COMISSÃO NACIONAL: EXCESSO DE VERDADE FAZ MAL À SAÚDE
Comissão Nacional: Excesso de Verdade Faz Mal à Saúde
Carlos Alberto Lungarzo
Prof. Tit. (r) Univ. Est. Campinas, SP, Br.
6 de junho de 2012
A Comissão Nacional da Verdade
(CNV) do Brasil, instalada oficialmente em maio de 2012, passou desde
2010 por diversas transformações. Todas elas foram impostas pelos
militares que não queriam sentir-se “difamados”.
Algumas dessas modificações mudaram totalmente o sentido do projeto. A mais grave foi eliminar o termo repressão
e restringir o objetivo da CNV a “examinar” as violações aos DH
ocorridas no país. Isto permite que alguns pretendam investigar “todos
os lados”, o que significa deixar tudo como está. Essa proposta abre a
política do vale tudo, que pode ser expressada assim:
Alguns
militares podem ter sido culpados de crimes, mas muito mais foram os
guerrilheiros, os intelectuais, os sindicalistas, as mulheres
estupradas, as crianças torturadas para coagir seus pais, e até os fetos
de mulheres grávidas assassinadas.
Outro
problema é o imenso período para investigar: 1946 a 1988. Será que vão
investigar Dutra, Vargas, Quadros, Jango e outros? Aliás, o prazo de
dois anos é considerado insuficiente, mas também é verdade que em outros
países foram menores.
O número de membros é pequeno: 7 pessoas, das quais uma tem competência teórica e ativa em DH (Paulo Sérgio Pinheiro) e outra possui dedicação histórica à defesa de presos políticos: Rosa Maria Cardoso da Cunha.
Os
outros são: um juiz que exige investigar as vítimas, um ex-procurador
inimigo da genética e do aborto de anencefálicos, uma psico-jornalista, e
dois juristas que já foram ministros.
Dito seja
de passagem, o projeto dos direitos humanos é de natureza ética e
social, e tem pouca relação com decorar códigos ou citar latinismos. Por
sinal, esta CNV não se atribui a tarefa de julgar, o que faz
desnecessária a sobrecarga de juristas. Em resumo, 72% da comissão se
especializa em bacharelismo confessional, política conservadora e
generalidades.
Apesar de tudo isto, a CNV é
muito melhor que o silêncio, o que explica o apóio dado a ela por fortes
figuras internacionais. Aliás, não é impossível (embora seja
improvável) obter resultados substantivos.
Drácula no Banco de Sangue
Setores
militares se sentiram inconformados por não ter sido chamados para
integrar a Comissão, mas o ministro da defesa tentou os consolar com um
argumento típico de diplomatas:
“A presença de
militares na comissão não é uma reivindicação. O Brasil não é feito de
civis e militares. Ele [o Brasil] é feito do povo brasileiro”, disse o
ministro. (
Vide)
Ora,
se o Brasil é feito pelo povo, então também é feito pelos militares,
que, obviamente, são parte do povo. Se o governo pretende uma comissão
eclética, deveria incluir algum militar. Todavia, se colocasse um
militar deveria também nomear uma vítima, para manter o equilíbrio.
Aliás, o ministro parece ter sentido medo de dizer claramente que “não
se pode colocar um membro da família Drácula para cuidar do banco de
sangue”. O medo é um mal começo para uma entidade que se propõe analisar
crimes horrendos, cometidos pela mais poderosa das castas.
Os
que têm medo demais não devem meter-se com caras que usam sabres e
bazucas. Para eles, seria melhor estimular outras instituições públicas,
como a Bolsa-Família.
Jumentos de Tróia
Antes
de começar seu funcionamento, alguns dos membros da CNV mostraram que
traziam guerreiros ocultos, mas estes não eram gregos, como os que
abriram as portas da cidade de Tróia para o ataque helênico.
Um magistrado que integra a CNV provocou a indignação do Comitê Paulista da Memória, Verdade e Justiça (CPMVJ). No começo das atividades, definiu o objetivo da Comissão com uma expressão que passou despercebida para muitos. Ele disse:
“É
o compromisso do Brasil com a sua história, com o seu passado, com o
esclarecimento da verdade. Uma chance de se reconciliar.”
