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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sábado, abril 12, 2014

Charge foto e frase do dia






































































































































Miguel Nicolelis fala sobre projeto "Andar de Novo"



*TadeuVezzi

“Já fizemos a exumação de Jango. Agora temos que exumar suas reformas”

“Já fizemos a exumação de Jango. Agora temos que exumar suas reformas”


Filho do último presidente civil antes do regime militar, João Vicente Goulart conversou com Fórum sobre os 50 anos do golpe, a intervenção norte-americana na ditadura, Lei da Anistia, Comissão Nacional da Verdade e cenário político no Brasil nos dias atuais: “reforma política é prioridade”
Por Ivan Longo 
Presidente da República entre 1961 e 1964, João Belchior Marques Goulart, popularmente conhecido como Jango, foi deposto pelo golpe militar em 31 de março de 1964 e, a partir dali, viveu exilado na Argentina, onde morreu em 1976.
Com políticas reformistas que, de certa maneira, atingiam privilégios das grandes elites no Brasil, Jango era tido por essa parcela da população, em plena Guerra Fria, como uma “ameça comunista”. Com o apoio de Washington, as elites e as Forças Armadas iniciaram uma campanha de mobilização contra João Goulart, que era vice de Jânio Quadros e assumiu a presidência após sua renúncia.
Cinquenta anos após o golpe que culminou em mais de 20 anos de ditadura contra uma política reformista que Jango pretendia implantar, pairam ainda as dúvidas em relação à sua morte. Em 2013, o Ministério Público Federal, com o apoio da Comissão Nacional da Verdade e da família do ex-presidente, realizou a exumação de seus restos mortais para investigar a possibilidade de ter sido envenenado por agentes do regime.
João Vicente Goulart, que na época da deposição do pai era apenas uma criança, tem hoje 57 anos, é filósofo e dirige o Instituto João Goulart, por onde tenta, à sua maneira, contribuir para resgatar e debater o período da ditadura no Brasil que deixou tantas heranças até os dias de hoje.
Em conversa com Fórum, Goulart enalteceu as conquistas alcançadas com a redemocratização, mas alerta para a necessidade urgente de uma reforma política no país.
Fórum – Qual a importância de rememorar os 50 anos do golpe militar? 
O filho de Jango, João Vicente Goulart. (Foto: ABr)
O filho de Jango, João Vicente Goulart. (Foto: Agência Brasil)
João Vicente Goulart – Acho que a importância nesse momento, dos 50 anos, se reflete exatamente no debate. Depois de 50 anos, nós estarmos debatendo na sociedade brasileira o que houve em 64, significa um novo despertar da história nacional. Acho que, por muito tempo, a ditadura tentou esconder da opinião pública o que foi a “revolução”  de 1964, como eles chamavam, quando na verdade foi um golpe covarde dado contra a Constituição brasileira.
Então, rememorar esses 50 anos é de uma importância fundamental para a história nacional. Ou seja, o golpe não foi dado contra o presidente João Goulart, o golpe foi dado contra um programa que existia no governo João Goulart que era um projeto de nação, um projeto de reforma do Estado brasileiro através das reformas de base. A importância que nós vemos nesse momento é o debate sobre a reforma política, reforma econômica, reforma agrária, reforma tributária, reforma educacional, ou seja, um conjunto de reformas que o Brasil ainda precisa fazer e que não fez 50 anos atrás. Tenho tido uma grata surpresa com o volume que tomou esse debate nas cidades, nos sindicatos, nos movimentos em São Paulo e nas outras cidades, discutindo a reforma do Estado brasileiro. Hoje, os sindicatos realmente reassumiram essa importante fase da história nacional. Acho de fundamental importância nós termos vivido esse período da historia nacional que tentou transformar a sociedade brasileira e sofreu um golpe de Estado. Mais uma vez a máxima de que o governo João Goulart caiu pelos seus acertos e não pelos seus erros está presente no debate público, nas universidades, nos sindicatos, e acho que essa é a grande importância no momento.
Fórum – Há pouco tempo tivemos mais uma edição da Marcha da Família com Deus. Em 1964, o alvo era a suposta “ameaça comunista” do governo Jango. Agora, a “ameaça comunista” do governo Dilma. Qual a relação entre as duas?
