A caça aos passaportes e o macartismo à brasileira
O
ministro Joaquim Barbosa determinou aos 25 réus condenados no processo
do chamado “mensalão” que entreguem seus passaportes no prazo de 24
horas - além de inclui-los na lista de “procurados” da PF. A alegada
medida “cautelar” está prevista em lei para determinados casos, como
informou Carta Maior em reportagem de Najla Passos.
Neste,
porém, a decisão vem contaminada de um ingrediente que orientou todo o
julgamento da Ação Penal 470 e lubrificou a parceria desfrutável entre a
toga e a mídia.
Trata-se da afronta ao princípio básico da presunção
da inocência, esquartejado em nome de uma panaceia complacente
denominada “domínio do fato”. Ou, “o que eu acho que aconteceu doravante
será a lei”.
A caça aos passaportes sem que se
tenha esboçado qualquer disposição de fuga (apenas um dos 25 réus
ausentou-se do país antes do seu julgamento e, ao contrário, retornou a
ele antes de ser condenado) adiciona a essa espiral um acicate político.
Trata-se
de uma aguilhoada nos réus que formam o núcleo dirigente do PT, com o
objetivo explícito de joga-los contra a opinião pública, justamente por
manifestarem críticas à natureza do processo.
A
represália é admitida explicitamente. Segundo o relator Joaquim Barbosa,
os réus estariam “afrontando” a corte ao questionar suas decisões.
O
revide inusitado vem adicionar mais uma demão à fosforescente tintura
política de um processo, desde o seu início ordenado por heterodoxias
sublinhadas pelo revisor Ricardo Lewandowski.
O
propósito de provocar a execração pública com a caça aos passaportes e a
inclusão provocativa na lista de “procurados” da PF, remete a um método
que se notabilizou em um dos mais sombrios episódios da democracia
norte-americana: o macartismo.
O movimento da
caça aos comunistas no EUA, nos anos 50, embebia-se de um contexto de
violência gerado pela guerra fria, mas aperfeiçoaria suas próprias
turquesas nessa habilidade manipuladora.
O
senador republicano Joseph Raymond McCarthy, seu líder, tornou-se um
virtuose na arte letal de condenar suspeitos à revelia das provas,
liderando uma habilidosa engrenagem de manipulação da opinião pública,
coagida pelo medo a aplaudir linchamentos antes de se informar.
Joseph
McCarthy teve uma vida cheia de dificuldades até se tornar a grande
vedete da mídia conservadora, cujo endosso foi decisivo para se tornar a
estrela mais reluzente da Guerra Fria. Sem a mídia, seus excessos e
ilegalidades não teriam atingido um ponto de convulsão coletiva, forte o
suficiente para promover a baldeação do pânico em endosso à epidemia de
delatar, perseguir, acuar e condenar - independente das provas -,
muitas vezes contra elas.
McCarthy nasceu no
estado do Wisconsin, no seio de uma família muito pobre da área rural.
Estudou num estábulo improvisado em sala de aula. Sua infância incluiu o
trabalho braçal em granjas. Quando pode, mudou-se para a cidade,
fazendo bicos de toda sorte para sobreviver. No ambiente de salve-se
quem puder produzido pelo colapso de 29, era um desesperado nadando
sozinho para não se afogar no desespero da Nação. Nadando sem parar
recuperou o tempo perdido em um curso de madureza que lhe adiantou
quatro anos em um. Tornou-se advogado em 1936. Três anos depois, nadando
sempre para não submergir, foi aprovado em um concurso como juiz;
ingressou no Partido Republicano que o conduziria ao Senado, em 1946.
À
trajetória aplicada e disciplinada veio somar-se então o oportunismo de
alguém determinado a não regredir jamais à condição de origem.
Aproveitando-se das relações partidárias, Joseph McCarthy aproximou-se
de Herbert Hoover, chefe do FBI, pegando carona na causa anti-comunista
que identificou como uma oportunidade em ascensão.
O resto é sabido.
