A (f)utilidade das sanções
Há cerca de dez dias, participei, em Washington, como orador principal de importante evento organizado por reputada instituição norte-americana, a Carnegie Endowment for International Peace. Como se tornou comum em acontecimentos desse tipo, minha exposição foi conduzida pelo moderador George Perkovitch e pelas perguntas da audiência.
Embora o tema geral do encontro fosse desarmamento e não proliferação nuclear, a questão inicial do moderador versou sobre a Declaração de Teerã, de 17 de maio de 2010. Queria conhecer a avaliação que fazemos hoje sobre o acordo, à luz da recusa dos proponentes originais da ideia de trocar urânio por combustível. Isso me deu ocasião de expor didaticamente como o governo brasileiro se envolveu na questão, movido inicialmente por um pedido do presidente Obama ao presidente Lula, à margem da reunião do G-8 em L’Aquila, na Itália, em julho de 2009. Esse pedido foi reforçado por gestões específicas de emissários dos Estados Unidos – na linha de telegrama de instruções enviado à embaixada norte-americana em Brasília, revelado pelo Wikileaks. Pude, diante de um público qualificado, explicar como os pontos centrais do acordo proposto pelo chamado Grupo de Viena (Estados Unidos, França e Rússia) estavam atendidos pela Declaração. Mencionei, a propósito, a opinião de especialistas insuspeitos, como o ex-diretor da Agência Internacional de Energia Atômica, Mohamed el-Baradei – que havia participado da preparação da proposta original –, para quem o resultado obtido por Brasil e Turquia era um passo significativo (substantial) no sentido de garantir que o programa nuclear iraniano tivesse fins exclusivamente pacíficos.
É digno de nota o continuado interesse de personalidades influentes nos Estados Unidos em discutir o tema. A meu ver, o desejo de esmiuçar os diversos aspectos da questão é revelador de que alguma dúvida terá ficado no espírito de muitos analistas sobre o acerto da atitude negativa, tomada na ocasião pelos EUA e seus aliados (que, no caso, além dos outros membros ocidentais do Conselho de Segurança, França e Reino Unido, incluiu a Alemanha e – o que não é tão comum – Rússia e China).
O moderador levantou outra questão muito relevante para o momento atual. Referindo-se ao nosso voto contrário às sanções contra o Irã, em junho de 2010, perguntou-me se o Brasil não admitia que sanções poderiam ser o caminho indicado, quando um país viola sistematicamente suas obrigações. Mencionou, então, a Líbia, o que me levou a recordar-lhe que, já no atual governo, o Brasil votou, acertadamente, em favor de sanções contra Kaddafi e a liderança líbia, em face do uso indiscriminado da força contra civis. Mas, corretamente, absteve-se na resolução que concedeu à coalizão a faculdade de usar “todas as medidas necessárias” (eufemismo para uso da força no jargão da ONU) para tornar efetiva a zona de exclusão aérea e proteger (sic) a população civil.
Sem desconhecer que sanções ou, principalmente, a ameaça delas pode ter alguma utilidade em influenciar o comportamento de determinado governo, assinalei que, na maioria das vezes, as sanções atingem, principalmente, os setores mais vulneráveis da população. Em segundo lugar, muito frequentemente, provocam efeito contrário ao desejado no que se refere à concentração do poder nas mãos de um líder autocrático ou ditatorial. A experiência no Iraque, no período que antecedeu a segunda guerra do Golfo, fornece ampla prova disso.
A própria Líbia é ilustrativa desse aparente paradoxo. Durante cerca de uma década, o país esteve sob sanções do Conselho de Segurança, o que apenas reforçou o poder de Kaddafi. Foi apenas quando as relações da Líbia com grande número de países, inclusive ocidentais, se distenderam, permitindo que mais informações chegassem a parcela importante da população é que impulsos de mudança se fizeram sentir – estimulados pelos êxitos no Egito e na Tunísia.
O uso da força pela coalizão coloca outras questões. Além da proporcionalidade entre meios e fins, é muito difícil traçar uma linha clara entre o que constituiria efetivamente a proteção de civis e o que é o apoio a um dos lados de uma guerra civil. Este é um dilema que a aliança que se constituiu sob a liderança dos Estados Unidos terá de enfrentar. Outro dilema é saber de que civis se trata: afinal, também há civis que, voluntariamente ou não, podem encontrar-se próximos às forças leais a Kaddafi. Sobre esse e outros aspectos, os relatos que nos chegam, muitas vezes filtrados, pelas agências de notícias, não são tranquilizadores. Um analista político norte-americano recordava, falando do Oriente Médio em geral – mas com evidente aplicação ao caso da Líbia e, mais amplamente, a sanções e ao uso da força –, que o dever principal de quem deseja ajudar e proteger é seguir a máxima de Hipócrates, pai da medicina: “Em primeiro lugar, não cause dano”.
Celso Amorim