Numa sociedade dividida por guerra civil e genocídio, onde um grupo se propõe aniquilar parte do outro (como No Brasil) ou a totalidade (como
na Argentina), levantar o princípio de reconciliação significa
equalizar algozes e vítimas, torturadores e torturados, mutilados e
mutiladores, atiradores e alvos. É dizer aos sobreviventes: “Vocês são quase tão
bons quanto os soldados que estupraram vossas filhas e meteram vossos
filhos no pau-de-arara. Não sejam vingativos e aceitem esta pechincha:
serão tolerados de novo pelas gloriosas FFAA, se ficarem calados.”
A
não reconciliação não implica revanchismo nem ódio. Apenas mostra um
mínimo de saúde mental, uma repulsa ao cinismo, à hipocrisia e à
covardia. Nunca conheci alguém que fizesse cafuné aos algozes de seus
filhos, mas se isto acontecer é necessário lhe oferecer toda a
assistência psiquiátrica possível.
O CPMVJ denunciou a parcialidade deste juiz, que atuou na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CorIDH) contra o direito dos familiares dos assassinados pelos militares. Portanto, ele não cumpre a condição de ser isento, como exige a lei.
Entre a bagagem de outros cavalos de Tróia estão os que afirmam a
impossibilidade de revisar a Lei de Anistia. A CPMVJ deixa transparecer que o governo instalou esta Comissão apenas porque
estava sendo julgado como réu pelo direito internacional. (
Vide)
Quanto a Lei de Anistia, observemos o seguinte: é verdade que o STF considerou estupro, tortura, genocídio e outras atrocidades como crimes políticos, por causa do qual ganhou enorme repúdio internacional. Mesmo assim, os carrascos estão protegidos por esta lei. Isso não pode ser modificado. Entretanto, qualquer parlamento democrático pode derrogar uma lei, e criar outra que não proteja atrocidades.
Investigar Tudo
O juiz membro da CNV tirou
novos coelhos de sua cartola. Disse que “Toda violação dos direitos
humanos será investigada,” se referindo à necessidade de apurar também as “violações” aos DH cometidas pela guerrilha. (sic)
O bacharelismo faz confundir palavras com coisas. A expressão Direitos Humanos, na forma em que foi definida pelas Nações Unidas após a 2ª Guerra, é um termo técnico que indica os direitos básicos da pessoa humana (à vida, à integridade física e psíquica, à liberdade, à dignidade e outros).
A defesa desses
direitos consiste na ação, jurídica, política ou de outra índole,
contra os setores que possuem impunidade para violá-los, ou seja: o
Estado e as forças paraestatais (parapoliciais, jagunços, corporações,
empresas, igrejas apoiadas pelo estado, e outros).
Neste
sentido específico, bem conhecido, “direitos humanos” não são o mesmo
que “todos os direitos onde os agentes envolvidos são seres humanos”. Se
assim fosse, salvo os direitos dos animais (atualmente muito
estudados), todos os direitos seriam humanos.
Estacionar
em local reservado é violar o direito de alguém (um humano, claro!),
que era proprietário da vaga invadida. Um comerciante viola o direito
econômico (também humano), quando dá 10 centavos a menos no troco. A
crença de que os direitos humanos são “qualquer coisa”, parece provir de
uma confusão semântica dos leguleios ou, para sermos mais exatos, da
simulação de que não estão entendendo seu significado, para fazer com
que os algozes levem a melhor parte.
Isto me fez
lembrar o prefeito de uma cidade do NO do México, que fez arrancar
todas as árvores da prefeitura e mandou os funcionários estudar suas
raízes. Explicou assim sua decisão: “Hoje, a profe de meu filho lhe mandou encontrar a raiz quadrada”.
Nenhuma
comissão pode pesquisar as violações aos DH de pessoas sem poder, que
estão fora dos setores dominantes, por razões bem simples:
1)
A Violação aos DH só pode ser feita de maneira sistemática por um
aparato organizado, como a Inquisição, a Polícia, os Exércitos, os
mercenários armados, etc., etc., etc. As forças públicas podem matar,
numa hora de bombardeio, tantas pessoas como um grupo particular,
digamos al-Qai’dah, mata numa década.