Em
dueto carnal com a mídia extremista, passou a liderar o Comitê de
Atividades Anti-Americanas no Congresso. Desse promontório incontestável
no ambiente polarizado dos anos 50, acionou sem parar a guilhotina
anti-comunista. Tornou-se um simulacro de Robespierre da ordem
capitalista ameaçada pelo urso vermelho. Pelo menos era assim que vendia
seu peixe exclamativo listando suspeitos – e “atitudes suspeitas” - em
todas as esferas do governo e do próprio estamento militar.
O
arsenal do terror vasculhava cada centímetro da sociedade. Mas foi
sobretudo no meio artístico e intelectual que o garrote vil implantou a
asfixia das suspeição generalizada, em cujo caldeirão fervia o ácido
corrosivo das perseguições e da coação insuportável, não raro motivadora
de episódios deprimentes de delação.
Chaplin,
Brecht, Humphrey Bogart foram algumas das vítimas da voragem macartista.
As provas eram um adereço secundário no espetáculo em que se
locupletavam jornais e oportunistas de toda sorte. Nem era necessário
levar os suspeitos aos tribunais. O método da saturação combinava
denúncias com a execração pública automática. Num ambiente de suspeição
generalizada o efeito era eficaz e destrutivo.
Raras
vozes erguiam-se em defesa dos perseguidos. O risco era se tornar a
próxima vítima no redil da suspeição. A condenação antecipada
encarcerava os denunciados numa lista negra que conduzia à prisão moral
feita de alijamento social, político e profissional. Frequentemente
levava a um isolamento pior que o das penitenciárias. A destruição da
identidade equivale a morte em vida. Alguns preferiram o suicídio ao
destino zumbi.
McCarthy morreria em maio de 1958,
desmoralizado por um jornalista conservador, mas sofisticado e
corajoso, que resolveu afrontar seus métodos e arguir casos concretos de
arbitrariedade.
Edward Murrow, cujo embate com
McCarthy inspirou o filme “Boa Noite e Boa Sorte”, tinha um programa na
internet de então, a TV em fraldas. No seu See it now, ele colhia
provas de casos concretos de injustiça e esgrimia argumentos sólidos
contra o denuncismo leviano. Não recuou ao ser colocado na lista negra e
trincou a reputação do caçador de comunistas a ponto de levá-lo a ser
admoestado pelo Senado.
Em um confronto decisivo, Murrow emparedou o consenso circular em torno de McCarthy com uma frase: “Se
todos aqueles que se opõem ao senhor ou criticam seus métodos são
comunistas (como McCarthy acusava) - e se isso for verdade - então,
senador McCarthy, este país está coalhado de comunistas!”
O
Brasil não é os EUA da guerra fria, nem está submetido a comandos de
caça aos comunistas, como já esteve, sob a ditadura militar, contra a
qual alguns dos principais réus da Ação Penal 470 lutaram com risco de
vida.
Certa sofreguidão condenatória, porém,
ecoada de instâncias e autoridades que deveriam primar pela isenção e o
apego às provas e, sobretudo, as sinergias entre a lógica da execração
pública e o dispositivo midiático conservador - que populariza o excesso
como virtude na busca de um terceiro turno redentor para derrotas
eleitorais sucessivas - bafejam ares de um macartismo à brasileira nos
dias que correm.
Foi o que advertiu, com
argúcia, o jornalista, professor e escritor Bernardo Kucinski, autor do
premiado “K”, obra em que narra a angustiante romaria de um pai em busca
da filha nos labirintos da ditadura militar brasileira.
Nas palavras de Bernardo Kucinski: “Estamos
assistindo ao surgimento de um macartismo à brasileira. A Ação Penal
470 transformou-se em um julgamento político contra o PT. O que se acusa
como crime são as mesmas práticas reputadas apenas como ilícito
eleitoral quando se trata do PSDB, que desfruta de todos os atenuantes
daí decorrentes. É indecoroso. São absolutamente idênticas. Só as
distingue o tratamento político diferenciado do STF, que alimenta assim a
espiral macartista. O mesmo viés se insinua com relação à mídia
progressista. A publicidade federal quando dirigida a ela é catalogada
pelo macartismo brasileiro como suspeita e ilegítima. Dá-se a isso ares
de grave denúncia. Quando é destinada à mídia conservadora , trata-se
como norma.
