No Brasil, pressões de religiosos sobre o governo já ameaçam caráter laico do Estado, diz representante do Unaids
do Estadão
Começa no dia 22, em Washington, a 19.ª Conferência Internacional de
Aids. Sob o tema Virar o Jogo Juntos, o encontro vai enfatizar que os
países precisam agir de maneira mais decisiva no tratamento e prevenção
da infecção pelo vírus HIV. O Brasil, que já se destacou
nesses encontros, pelo seu pioneirismo em políticas públicas de
prevenção e tratamento, não deve aparecer muito bem neste
ano. Na avaliação de Pedro Chequer, representante no Brasil do Programa
Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids), o País vem
perdendo a vanguarda na área de prevenção.
Ele atribui a mudança a pressões de grupos religiosos conservadores, que
estariam obtendo sucesso em suas pressões sobre o Estado brasileiro
para dificultar a disseminação de informações e métodos de prevenção.
Chequer assinala que o Brasil já vive uma situação de ambiguidade, entre
o confessional e o laico, com re flexos no campo dos direitos humanos e
da cidadania.
Na entrevista abaixo, ele observa que o ponto da virada e distanciamento
do conceito moderno de Estado teria sido a assinatura da Concordata com
o Vaticano, em 2008.
Em recente encontro sobre Aids, promovido pelo Ministério da
Saúde, em Brasília, o senhor criticou o governo por ceder às pressões de
grupos religiosos, deixando de conduzir adequadamente políticas de
prevenção da Aids.
Quero dizer, em primeiro lugar, que não sou favorável a qualquer tipo de
cerceamento da liberdade religiosa, um direito fundamental previsto na
Declaração Universal dos Direitos Humanos e também na Constituição do
Brasil. O Estado deve ser laico e deixar fora de sua jurisdição qualquer
matéria de caráter religioso. Esse é um princípio democrático
essencial. Quando falo deste assunto, a minha preocupação é outra. Está
relacionada ao fanatismo religioso, que pode levar a situações extremas,
como a imposição de uma religião única a todos os cidadãos. Quando se
tenta impor princípios religiosos, sejam eles quais forem, também ocorre
uma violação dos princípios da Declaração Universal, que reconhece o
foro íntimo da consciência.
Na sua avaliação o Estado brasileiro não é 100% laico?
Do ponto de vista estritamente legal, sim. Os legisladores brasileiros
sempre se preocuparam com essa questão. A primeira constituição
republicana, de 1891, defendeu a liberdade religiosa e, ao mesmo tempo,
explicitou a laicidade do Estado. Na prática, porém, nos deparamos com
fatos que colidem com esses princípios. Eu citaria como exemplo o
financiamento de atividades religiosas com recursos públicos e a
presença, nos poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, de símbolos
religiosos, como o crucifixo. Exibidos de modo ostensivo, eles deixam
claro a inobservância dos princípios constitucionais. O Estado vive sob
constante pressão de grupos religiosos contrários à sua laicidade.
Poderia citar um exemplo?
Em 1930, sob pressão da Igreja Católica, o governo de Getúlio Vargas
reintroduziu o ensino religioso nas escolas públicas. Isso foi
formalizado na Constituição de 1934 e nas outras, incluindo a de 1988.
Não ficou claro, porém, a quem caberia o ônus dessa atividade. Em 1961, a
Lei de Diretrizes e Bases da Educação estabeleceu que o ônus não seria
do poder público. Quando essa lei foi reformulada, em 1996, o princípio
foi mantido. Logo depois, porém, por pressão da Igreja Católica, sofreu
alteração.
O senhor se refere à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB)?
Sim. Ao criar o Fórum Permanente do Ensino, a CNBB estabeleceu uma
estratégia de pressão politica, com vistas a aumentar sua influência e
fazer avançar os princípios do ensino religioso nas escolas públicas.
Está conseguindo inserir na legislação de cada sistema estadual um
conteúdo interconfessional, com professores credenciados pelas entidades
religiosas, mas inseridos no corpo docente por concursos públicos e
remunerados pelo Estado. O Fórum tem se mostrado extremamente eficaz,
mesmo considerando a maior diversidade religiosa e o aumento da força
das igrejas evangélicas. É interessante notar que a Concordata, que o
Vaticano e o Brasil assinaram em 2008, focaliza particularmente o ensino
religioso nas escolas públicas.
Vê nisso mais um tipo de ameaça ao Estado laico?
