As redes sociais devem ressignificar o conceito de espaço público,
configurando-o, na medida em que o torna mais ativo em relação ao
levantamento de opiniões, reflexões, diálogos, etc. E isto é o que deve
ser mantido, não seu inverso, ou seja, um espaço do deslumbramento com a
crítica esmaltada, a ideia de aprendizagem por “osmose”,
compartilhamento de textos que não são lidos, etc.
“Se não fosse o Facebook do homem branco todos já estariam mortos”
Líder Kaiowá Elizeu Lopes, falando sobre a situação da tribo,
em audiência pública realizada no dia 01 de novembro, 2012
Estivemos à frente de uma grande manifestação a favor dos
Guarani-Kaiowá, travada nas redes sociais, em especial no Facebook. E
não se tratou de uma manifestação vã. Inspirada em Deleuze e Pierre Lévy
eu diria que a potencialidade do virtual sobre as realizações na nossa
realidade comum é inegável. Vivenciamos uma magnífica confluência da
nossa extensão existencial nas redes sociais com algumas decisões
importantes de nossa existência não virtual.
Mas o que me incomoda é como há ainda uma grandiosa ingenuidade
permeando o que deveria ser senso crítico. Falam sobre as terras dos
Guarani-Kaiowá com um tamanho frisson, que a crítica, ou, pra ser mais
precisa, a luta, está em muitos aspectos mais próxima de uma agitação ou
de uma folia da indignação do que de uma luta que faz a reflexão
invadir aonde ela chegue.
As redes sociais devem ressignificar o conceito de espaço público,
configurando-o, na medida em que o torna mais ativo em relação ao
levantamento de opiniões, reflexões, diálogos, etc. E isto é o que deve
ser mantido, não seu inverso, ou seja, um espaço do deslumbramento com a
crítica esmaltada, a ideia de aprendizagem por “osmose”,
compartilhamento de textos que não são lidos, etc. Esta ideia da
urgência de um espaço público plenamente crítico não é, ademais, de
nenhuma maneira algo recente, já que foi defendida, embora em outras
condições, por filósofos como Hannah Arendt e, com mais força, por
Jürgen Habermas. Então, a proposta aqui não se propõe inauguradora, mas
contributiva ou reflexiva.
Desde 1500 os índios sofrem com o – assim chamam os índios - “homem
branco”. A década de 80 foi marcada por uma série de atrocidades. E
ainda hoje elas ocorrem. Contudo, agora temos o domínio de uma rede
social com um poder comunicativo que vem superando as imprensas
hegemônicas. Nós fazemos a matéria, a denúncia. Não esperamos mais por
aquele jornalista poetizado e heroi que, de certa forma, era tutor da
informação que nos chegava, e nos entregava uma informação de pouca
expansão. Agora, com o uso incisivo do Facebook, uma situação como a dos
Guarani-Kaiowá não passou batida. O compartilhamento de vídeos,
informes e denúncias sobre o tema não nega isso. No entanto, há um
problema: O discurso da indignação ou da comoção, que é, a meu ver, um
pouco distante da crítica e a ela se confunde, ao mesmo tempo.
A indignação e a comoção movem as denúncias nas redes sociais. Foi isso o
que moveu a luta virtual a favor dos Guaranis Kaiowás. Porém, acredito
que isto não basta. É preciso uma ação não apenas comovida ou indignada,
mas uma ação crítica. Embora a crítica muitas vezes instaure uma
comoção ou indignação e vice-versa, quero dizer que a comoção ou
indignação não precisa ser totalizante. Uma ação comovida no facebook,
por exemplo, é passageira, porque os deslumbramentos e espantos com
novas conjunturas chegam para substituir os antigos sentimentos e as
antigas conjunturas. Já a crítica embasada, permanece.
Em relação à proposta de iniciativa virtual, não se trata de pensar que
todos tem a obrigação de fazer de seus murais espaços para reivindicação
de melhores condições aos índios. Nem todos querem usar seu facebook ou
qualquer outra rede social com intenções de manifesto político. O ideal
é apenas que a maioria, senão todos, partilhem a motivação para o
reconhecimento, seja de modo ativo ou passivo, das possibilidades de
contribuição do ciberespaço aos índios.
Agora esse é o momento pensarmos também sobre direitos em relação a
outras situações tanto dos Guaranis, como dos outros indígenas. A
própria Fundação Nacional do Índio (FUNAI), que se propõe proteger os
índios é um vilão para eles, com certas negligências, como, por exemplo,
o desfalque da distribuição de cesta básica durante meses para os
Guarani-Kaiowá. O Serviço de Proteção ao Índio (SPI) chegou a fechar
acordos com fazendeiros a favor da subjugação de índios para trabalharem
em suas próprias terras roubadas e, em caso de trabalho improdutivo,
serem expulsos. Foi o caso dos Xavante que tiveram terras roubadas pela
família Ometto e a fazenda Suiá-Missú, no Mato Grosso do Sul.
Recentemente a polícia federal matou um indígena Muduruku e deixou
vários índios feridos. E, outro caso particular, mas não menos
impactante: uma índia Guarani-Kaiowá foi estuprada por quatro
pistoleiros há um só tempo. Enquanto se revezavam, mantinham a faca no
seu pescoço. Ainda mais recente é o caso do cacique da aldeia Remanso
Gwasu que, na segunda quinzena de janeiro, foi atingido por pistoleiros.
Na década de 80 os Xikrin do Catete tiveram suas terras invadidas para a
extração de madeira. As terras Yanomami estão sendo invadidas por
garimpeiros. Só entre 1987 e 1992 foram mortos em média 1500 Yanomami.