Goulart – Olha, primeiramente, em 1964, a Marcha da Família já foi um final da mobilização da conspiração contra o governo Jango. Foi um desfecho. A Marcha foi uma consequência da espionagem que os americanos fizeram para derrubar o presidente Jango, que dentro de sua concepção de democracia e de liberdade, deixava atuar esse tipo de livre e espontâneo pensamento e procedimento. Mas, na verdade, a Marcha da Família vinha sendo insuflada pelo dinheiro americano, ou seja, dinheiro secreto da CIA. O próprio Lincoln Gordon, que era o embaixador dos Estados Unidos no Brasil, em novembro de 2002, aqui em São Paulo, quando lançou suas memórias, disse ter usado 5 milhões de dólares de verba secreta da CIA para desestabilizar, comprar parlamentares, comprar militares e principalmente, fomentar filmes e propagandas pra mobilização contra o governo Jango, dizendo que a família deveria ser preservada e que o comunismo não deveria atingir o Brasil. Tanto é que o governo Jango, em sua fase presidencialista, ou seja, depois de 1963, no plebiscito, onde ele retoma seus poderes presidenciais, foi um governo dos mais curtos, um ano e três meses até o golpe. Durante esse período foram produzidos no Brasil mais de 200 filmes anti-governo Goulart financiados pela CIA. E a Marcha da Família nada mais foi que um desfecho de tudo isso, quando as elites brasileiras contrataram aí um padre americano, o padre Peyton [Patrick Payton] pra vir pregar o anticomunismo no Brasil.
Marcha da Família com Deus pela Liberdade, em 1964. (Foto: reprodução)
Marcha da Família com Deus pela Liberdade, em 1964. (Foto: reprodução)
Vejo as manifestações da Marcha da Família de hoje como uma comparação ridícula daquilo que foi em 1964. Hoje eles não trouxeram mais o padre Payton , tiveram aí alguns gatos pingados nisso, acho que é valido, porque acho que a democracia permite todos os tipos de manifestação, contra ou favor daquilo que quer que seja – o livre pensamento numa democracia é a base social da liberdade. Agora, completamente distante daquilo que aconteceu em 1964. Pregar hoje o anticomunismo quando nem a União Soviética existe mais é uma questão de saudosista, coisa de viúvas da ditadura que 4 ou 5 gatos pingados estão fazendo, mas têm todo o direito de fazer. Não enxergo que as Marchas da Família hoje tenham algum tipo de significado. Nem as próprias Forças Armadas hoje têm essa inspiração como intenção.
A inspiração hoje é desenvolver o Brasil para um país mais justo, para evoluir. Daí a importância desse debate. Acho que através desse debate e dessa reflexão é que nós vamos conhecer novamente, fazer o resgate dessa memoria nacional, para um projeto de reformas de base. Esse sim, adaptado a uma nova circunstância, a uma nova realidade no Brasil, 50 anos depois, poderá vir a ser uma inspiração fundamental para a reforma do Estado brasileiro que nós precisamos fazer. Reforma previdenciária, reforma agrária que está patinando, reforma bancária… Seja ele um governo de esquerda, de direita, de centro, humanista, ou seja lá o que for, todos eles têm que fazer essas mudanças estruturais que precisa para o país sair desse estancamento em que se encontra: econômico, social e humano. Hoje no Brasil nós temos duas sociedades, duas justiças, duas formas de viver, duas formas de olhar o mundo. Então acho que esse debate de reflexão é o importante para que continuemos a unir a sociedade brasileira pra caminhar para um novo desenho de um país mais justo.
Edição da Marcha da Família em 2014, que reuniu cerca de 300 pessoas em São Paulo. (Foto: Marcelo Hailer)
Edição da Marcha da Família em 2014, que reuniu cerca de 300 pessoas em São Paulo. (Foto: Marcelo Hailer)
Fórum – Qual era a real ameaça do governo Jango em relação às elites, apoiadas pelos EUA, a ponto de implantar um golpe de Estado? 