A Concordata ocorre num contexto ambíguo, que deixa o Estado brasileiro
entre o confessionalismo e a laicidade. Esse tratado entre Brasil e
Vaticano chegou a ser objeto de oposição por parte de confissões
evangélicas tradicionais. Uma voz que se destacou foi a do pastor
presbiteriano Guilhermino Silva da Cunha, do Rio. Em carta aberta aos
presidentes da República, da Câmara, do Senado e do Supremo Tribunal
Federal, ele denunciou a Concordata por trazer de volta “praticamente
todos os privilégios do padroado”. Em relação ao ensino confessional nas
escolas públicas, considerou que o documento é inconstitucional, pois
“privilegia uma denominação cristã em detrimento de outras e agride a
liberdade religiosa em relação a judeus, budistas, espíritas e
muçulmanos; e agride agnósticos e ateus”.
De que maneira isso ameaça a prevenção da Aids, área na qual o senhor atua?
Em qualquer país do mundo, a incorporação de doutrinas e práticas
religiosas pelo Estado tem reflexos no campo dos direitos humanos e da
cidadania. Na área em que atuo, o que se observa é o surgimento de uma
agenda que obstaculiza os princípios fundamentais da prevenção da Aids, a
partir de evidência científicas. Isso é percebido de maneira clara nos
Estados confessionais islâmicos. Nos Estados Unidos, houve efeito
semelhante na era Bush, quando os princípios teológicos passaram a ser a
referência para o estabelecimento de políticas públicas, com sérios
reflexos em todos os países abrangidos pelo PEPFAR (plano lançado pela Presidência dos Estados Unidos para a redução da Aids no mundo).
Há risco de retrocesso em relação às políticas públicas estabelecidas?
A incorporação – ou mesmo a proximidade do Estado – de princípios
religiosos, notadamente aqueles que demonizam aspectos relativos à
igualdade de gênero, ao respeito a diversidade sexual e à garantia de
direitos às minorias sexuais tem resultado em retrocesso significativo
nas políticas públicas de prevenção da infecção pelo HIV. Sob a égide
desses princípios, o uso do preservativo, por exemplo, é uma prática
condenável.
Pode citar casos em que observa retrocesso?
Podemos citar restrições a campanhas publicitárias que, ao focalizar as
populações mais vulneráveis, tratam a questão da prevenção de modo
aberto e claro.
Isso não é novo. A CNBB interferiu nas campanhas do Ministério da Saúde desde a eclosão da Aids, na década de 1980. O que mudou?
Nas décadas de 80 e 90, a pressão sobre o Estado, com o intuito de
estabelecer parâmetros distintos daqueles cientificamente construídos na
prevenção do HIV, era feita basicamente pela Igreja Católica. Em anos
recentes, porém, ela passou a ser exercida, com maior êxito, por setores
conservadores evangélicos.
Mais uma vez vou pedir que cite exemplos.
Vou citar dois, absolutamente claros. O primeiro foi a proibição do
material didático que se destinava à construção de uma agenda
anti-homofóbica no ambiente escolar.
Está se referindo ao material que ficou conhecido como kit gay?
Sim. Trata-se de um bom material, respaldado por duas instituições
ligadas à ONU – Unesco e UNAIDS. O segundo exemplo foi a proibição da
veiculação da campanha desenvolvida para o Carnaval deste ano. Clara e
direta, foi lançada em um ato publico amplamente difundido, mas não foi
veiculada. Devido a pressões, teve que ser substituída às pressas, por
uma outra, improvisada, inócua e evasiva. A população mais vulnerável
deixou de ser focalizada.
Como vê a ação dos pastores que prometem a cura da Aids?
Apesar da garantia constitucional da pratica religiosa, ela não deve
avançar além do escopo estabelecido para o exercício da mesma. Refiro-me
a essa prática, cada vez mais frequente no cotidiano nacional, da
chamada cura da Aids. Isso tem consequências nefastas para pacientes
que, convencidos de que estão curados, abandonam o uso dos
antirretrovirais, arsenal terapêutico fundamental para a preservação da
vida com qualidade e ampliação da sobrevida dos pacientes. Há dezenas de
relatos de óbitos em todo o pais como consequência dessa pratica.
Acha possível coibir tais práticas?
Diante do fato de que nenhuma instituição do Estado levanta objeções a
esse tipo de ação, o Unaids encaminhou ao Conselho Federal de Medicina
um pedido para que investigue e tome providências para coibi-la.
Qual foi a resposta do Conselho?
Respondeu positivamente e o tema está sob analise.