Carta Aberta a Arnaldo Jabor
Mauro Carrara
Quase perfeitíssimo truão,
Primeiramente, atente ao substantivo, e não desconfie de insulto. Os
bobos da corte são, historicamente, mais que promotores de fuzarca ou
desvalidos a serviço do entretenimento. Os realmente talentosos urdiam
na teia das anedotas a crítica a seus senhores monarcas, traduzindo pela
ironia a bronca popular.
Era o caso do ácido e desengonçado Triboulet, vosso patrono, uma espécie
de grilo falante capaz de estimular as consciências de Luís XII e
Francisco I. Tantos outros venceram no ofício, como o impagável
Cristobal de Pernia, uma espécie de conselheiro extra-oficial de Felipe
IV.
Neste Brasil da pós-modernidade globalizante, el rei Dom Fernando
Henrique Cardoso reviveu a bufonaria. No entanto, empregou-a de modo
diverso, quase sempre como dissimulação hilariante para desviar atenções
de sua ética de conveniência mercantil, tão bem definida por Dom José
A. Gianotti, seu filósofo e encanador.
O ex-monarca utilizou ainda sua trupe de falastrões para promover a
alienante festa pública sugerida por Maquiavel. Portanto, nunca é
exagero te parabenizar pelo empenho profissional. Há anos, na ribalta
televisiva, te devotas a divertir e iludir os ''psites do sofá'', mesmo
depois que o tiranete a quem servias foi apeado do trono. Sempre
diligente, conclamas e incitas, rebolando patranhas tal qual histriônico
cabo de esquadra do restauracionismo.
Recentemente, contudo, causou-me espanto tua fúria salivante para
edulcorar a participação do embusteiro Geraldo Alckmin no embate contra o
grisalho herói de todos os sertões.
Como é próprio de teu ofício, fizeste rir ao embaralhar significados, ao
abusar das hipérboles, ao exceder-se nos adjetivos impróprios, ao
viajar na maionese das idéias desconexas.
No entanto, truão Jabor, prosperou aqui a dúvida. Que quiseste dizer com
o clichê ''choque de capitalismo''? Seria referência ao rombo de R$ 1,2
bilhão legado pelo embusteiro alquimista ao ressabiado governador
Lembo? Ou seria apenas ironia herdada de teus predecessores, na profecia
zombeteira de um novo ''que comam brioches''?
Destacam-se também, como enigmas, tuas dupletas acres de escassa teoria.
São os casos de ''socialismo degradado'', ''populismo estatista'' e
''getulismo tardio''. Eita, nóis! Que essas vigarices binárias nos
viessem, ao menos, com sal de fruta. Né? Ora, de qual ''socialismo''
tratas? Será que resolveste, no supletivo dos sexagenários, estudar a
industrial cultural e as idéias de Adorno? Hum... Pouco provável.
No que tange ao termo ''populismo'', arrisco uma resposta. Tu o
compraste na escribaria de ordenança dos novos donatários. É coisa do
bazar de tolices de Civita e Frias Filho. Acertei? Diga aí...
Mas o que queres dizer com ''getulismo''? Pelo que percebi, escapa-te o
fenômeno à compreensão histórica. Tratas daquele do Departamento de
Imprensa e Propaganda? Ou te referes àquele das necessárias justiças
trabalhistas?
Outros exageros me encafifaram em tua anedota de encomenda. Tratas
lisergicamente de um São Paulo ''rico'', como se construído dos empenhos
da malta quatrocentona. Em teus seminários de apedeuta, desapareceu o
povo. Evaporaram-se João Ramalho, Bartira, Tibiriçá, Anchieta, tantos
mamelucos arabizados, tantos avós europeus aqui remixados, tantos irmãos
nordestinos que ergueram nossos arranha-céus. Teu São Paulo mítico,
tristemente, não admite a antropofagia.
E tem mais... Em tua pregação, o embusteiro Alckmin surge como legítimo
herdeiro da alva elite construtora do progresso. Nesse delírio
pós-positivista e lombrosiano, não há rastro d a gestão criminosa dos
privateiros tucanos, dos sonegadores dasluzeiros, dos pedageiros
corruptos e dos sócios do marcolismo. Não te rendeste ao excesso? Ai,
ai, ai...
Agitando guizos, executas tua prestidigitação. Empregas, em simultâneo, o
sapato pontudo para alojar sob o tapete o sacrifício juvenil na Febem,
as nove centenas de contratos irregulares e o estupendo assalto ao
tesouro da gente bandeirante. Não exageraste? És bufão ou advogado,
truão Jabor?
Entre tuas deformações, tão valiosas ao ofício, suponho até mesmo a
cegueira de um olho. Ignoras o júbilo de milhões de vassalos não mais
famintos, agora metidos a escrever o próprio nome. Vê, quanto
atrevimento! Tampouco registras a voz de ameríndios e afro-descendentes,
agora perigosamente mais próximos de ti, a tomar lugar nos bancos da
universidades. Não enxergas a energia elétrica nos grotões nem o canto
de esperança dos humildes da terra, fortalecidos em cooperativas de
produção.