Goulart – Olha, as elites brasileiras, elas sim continuam as mesmas. Elites econômicas, financeiras, políticas que tendem a não querer as reformas por quererem manter seus privilégios, sejam políticos, econômicos, financeiros. Essas elites continuam as mesmas. Então seja talvez o que temem as elites,  que toquem nos seus privilégios. Esses privilégios é o que devemos não deixar ter. Nós temos hoje duas sociedades no Brasil. Uma elite que domina a grande mídia brasileira – onze famílias dominam 90% dos meios de comunicação, bancos internacionais que dominam de 70% a 80% do mercado, sem nenhuma responsabilidade de emprestar um real de seus lucros exorbitantes aqui dentro do Brasil para financiar a agricultura familiar, a educação, sendo que isso fica tudo por conta do Tesouro Nacional. Nós temos aí elites, multinacionais que tomaram conta de nossas telecomunicações, que nós vemos nos próprios meios de comunicação conservadores essas empresas italianas, americanas, francesas remetendo 90% de seus lucros pra suas matrizes e nós aqui continuamos a ter que reclamar com uma gravação de celular ou de uma conta telefônica. Isso é um absurdo.
Então, o debate é exatamente até onde nós vamos manter uma sociedade que preserve essa vantagem a essas elites em detrimento de outra população que existe no Brasil. Nós temos aqui uma elite que ganha salários equiparados à Suécia, a uma Europa desenvolvida e, por outro lado, temos uma sociedade dentro do país com índices de desenvolvimento humano piores que os de Serra Leoa. Temos que ver que esse modelo tem que avançar e, para avançar, tem que distribuir renda e oportunidades. Acho que o grande medo das elites brasileiras é o de perder. E que se debatam as reformas de base que, sem dúvidas, vai mexer no bolso das elites.
Fórum – É o mesmo medo de 64…. 
Goulart – É exatamente o mesmo medo de 64! Evidentemente, esse é um país extremamente injusto em que não se tributa patrimônio, só se tributa salários. Então é uma série de reformas que temos que desenterrar, assim como nós já fizemos com a exumação do presidente Jango, agora temos que exumar suas reformas, por que elas ainda não foram feitas nesse país. Esse é o grande problema que surge desse debate. Por que pensaram que tinham enterrado com o Jango, mas agora a sociedade quer cada vez mais debater as reformas de base do presidente João Goulart.
Jango com o filhos: João Vicente Goulart e  Denize Goulart . (Foto: reprodução)
Jango com o filhos: João Vicente Goulart e Denize Goulart . (Foto: Reprodução)
Fórum – Sabemos que o senhor apoia a revisão da Lei da Anistia. Por que é importante revisá-la? 
Goulart – Independente da punição dos agentes de estado, que a maioria já está no final da vida ou já morreu, independente disso defendo a revisão da Lei da Anistia por que um país que deseja ser a sexta economia do mundo não pode estar fora dos tratados internacionais de direitos humanos. Não cabe em nenhum tratado internacional de direitos humanos, sobre a pessoa humana, ter a prescrição de crimes que lesam a humanidade. Você não pode permitir que nós continuemos com a auto-anistia.
Qualquer país que pretende cicatrizar-se definitivamente dessas feridas deve fazer essa revisão. Isso pra que nunca mais aconteça. Nós temos que parar com essa de que houve uma “ditabranda”, como se a análise de uma ditadura fosse feita pelo número de cadáveres empilhados. Não é por ai. Nós temos que rever  nossa Constituição e transformar os direitos humanos em uma coisa séria, e não em uma coisa que possa ser desviada a qualquer momento. E essa impunidade que houve no Brasil se transfere pros Amarildos da vida, pras polícias militarizadas que estão aí, os grandes cinturões de violência das nossas cidades que foi invertido.
Em 1964, quando se propunha a reforma agrária, somente 25% da população morava nas cidades, 75% morava no campo. Hoje se inverteu. Então nós temos uma série de problemas relativos ainda a essas reformas que transportam a esse passado, e entre elas estão os direitos humanos. Ser um país soberano em direitos humanos é não aceitar esse tipo de dualidade na justiça, dualidade nas prisões, dualidade na forma de conduzir um processo judicial, dualidade na distribuição de crédito, então é essa a visão que nós temos. A importância desse debate é exatamente rediscutirmos o processo de reforma da nossa sociedade, e avançarmos com dignidade, com paz, sem revanchismo, mas avançarmos para que possamos ser uma sociedade mais justa, soberana e mais igualitária.
Fórum – Como você enxerga a postura da presidenta Dilma, que foi torturada, em relação à pressão para a revisão da Lei da Anistia?   