O governo erra ao se render a esse ardil. Deveria, ao
contrário, definir políticas explícitas de apoio e incentivo aos
veículos que ampliam a pluralidade de visões da sociedade brasileira
sobre ela mesma. Sufocar economicamente e segregar politicamente a
imprensa alternativa é abrir espaço ao macartismo à brasileira”.
Dirceu diz que retenção de passaportes é “populismo jurídico” de Barbosa
Procurador-geral da República afirma que vai reiterar pedido de prisão imediata dos réus condenados no julgamento do mensalão
A
decisão tomada pelo relator do processo do mensalão, ministro Joaquim
Barbosa, de determinar o recolhimento e a retenção dos passaportes de
todos os réus condenados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no
julgamento da Ação Penal 470 foi duramente criticada ontem (8) pelo
ex-ministro da Casa Civil, José Dirceu, em seu blog na internet.
Condenado pelos crimes de corrupção ativa e formação de quadrilha,
Dirceu afirmou que a decisão de Barbosa “é puro populismo jurídico e
uma séria violação aos direitos dos réus ainda não condenados, uma vez
que o julgamento não acabou e a sentença não transitou em julgado”.
Dirceu lembra que cabem recursos ao veredicto dos ministros mesmo após a publicação do acórdão pelo STF: “(A
decisão de reter os passaportes) mostra-se também exagerada porque
todos os réus estão presentes por meio de seus advogados legalmente
constituídos e em nenhum momento obstruíram ou deixaram de atender às
exigências legais”, disse o ex-ministro.
Ao justificar sua decisão em despacho enviado aos demais ministros do STF, Barbosa afirmou tratar-se de “medida
cautelar não apenas razoável como imperativa, tendo em vista o estágio
avançado das deliberações condenatórias”. “Alguns dos acusados vêm
adotando comportamento incompatível com a condição de réus condenados.
Uns, por terem realizado viagens ao exterior na fase final do
julgamento. Outros, por darem a impressão de serem pessoas fora do
alcance da lei, a ponto de, em manifesta afronta ao STF, qualificar como
política a árdua, séria, imparcial e transparente atividade
jurisdicional a que vem se dedicando esta corte”, disse o relator.
Mesmo
sem citar nomes em seu despacho, Barbosa aludiu aos réus Henrique
Pizzolato e Romeu Queiroz, que viajaram ao exterior durante o
julgamento. Já o réu que estaria, segundo o relator, afrontando o STF
seria o próprio Dirceu, que em nenhum momento deixou de se manifestar em
seu blog e hoje voltou a fazê-lo: “Os argumentos (de Barbosa)
cerceiam a liberdade de expressão e são uma tentativa de constranger e
censurar, como se os réus não pudessem se defender e, mesmo condenados,
continuarem a luta pela revisão de suas sentenças”, escreveu o ex-chefe da Casa Civil.
Sobre suas “afrontas” ao STF, Dirceu afirmou que em nenhum momento desrespeitou a corte: “É
importante ressaltar que eu nunca me manifestei sobre o mérito dos
votos dos ministros ou sobre a legitimidade e o respeito à corte. Sempre
respeitei as decisões do Supremo Tribunal Federal, uma vez que lutei
pela nossa democracia, mesmo com risco à minha própria vida”, disse. O ex-ministro, no entanto, reafirmou seu direito a provar sua inocência: “Nada
vai me impedir de me defender em todos os foros jurídicos e
instituições políticas. Mesmo condenado e apenado, não abro mão de meus
direitos e garantias individuais, do direito de me expressar e
contraditar o julgamento e minha condenação”, afirmou, antes de dar uma alfinetada direta em Barbosa: “Nenhum
ministro encarna o Poder Judiciário. Não estamos no absolutismo real.
Nenhum ministro encarna a nação ou o povo. Não estamos numa ditadura”, disse.
Outra
decisão que certamente incomodará José Dirceu e os demais réus
condenados no julgamento do mensalão foi anunciada hoje pelo
procurador-geral da República, Roberto Gurgel. Durante reunião do
Conselho Nacional do Ministério Público, Gurgel afirmou que vai reiterar
o pedido – já feito no momento da apresentação da peça de acusação – de
prisão imediata dos condenados: “Não é uma questão de necessidade, mas de dar efetividade à decisão de condenação”, disse.
*OCarcará