Depois, qual demiurgo de botequim, dizes que o nasolongo Alckmin é
''incisivo'', enquanto o outro te parece ''evasivo''. Ladino que és,
julgas os combatentes pelo aspecto cênico e não pela natureza das
idéias. No caso do embusteiro alquimista, excedes ao elogiar o
espantalho bélico, aplicadíssimo ao método de stanislavskiano. Ora,
magnífico truão, todos vimos que o herói de todos os sertões é adepto de
outra técnica. Pisa o palco de Brecht, revelando-se como realmente é,
antes que se mistifique no papel de fundeiro de microfone.
Cantaste, portanto, a vitória do ''limpinho'', do ''sem barba'', do
malcriado que imita Tyson. Como líder de torcida, vibraste na platéia,
tuas pernas flácidas saltitando de contentamento, as mãos agitando
invisíveis fitas coloridas. Ah, mas perdeste a razão...
Depois, destilaste teu parvo sarcasmo sobre o ''povo'', sobre a ''mãe
analfabeta'' do operário e sobre os ''pobres'', em suma, sobre esses
todos do ''lado de cá''. Na piada rancorosa, revelaste um desprezo
moldado para a auto-proteção.
Sabes o quanto é doloroso viver deste lado da linha, no território dos anônimos, dos que sofrem e trabalham de verdade.
Se há dialética nesta missiva, agrego teus motivos. Sabes o valor de uma
adoção real, ainda que precises caminhar de quatro, atado à coleirinha
de el rei. Sabes o quanto é estratégica essa assepsia, esse descontato
com o ímpio das ruas, dos campos e das construções.
Assim, me permito uma visita a teu passado. Tua obra ''séria'' resultou,
caro truão, em enorme fracasso. E, disso, bem sabes. Por um tempo, tuas
ventosas de sanguessuga agarraram algumas tetas públicas. Desse modo,
pudeste alimentar teus espetáculos de terceira categoria, ainda que
fizessem rir quando a intenção era pretensiosamente induzir à reflexão.
Incerto dia, pobre de ti, todo o oportunismo de parasita foi castigado,
de modo que te encontraste novamente vadio, mergulhado na mais profunda
frustração. Naquele momento, julgo, buscaste inspiração em Triboulet...
Na Vênus Platinada do decrépito Marinho, iniciaste tua pândega
panfletária, calcada na manipulação marota de cacos de idéias. Nada por
inteiro. Coerente para quem, por natureza, carece de integridade.
Esse flashback permite, portanto, compreender melhor o roteiro cínico.
Tanto faz se teu senhor largou o reino às escuras, se destacou piratas
para pilhar o patrimônio público, se foi incompetente até mesmo para
empreender no capitalismo que tanto celebras. Às tuas costas, no tempo,
estende-se a terra arrasada pela peste do egoísmo, habitada de fariseus
neoliberais e de peruas ridículas e mesquinhas. Por meio da ruidosa
retórica de falso indignado, desvias o olhar público dessa paisagem da
tragédia.
Para seguir o ato farsesco, fazes descer o pano da falácia sinistra do
golpismo lacerdista, da distorção, da maledicência e da
espetacularização do rito inquisitório. Simulas ver aqui, em alto grau, o
que ignoras ali. Na telinha da ''Grobo'', distribui sofismas, injetas
no sangue de Otello a desconfiança, patrocinas a intriga nacional.
Poder-se-ia encontrar em ti o personagem Sacripante. Uma observação
acurada, entretanto, revela mais um Silvério dos Reis das artes cênicas.
Certa vez, me disse Henfil: ''o pior humorista é o que vende sua
comédia aos canalhas que fazem o povo chorar''. Simples, didático, serve
à elaboração de um código de ética de tua categoria.
Pois, tua notícia deturpada do embate, devotado truão, mostrou-se cômico
engodo. Foi lá, teu embusteiro ''truco-lento'' dar com as fuças na
parede. Saiu do campo laureado e enganado, pior que Pirro. Este, menos
imbecil, admitiu que a vitória contra os romanos fora uma tragédia, o
prólogo de sua ruína.
Portanto, o exemplo da derrota também te serve. Decisivamente, ainda que
te gabes, jamais superaste Paulo Francis, o bobo da corte mais destro
nessas artes de sabujo-rabujo. E se cultivas alguma pretensão de
hegemonia, te sugiro mover o pescocinho atrofiado. Pilantrinhas
peraltas, como Mainardi e Azevedo, emparelham já contigo, disputam
hidrofobicamente a suprema magistratura da bufonaria.
E, percebe truão, que a dupla tonto-fascista não te fica a dever: são
também inescrupulosos, traiçoeiros e carregam a poderosa energia do
ressentimento, sem contar que igualmente migraram do fracasso
profissional para a aventura mercenária midiática.
Por fim, adorável truão, ajusta o relógio da tua soberba. Não é hora de
celebrar a ignomínia convertida em comédia. Nem é momento de levantar a
horda de rufiões da ''ética'' para cantar a vitória restauracionista.
Para além dos simulacros do teu moralismo cínico, lambuzado de
paroxismos impróprios, exercita-se o sabre do julgamento público,
implacável, aquele cuja lâmina é afiada pelo tempo. Subiram os
letreiros... Perdeste o charme. Perdeste a graça.
Mauro Carrara - Jornalista
+*GilsonSampaio