Goulart - A conquista da Comissão Nacional da Verdade é uma conquista pessoal da presidente Dilma. Nunca a vi se manifestar contra a Comissão Nacional da Verdade, pelo contrário, acho que foi ela quem fez todo o esforço para falar, inclusive, contra um setor ainda muito contrário dentro das Forças Armadas para que isso acontecesse. Acho, sim, que ela teve a coragem para levar os processos adiante para a criação da Comissão. Agora, em relação à Lei da Anistia, nós temos que ver que não é um problema do Executivo. Quem outorgou a Lei da Anistia foi o Legislativo, cabe essa discussão dentro do Congresso Nacional. É o Congresso Nacional quem deve se posicionar e uma boa oportunidade agora é em outubro, o que levaria isso ao debate dos eleitores. Por que são eles quem vão eleger os parlamentares para que haja alguma exigência dessa parte.
E outra coisa, a reforma política. A reforma política talvez seja a prioridade de todas elas. Não é mais possível no país você ter representantes parlamentares que representam empresas, grupos, trustes, que não representam o povo brasileiro. Hoje, para eleger um deputado em São Paulo, custa 6 milhões de reais. Quem elege um deputado são empresas, grupos, forças estranhas à vontade popular. Então, a primeira coisa que devemos pensar é a reforma política para que o povo possa ter confiança no Congresso Nacional, legitimidade em seus parlamentares, e não olhe seus representantes como ladrões, como vendedores da pátria, como estão sendo olhados hoje. Uma das coisas principais é a reforma política. Disso aí não vai sair Lei de Anistia, mas quem sabe no futuro… A revisão da Lei da Anistia é algo que cabe ao Congresso Nacional. Porque, do jeito que ela foi feita pelo Congresso, o próprio Supremo Tribunal Federal já invalidou essa lei.
Temos que ter uma iniciativa parlamentar, uma iniciativa que altere, por meio de votação, representativa do povo brasileiro, a Lei da Anistia que foi votada pelo próprio Congresso lá em 1979. Mas temos que ver que isso é um processo lento. Espero que cada vez mais nós possamos ter parlamentares dignos que representem o povo brasileiro, e não grupos, como vem acontecendo regularmente: bancada da medicina, bancada ruralista, bancada evangélica, bancada dos remédios… É uma vergonha o sistema eleitoral que hoje nós temos para eleger esses deputados que não representam o povo, apenas os grupos que os elegeram. De onde tiraram os 6 milhões para serem eleitos? Essas pessoas, esses grupos que os financiaram, é quem mandam no parlamento brasileiro.
Fórum – Como você avalia os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade? 
Goulart – A Comissão Nacional da Verdade já trouxe uma grande transformação na opinião pública brasileira. Nós temos levantamentos de quatro anos atrás, pesquisas de opinião, em que a maioria da população, na época 62%, queria deixar assim como está: “Ah, vamos esquecer tudo isso”. Com os debates da Comissão nós invertemos esse cenário. Sessenta e tantos por cento da opinião pública hoje querem sim uma revisão da Lei da Anistia. Em uma democracia com 200 milhões de habitantes, não é possível que estejamos querendo defender torturador. Isso foi um debate e uma importante reviravolta que a Comissão Nacional da Verdade trouxe diante da opinião pública. Ela vai se extinguir agora em novembro, mas nos deixa um legado importante. Tenho certeza de que o relatório final vai ser no sentido de que o Brasil reveja sua Lei da Anistia, e deixará um legado de milhares de comissões dentro dos sindicatos, dos municípios, universidades, que continuarão a funcionar. E esse legado, ou seja, a geração de novas comissões minúsculas, quanto mais comissões minúsculas tiverem defendendo os direitos humanos, contra a violência contra a mulher, a segregação racial, a homofobia, isso é uma grata herança da Comissão que nos deixa como legado o respeito aos direitos humanos no brasil.
Fórum – Quais a memórias mais remotas que você tem do seu pai? Já tinha algum tipo de percepção do que estava acontecendo? 
Em 1961, o então presidente João Goulart. (Foto: reprodução)
Em 1961, o então presidente João Goulart. (Foto: reprodução)
Goulart – Evidentemente que a memória de uma criança de sete anos são flashes. Nos só viemos a notar, a sentir o volume dessa tragédia depois do exílio. Então, as memórias são muito esporádicas. Estou escrevendo um livro sobre o exílio do meu pai, acho que até o final do ano a gente publica, que são os restos das memórias que ficaram quando criança. Mas a tragédia na época não foi denotada por uma criança de sete anos. Foi algo diferente. Não sabíamos por que estávamos saindo do pais etc.
Fórum – Quais as principais suspeitas que sustentem a hipótese de que Jango foi morto pela ditadura? 
