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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista
sexta-feira, março 14, 2014
quinta-feira, março 13, 2014
As filhas de servidores que ficam solteiras para ter direito a pensão do Estado
As pensões a filhas solteiras de funcionários públicos consomem por ano R$ 4,35 bilhões do contribuinte – e muitas já se casaram, tiveram filhos, mas ainda recebem os benefícios
RAPHAEL GOMIDE
Era um sábado nublado. No dia 10 de novembro de 1990, a dentista Márcia
Machado Brandão Couto cobriu-se de véu, grinalda e vestido de noiva
branco com mangas bufantes para se unir a João Batista Vasconcelos. A
celebração ocorreu na igreja Nossa Senhora do Brasil, no bucólico bairro
carioca da Urca. A recepção, num clube próximo dali, reuniu 200
convidados. No ano seguinte, o casal teve seu primeiro filho. O segundo
menino nasceu em 1993. Para os convidados do casamento, sua família e a
Igreja Católica, Márcia era desde então uma mulher casada. Para o Estado
do Rio de Janeiro,
não. Até hoje, Márcia Machado Brandão Couto recebe do Estado duas
pensões como “filha solteira maior”, no total de R$ 43 mil mensais. Um
dos benefícios é pago pela Rioprevidência, o órgão previdenciário
fluminense. O outro vem do Fundo Especial do Tribunal de Justiça. A
razão dos pagamentos? Márcia é filha do desembargador José Erasmo Couto,
que morreu oito anos antes da festa de casamento na Urca.
Os vultosos benefícios de Márcia chegaram a ser cancelados por uma
juíza, a pedido da Rioprevidência. Ela conseguiu recuperá-los no
Tribunal de Justiça do Rio, onde seu pai atuou por muitos anos. O
excêntrico caso está longe de ser exceção no país. Um levantamento
inédito feito por ÉPOCA revela que pensões para filhas solteiras de
funcionários públicos mortos custam ao menos R$ 4,35 bilhões por ano à
União e aos Estados brasileiros. Esse valor, correspondente a 139.402
mulheres, supera o orçamento anual de 20 capitais do país – como
Salvador, Bahia, e Recife, Pernambuco.
Ao longo de três meses, ÉPOCA consultou o Ministério do Planejamento e
os órgãos de Previdência estaduais para apurar os valores pagos, o
número de pensionistas e a legislação. Ao menos 14 Estados confirmaram
pagar rendimentos remanescentes para filhas solteiras, embora todos já
tenham mudado a lei para que não haja novos benefícios. Hoje, as pensões
por morte são dadas a filhos de ambos os sexos até a maioridade e, por
vezes, até os 24 anos, se frequentarem faculdade. Santa Catarina, Amapá,
Roraima, Tocantins e Mato Grosso do Sul informaram não ter mais nenhum
caso. Distrito Federal, Ceará, Rio Grande do Norte, Alagoas, Rondônia e
Piauí deram informações incompletas ou não forneceram a quantidade de
pensionistas e o valor gasto. ÉPOCA não conseguiu contato com a Paraíba.
É provável, portanto, que os números sejam superiores aos 139.402
apurados e aos R$ 4,35 bilhões.Uma das pensões polêmicas pagas por São Paulo, a contragosto, vai para a atriz Maitê Proença. Seu pai, o procurador de Justiça Eduardo Gallo, morreu em 1989. Maitê recebe cerca de R$ 13 mil, metade da pensão, dividida com a viúva. Em 1990, Maitê teve a filha Maria Proença Marinho, com o empresário Paulo Marinho, com quem teve um relacionamento por 12 anos, não registrado. A SPPrev cortara o benefício, sob a alegação de que a atriz vivera em união estável. Maitê recorreu, obteve sentenças favoráveis em primeiro grau e no Tribunal de Justiça. Mantém a pensão, ainda em disputa. Segundo seu advogado, Rafael Campos, Maitê “nunca foi casada nem teve união estável” com Marinho, e a revisão do ato de concessão da pensão já estava prescrita quando houve o corte. “O poder público não pode rever seus atos a qualquer momento, senão viveremos numa profunda insegurança jurídica”, diz.
O Rio Grande do Sul paga 11.842 pensões para filhas solteiras, ao custo de R$ 319,5 milhões, média de R$ 2.075 mensais cada. Depois, vêm Paraná (1.703 e R$ 92,5 milhões anuais); Minas Gerais, com 2.314 casos, e gastos de R$ 67 milhões por ano; Sergipe (571, R$ 19,3 milhões), Pará (276), Mato Grosso (198), Bahia (163), Acre (123), Amazonas (31), Maranhão (21), Pernambuco e Espírito Santo (ambos com 17 cada).
O Maranhão paga as maiores pensões entre os Estados brasileiros – R$ 12.084 mensais, em média. Segundo o órgão previdenciário maranhense, todas são pagas a filhas de magistrados e integrantes do Tribunal de Contas do Estado. Amazonas, com benefícios médios de R$ 7.755, e Acre, com R$ 6.798, aparecem em seguida. Por todo o país, há mulheres com três ou quatro filhos do mesmo homem que dizem jamais ter vivido em união estável. “Tenho sete filhos com o mesmo pai, mas só namorava”, diz uma pensionista do Rio. Situação semelhante é vivida pela advogada Tereza Cristina Gavinho, filha de delegado de polícia (salário aproximado de R$ 20 mil), cuja pensão foi cortada, mas devolvida após decisão da Justiça. De acordo com a Rioprevidência, há “sérios indícios de omissão dolosa do casamento/convivência marital com o sr. Marcelo Britto Ferreira, com o qual tem três filhos!!!”. Tereza nega ter vivido com ele. Algumas explicações são curiosas. “O pai dos meus filhos é meu vizinho e é casado”, diz uma mulher no Rio. “Não posso ter união estável porque sou homossexual”, afirma outra. A maioria das fraudes é constatada após denúncias de parentes, geralmente por vingança. “A parte mais sensível do ser humano é o bolso, e aí não tem fraternidade nem relação maternal”, afirma Gustavo Barbosa, presidente da Rioprevidência.
Até os advogados de Márcia e Maitê reconhecem a necessidade de combater irregularidades e abusos. “O risco é tratar os casos sem analisar as peculiaridades. Evidentemente, há abusos que devem ser coibidos”, diz Castro Neves, advogado de Márcia. O maior risco, na verdade, é o Brasil seguir como um país de privilégios mantidos pelo contribuinte.
*umquedemarx
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