Sem contar a invasão do garimpo na Reserva Raposa Serra do Sol, uma área
com várias etnias indígenas (dentre elas Wapixána Eingaripó, Macuxí,
Taurepang).
Poderia me demorar aqui comentando praticamente ad ifinitum as
atrocidades de ontem e de hoje... E, acrescento, os casos atuais são
vários e faz-me recordar parte do enredo da obra Macbeth de Shakespeare,
na qual Malcolm, o filho do rei morto, pergunta a Ross: “Qual a última
desgraça?”, e ele lhe responde: “Referir a de há uma hora faz quem a
narra ser vaiado; a cada instante se procria alguma nova”.
Parece importante acrescentar que o Brasil “não existe” para os índios. E
as terras também não existem para eles como existem para nós. A noção
de país é nossa. E de terra como propriedade privada também. O Brasil
dos Índios é uma vastidão de natureza sagrada. As terras são sagradas e
são deles não por uma finalidade de capital financeiro, mas por um
princípio do cuidar daquilo que é sagrado. Deus dá a terra para o “homem
branco” explorar. Os deuses dão a terra ao índio para que ele cuide
dela.
Como pensou o antropólogo Lévi Strauss, os índios são iguais ao “povo
civilizado”. A única diferença cabal é que os índios procuram preservar,
e nós procuramos destruir. Eu acrescentaria que os índios vivem para
contemplar, e nós vivemos para criar. Parece um condicionamento
fortemente cultural e quase indelével. A questão é: como fazer essas
forças existirem sem grandes problemas? Com a abertura para a
convivência. Sem isso, não há como. Não há nada mais unível que criação e
contemplação. O criar do homem branco não pode amedrontar o contemplar
do homem índio. E o contemplar do homem índio deve encorajar a criação
do homem branco a ser mais criativa e menos decadentista, no meu ver, o
mesmo que progressismo.
Muito sangue, muito trabalho foi retirado dos índios para agora estarmos
na nossa zona de conforto, apreciando as maravilhas de uma “sonhada
civilização” (ou seria civilização sonhadora?).
Nós não viemos para apenas trabalhar ou ganhar a vida no Brasil. Viemos
armados, prontos pra escravizar e maltratar vidas e tornar o país
brasileiro, outrora rico, um país “miserável”, cheio de horror e ódio
floreado com poesias portuguesas e estéticas cristãs.
Sejamos sensatos para assumir que todo o Brasil é um grande roubo de
terra indígena. O Brasil é o maior furto geográfico da América Latina.
Nós somos os intrusos.
Nunca deixaremos de ser intrusos, enquanto ferirmos a terra. A
exploração da terra foi por nós confundida com a subjugação da terra.
Para reverter o nosso caráter opressor, nós, intrusos, precisamos nos
unir aos índios. E isto não significa se tornar um deles. É muito mais: É
reconhecê-los dentro de nós, porque nos colocamos dentro deles. É ver
que isto não impede de sermos parte do outro universo que não o
indígena, assim como não impede que os índios façam parte de seu modus
vivendi natural. É preciso trocarmos a intrusão pelo princípio de
coabitação. Eles devem nos ser sagrados porque nos receberam com
inocência em suas terras sagradas. A bondade indígena não foi uma arma
para a destrutiva atividade do homem branco, ao contrário, foi um
trampolim. Não deveríamos ter saído às ruas em favor apenas dos
Guarani-Kaiowá, mas por todos os indígenas. Ao lado disso poderíamos e
podemos reescrever a história a partir da ação e da disposição de
criticar a já existente história mal feita, como afirmava Brecht,
escrita pelos vencedores.
E por falar história, não poderia deixar de fora que o problema da
demolição do Museu do Índio, localizado na região norte do Rio de
Janeiro, não é nada que deva nos causar tanto frisson. A memória
nacional do índio nem mesmo alçou o fôlego necessário para existir. Isso
é o que deveria ter sido, originariamente, inadmissível. Se um museu
chega a ganhar a possibilidade de ser demolido por motivos pouco
sustentados, isso é o resultado de como vem seguindo a miséria do
reconhecimento histórico nacional do índio. Portanto, a notícia da
demolição, que parece ser início de um problema, é apenas um de seus
vastos desdobramentos.
Por fim, o que precisa ficar claro são as seguintes propostas, ainda
parcas: 1. Amolar a crítica nacional do público que não está
necessariamente vinculado às instâncias superiores de decisão; 2.
Refletir, a partir de uma dada conjuntura as diversas outras conjunturas
históricas e anteriores, de modo a se pensar melhor o aspecto global do
problema, ou seja, não se aprisionar ao discurso da polêmica pela
polêmica de um dado caso, mas se calcar no sentido histórico e político
dele. 3. Reconstruir a memória do índio em nossa nação, desde o modo
como a pensamos nos livros escolares ao modo como se vê a preservação da
cultura nativa por instituições.
O processo da aplicabilidade de tais propostas, e agora me inspiro no
pensamento de Marx, começa de baixo para cima, ou seja, da ação para o
ideal. A rede social tem sido e deve ser, com mais força e criticidade,
uma das importantes ferramentas para realizarmos isso. As instituições
ideais, as leis ideais, as decisões éticas ideais devem se curvar ao que
em um espaço virtual estivemos discutindo, ativa ou passivamente, e
deve também atinar para a força de um povo que quer reconstruir, no real
e no virtual, uma identidade merecida para essa terra por nós chamada,
não por acaso, Brasil.
*Ana Monique Moura é mestre em filosofia pela UFPB, e autora do livro “Entre Kant, Filosofias & Arte”, Sal da Terra, 2012.