Goulart – O pedido de investigação sobre a morte do presidente João Goulart foi feito em 2007, muito antes da Comissão Nacional da Verdade. Entramos com um pedido de investigação através do Instituto João Goulart, até porque se tivéssemos feito através da família, teríamos a resposta lacônica de o crime de assassinato prescrever em 20 anos. Então ingressamos com esse pedido através do instituto e colocamos o Jango como um bem cultural e material da nação brasileira. Fizemos a solicitação no sentido de que é uma obrigação que o Estado tome a consciência de que se trata de um ex-presidente da República.
Os indícios são os mais variados. Temos declarações de ex-agentes secretos, documentos que foram liberados, que revelam agentes roubando e tirando cartas e documentos pessoais da gaveta do quarto de meu pai no exílio, documentos do Departamento de Estado Americano dizendo ao seu embaixador no Uruguai que já tinham conhecimento dos assassinatos seletivos que estavam sendo operacionalizados pelo Brasil, Argentina e Uruguai e que ele não se metesse dentro da diplomacia americana, deixasse acontecer e não tentasse impedir esse ou aquele atentado. Os indícios são os maiores possíveis, gravações que temos de uma série de pessoas… Agora cabe ao Ministério Público levar pra frente ou não.
Nós levamos à frente a exumação como um dos meios que a família autorizou, com os poderes da Comissão Nacional da Verdade, para facilitar essa investigação, mas não é um fim. A exumação e a análise dos restos mortais poderá não ser conclusiva até pelo tempo que passou. Agora, temos, dentro desse pedido, outros pedidos, que é a oitiva de três agentes americanos que moram sob proteção dos Estados Unidos. Outros países já fizeram oitivas e investigaram seus mortos, cabe ter coragem política para isso. E isso cabe ao Ministério Público. Recentemente, pela demora, por duas vezes, o Ministério quis arquivar o caso, mas a própria subprocuradora da Procuradoria Geral da República mandou reabrir por que não concebia, com tantos indícios, que o MPF do Rio Grande do Sul não quisesse tocar essa investigação a frente. A própria Argentina encabeçou um processo criminal que tinha na província de Corrientes, na investigação da morte de Jango, e levou para o Ministério Público Federal de Buenos Aires, e o próprio procurador já disse que a Argentina não vai perder tempo em investigar. Se tiver que pedir oitiva dos agentes, a Argentina vai pedir. E aí vai ficar meio chato pros brasileiros, né?
A nossa investigação, desde 2007 dormindo lá no Ministério Público Federal do Rio Grande do Sul, até hoje não pediu oitiva dos agentes, não abriu ação cautelar que permitiria ao juiz ir aos Estados Unidos para fazer as oitivas, e daqui a pouco a Argentina estará mais avançada nessa investigação, investigando a morte de um ex-presidente cuja obrigação é do Brasil.
Honras militares e homenagens a Jango em Brasília, após a exumação de seus restos mortais, em 2013. (Foto: ABr)
Honras militares e homenagens a Jango em Brasília, após a exumação de seus restos mortais, em 2013. (Foto: Agência Brasil)
Fórum – Em relação ao cenário político atual: qual sua visão a respeito das jornadas de junho do ano passado e das manifestações que perduram ainda hoje? Você acha que há, de fato, uma retomada de consciência política? 
Goulart – Mas sem dúvidas! Parabenizo os movimentos de junho e acho que qualquer governo que se autointitule democrático não pode criminalizar esses movimentos. Qualquer governo democrático tem que fazer como o presidente João Goulart: ir ao encontro das massas que estão reivindicando nas ruas e na praça que é do povo – como dizia ele, “a praça só ao povo pertence”. A democracia é um sistema político que representa a maioria, mas existem as minorias que são excluídas e que devem ser escutadas. E cabe aos representantes das maiorias escutarem essas minorias, senão, termina com a democracia. Vira uma democracia relativa. Ou seja, no momento em que um governante não vai ao encontro dessas aspirações, por menores que possam ser esses grupos, ele não pode se dizer um governo democrata.
Evidentemente, nós temos que conviver com isso e a Copa é um grande momento para essas manifestações se fazerem presentes. É um momento em que o mundo inteiro estará olhando para o Brasil. E talvez seja nessa hora que o mundo inteiro tenha que saber que nós temos grandes problemas. Temos riquezas, grandes famílias muito ricas, mas temos uma imensa maioria sem escola, sem acesso às riquezas nacionais, sem acesso à distribuição do crédito. É um momento oportuno para que essas manifestações se façam presentes e deem esse conhecimento ao mundo. Ou talvez queiramos esconder que temos problemas sociais, econômicos, políticos, raciais? Não. Nós temos que conhecê-los e ir ao encontro dessas manifestações. O clamor dessas manifestações é o que faz a democracia caminhar.
