A
experiência de José Mujica no poder poderia servir de inspiração a
outros governos de viés progressista na região (Daniel Caselli / AFP)
por Vladimir Safatle/Carta Capital
Os
países latino-americanos que assumiram uma via à esquerda confrontam-se
atualmente com a necessidade de reinventar seus caminhos. Venezuela,
Equador, Bolívia, Argentina, Brasil e Peru passam, cada um à sua
maneira, por desafios oriundos de seus modelos de governo.
Argentina,
Brasil e Venezuela são sacudidos por manifestações que pedem mudanças
nos governos, mesmo que, no caso brasileiro, a base dos manifestantes
não seja a mesma encontrada na Argentina e Venezuela. Em larga medida,
temos no nosso país uma insatisfação com a timidez das políticas sociais
e reformistas do governo, o que não é o caso em nossos vizinhos,
assombrados com um descontentamento alimentado, em grande parte, de
setores conservadores da vida social. Equador e Bolívia, por sua vez,
ainda estão em um processo de reinvenção de suas instituições. Isso os
torna, muitas vezes, dependentes de figuras carismáticas incumbidas de
levar a cabo o processo de transformação política e refundação do país. O
Peru, de Olanta Humala, ainda é uma incógnita nesse processo.
Em
todo esse cenário, um país se destaca, no entanto, de maneira
inesperada e impressionante. Trata-se do Uruguai. Há tempos a pequena
nação ganha evidência na mídia latino-americana e mundial graças à sua
corajosa política de modernização social que a colocou na vanguarda em
temas essenciais: aborto, casamento homossexual, entre outros. Agora,
vemos os uruguaios prestes a inaugurar uma prática inovadora no que diz
respeito à política relativa a drogas, por meio da estatização da
produção e do controle do consumo de maconha.
A
capacidade dos uruguaios em assumir riscos e procurar inventar novas
respostas para velhos problemas é louvável. Mesmo que sua política
relativa a drogas possa produzir novos problemas, é certo que as
práticas de combate e criminalização usadas compulsivamente no resto do
mundo demonstraram-se radicalmente ineficazes e contraprodutivas. Chegou
a hora de procurar alternativas e, neste ponto, os uruguaios têm algo a
nos ensinar.
No
que diz respeito a uma política de esquerda, há de se admirar a via
uruguaia. Ela baseia-se na ampliação da pauta das questões políticas e
na incorporação, sem medo, das demandas sociais de modernização de
costumes. Algo completamente diferente do que tem acontecido no Brasil,
onde a escolha foi pela tentativa de empurrar paulatinamente pequenas
mudanças, na esperança de que elas acabem assimiladas aos poucos pela
sociedade. Nesse ritmo, talvez, daqui há 15 anos conseguiremos discutir
francamente questões que os uruguaios já terão resolvidos.
Outro
ponto que chama a atenção da experiência uruguaia é seu presidente.
Contrariamente a certa tendência bonapartista que, vez por outra,
precisamos lidar no campo das esquerdas, eles optaram por colocar à
frente do processo político uma espécie de antilíder, cujo carisma vem
exatamente de seu desconforto aberto em relação aos ritos do poder.
Alguém que parece a todo momento dizer não se enxergar como um
presidente e que se recusa a abandonar sua vida espartana, seu sítio
modesto e seus hábitos e roupas comuns.
No
fundo, ele acaba por encarnar uma ideia fundamental da democracia, a
saber, a defesa de que qualquer um deve ocupar o lugar central do poder,
pois ninguém pode simplesmente encarná-lo. Ou seja, o mais indicado a
ocupá-lo é exatamente aquele que tem as qualidades de “qualquer um”, não
no sentido de ser alguém sem valor, mas no sentido de ser alguém sem
desejo de encarnação. Alguém que tem a liberalidade de deixar o lugar do
poder vazio e, por isso, encontra uma força inaudita por meio
exatamente da expressão de seu franco desprendimento.
Trata-se
de uma lição política merecedora de nossa admiração, a saber, a
compreensão de que o melhor líder é aquele que sistematicamente
recusa-se a se ver como tal. Não deixa de ser irônico perceber que
exatamente esse tipo de ator político permitiu ao país ir em direção a
lugares que os outros não foram sequer capazes de imaginar.
Assim,
no momento em que a esquerda latino-americana precisa reinventar sua
política e sua pauta, em que setores da esquerda afundaram-se na
fascinação pelas benesses materiais do poder, o Uruguai parece encarnar
experiências que merecem nossa lembrança.
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