Um particular que mata outro numa briga qualquer, por razões x ou y, está violando o direito dessa pessoa a viver, mas não é um violador dos DH no sentido do direito humanitário. A palavra “humano” é tão confusa para este magistrado da CNV, como a palavra “raiz” para o prefeito mexicano.
2)
As Comissões de Verdade, Justiça, Memória, etc., por simples definição,
não são formas paralelas da polícia, do Detran, ou da Guarda Municipal.
Elas são totalmente especializadas e têm como única e absoluta função investigar os crimes cometidos pelos agentes do Estado, apurando sua intensidade, gravidade, autoria, circunstâncias e punibilidade.
Além
destas duas, há numerosas razões de mérito sobejamente sabidas: o
diferente papel do estado e do indivíduo, a total desproporção entre os
supostos crimes das vítimas e as aberrações dos carrascos, e o fato
óbvio de que qualquer violação supostamente cometida pelas vítimas foi
retaliada com penas atrozes muito além do mais aberrante código penal.
Observem que não estamos falando nada sobre a superioridade de uma ideologia sobre outra.
Dividir os Brasileiros
Os algozes e seus marqueteiros temem que as investigações dividam os brasileiros. Ou seja, bizarramente, eles supõem que tortura e massacre mantêm a unidade!
O
assunto da divisão da sociedade pretensamente criada pelas Comissões de
Verdade foi explorado em todos os países que tiveram genocídios, para
impedir que estes fossem apurados, e sempre coloca a mesma descerebrada
ladainha.
A resposta a esta charada é trivial. A sociedade já está dividida.
É óbvio que os torturadores e assassinos de centenas de pessoas
indefensas estão em outra parte da divisão que aquelas que arriscaram
suas vidas (e, às vezes, as perderam), para salvar seus companheiros. Um
hierarca do DEOPS está bem no outro extremo da divisão que alguém alvejado pelo chumbo militar, quando participava da captura de um embaixador que financiava tormentos e massacres.
Aliás, coitada a sociedade sem diversidades!
Isso só poderia ser bom num planeta perfeito, se existisse. Mas, mesmo
assim, exigir essa unidade sugere o fetichismo nacionalista: por arte de
mágica, é suficiente traçar uma fronteira num mapa, para que todos os
que estão dentro sejam iguais. A Unidade, pregada pelos fascistas e imperialistas é um eufemismo para um termo bem mais exato: totalitarismo.
O ex-ministro de defesa reconheceu que a CNV tinha sido negociada
com os militares, e que foi prometido a eles que se investigariam os
crimes dos “dois lados”. Ou seja, esta Comissão, como tantas outras, foi
criada para acalmar as vítimas e não ofender os vitimadores.
Entretanto, se surgir uma autêntica viligância popular, com ajuda internacional, a atividade da CNV pode tornar-se séria.
Lembremos que a CONADEP da Argentina foi criada como um simples espantalho. De 12 membros, apenas um, o filósofo Gregório Klimovsky
(1922-2009), tinha tido contínua participação na defesa dos DH, mas não
a nível internacional. Os outros eram politiqueiros, leguleios, líderes
religiosos, e até colaboradores da ditadura. Apesar disso, o estado
conseguiu, 27 anos depois, punir mais do 1% dos algozes, e quase 10% dos
altos quadros.
Se não houver outras consequências, pelo menos, a CNV já
está gerando consciência e ação política em muitos jovens, que se
manifestam contras as atrocidades cometidas antes de seu nascimento. Ao
mesmo tempo, surgem comissões estaduais e, como componente muito
original, propõe-se a formação de uma CV para a Universidade de São Paulo, uma instituição que foi o celeiro dos ideólogos do fascismo na região.
Outro fato importante é que os blogues de
ódio já manifestam seu medo. Eles dizem: “a esquerda vai difundir
mentiras, que, após muito martelar, vão ser aceitas como verdades.”
Curiosamente,
nós não temos esse medo. Eles podem falar as suas “verdades” e nós
ficaremos contentes de que tenham podido expressar-se. Apenas veremos se
a sociedade as engole.
*GilsonSampaio