Fórum – Em que aspectos você acredita que o país tenha avançado desde a redemocratização? Por qual bandeira lutar agora? 
Goulart – Foi um longo caminho, vinte e um anos para reconquistar a democracia e a liberdade. A democracia é um bem muito precioso que temos que ir polindo e aperfeiçoando. Mas nenhum sistema representa mais a maioria e a vontade popular que a democracia. Nós temos que cuidar muito de nossa democracia e avançar cada tanto dentro dela para que possamos atingir os meios sociais. Não podemos construir uma democracia que atenda só setores, sejam eles econômicos, políticos ou financeiros. Uma democracia tem que atender ao clamor da maioria e a maioria são as classes desprotegidas. Acho que, na parte de democracia e liberdade, temos conseguido hoje o maior tempo, 25 anos sucessivos de presidentes que passam a faixa um para o outro sem interrupção ditatorial ou golpista. Agora, nós temos que avançar. E para avançar nós temos que reformar o Estado brasileiro, em benefício dessas novas gerações e desses novos clamores populares. Não podemos ignorar as manifestações de junho, os rolezinhos e aquelas pessoas que estão marginalizadas em nossa sociedade. Por ai que nós devemos caminhar e aperfeiçoar nossa democracia, para que atenda a todos.
Fórum – Quais são os trabalhos realizados pelo Instituto João Goulart? 
Goulart – Bom, o Instituto João Goulart – fazemos 10 anos agora em dezembro – é um instituto criado para restaurar a figura e a trajetória do presidente João Goulart. Nós viemos lutando pela passagem desses 50 anos do golpe há mais de 5 anos, e temos feito algumas grandes conquistas. Já fizemos dois documentários, um com a TV Senado – “Jango em 3 atos”. Esse documentário, inclusive, foi o que gerou a confissão desse agente que estava preso aqui no Brasil. Foi através desse depoimento dele para este filme que se gerou o processo de investigação. Fizemos recentemente um outro filme com o Canal Brasil, que é o “Dossiê Jango”, e estamos em produção agora de um novo filme, talvez para 2015, com direção do Roberto Farias, chamado “Como matar um presidente”, que não vai ser documentário, mas uma ficção baseada em fatos reais. E a coisa mais importante que estamos lançando, depois de 7 anos, é concessão de um terreno em Brasília para homenagear a democracia e a liberdade no nosso país, que terá o nome do presidente João Goulart. É uma obra, talvez a última do professor Niemeyer para Brasília, e agora nós estamos nessa campanha de arrecadação de fundos para conseguirmos recursos para a obra. Devemos lançar ainda esse ano.
Nosso grande desafio é deixar para as novas gerações um espaço. Não será um museu. Vai ter um caráter de hiperatividade. Vai ser um espaço de geração de ideias, onde possa ser discutida a reforma agrária, possa ser discutido o movimento dos rolezinhos, a saúde e a educação “padrão FIFA”. Vai ser um gerador de ideias. E isso é o grande desafio do instituto, uma vez pronto, fazer com que esse espaço se torne um guardião da democracia e da liberdade no Brasil.
Fórum – Você tem alguma aspiração política? 
Goulart – Sempre digo o seguinte: fazer política muitas vezes não é necessariamente eleitoral. Tudo o que estamos fazendo é, sem dúvida alguma, um transporte da ideologia política para a atualidade. Acho que estamos prestando um serviço maior que um mandato administrativo nessa atualidade parlamentar que existe. Então, pelo momento, não. Não temos nenhuma aspiração política eleitoral, nós temos aspirações políticas para a sociedade brasileira, de mudança. Isso são aspirações do presidente João Goulart. É uma luta que vamos travar dentro dos sindicatos, dos movimentos sociais, do dia a dia, não necessariamente por meios eleitorais.
E temos tido grandes conquistas. Outro dia mesmo o instituto esteve presente com seis senadores na presidência do Senado, falamos com o presidente Renan [Calheiros], sugerimos a ele que seria um grande momento para que o Senado brasileiro enviasse uma carta ao Joe Biden, o vice-presidente americano, presidente do Senado, como uma maneira de, 50 anos depois do Golpe, termos condições de liberar novos documentos para que cada vez mais a Academia consiga restaurar essa triste história do golpe no Brasil  – a qual, inclusive, teve assistência americana, né. Essas ações políticas são mais importantes que uma ação parlamentar nesse Congresso que temos hoje.
Foto de capa: Luciana Whitake/RBA
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