que chama a atenção da experiência uruguaia é seu presidente. Contrariamente a certa tendência bonapartista que, vez por outra, precisamos lidar no campo das esquerdas, eles optaram por colocar à frente do processo político uma espécie de antilíder, cujo carisma vem exatamente de seu desconforto aberto em relação aos ritos do poder. Alguém que parece a todo momento dizer não se enxergar como um presidente e que se recusa a abandonar sua vida espartana, seu sítio modesto e seus hábitos e roupas comuns. 
No fundo, ele acaba por encarnar uma ideia fundamental da democracia, a saber, a defesa de que qualquer um deve ocupar o lugar central do poder, pois ninguém pode simplesmente encarná-lo. Ou seja, o mais indicado a ocupá-lo é exatamente aquele que tem as qualidades de “qualquer um”, não no sentido de ser alguém sem valor, mas no sentido de ser alguém sem desejo de encarnação. Alguém que tem a liberalidade de deixar o lugar do poder vazio e, por isso, encontra uma força inaudita por meio exatamente da expressão de seu franco desprendimento.
Trata-se de uma lição política merecedora de nossa admiração, a saber, a compreensão de que o melhor líder é aquele que sistematicamente recusa-se a se ver como tal. Não deixa de ser irônico perceber que exatamente esse tipo de ator político permitiu ao país ir em direção a lugares que os outros não foram sequer capazes de imaginar.
Assim, no momento em que a esquerda latino-americana precisa reinventar sua política e sua pauta, em que setores da esquerda afundaram-se na fascinação pelas benesses materiais do poder, o Uruguai parece encarnar experiências que merecem nossa lembrança.

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