Por Altamiro Borges
Apesar do silêncio cúmplice do grosso da mídia, a revista IstoÉ que
chegou às bancas nesta sexta-feira não recuou nas denúncias sobre o
propinoduto tucano em São Paulo. Em nova reportagem de capa, intitulada
"A fabulosa história do achaque de 30%", a publicação revela que pelos
menos R$ 425 milhões foram saqueados dos cofres públicos num esquema
mafioso montado entre o alto tucanato e várias multinacionais do setor
de transporte. Será que agora sai a CPI do propinoduto tucano na
Assembléia Legislativa? Vale conferir a explosiva reportagem, assinada
Alan Rodrigues, Pedro Marcondes de Moura e Sérgio Pardellas:
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Na
última semana, IstoÉ publicou documentos inéditos e trouxe à tona o
depoimento voluntário de um ex-funcionário da multinacional alemã
Siemens ao Ministério Público. Segundo as revelações, o esquema montado
por empresas da área de transporte sobre trilhos em São Paulo para
vencer e lucrar com licitações públicas durante os sucessivos governos
do PSDB nos últimos 20 anos contou com a participação de autoridades e
servidores públicos e abasteceu um propinoduto milionário que desviou
dinheiro das obras para políticos tucanos. Toda a documentação,
inclusive um relatório do que foi revelado pelo ex-funcionário da
empresa alemã, está em poder do Conselho Administrativo de Defesa
Econômica (Cade), para quem a Siemens – ré confessa por formação de
cartel – vem denunciando desde maio de 2012 as falcatruas no Metrô e nos
trens paulistas, em troca de imunidade civil e criminal para si e seus
executivos. Até semana passada, porém, não se sabia quão rentável era
este cartel.
Ao se aprofundarem, nos últimos dias, na análise da papelada e
depoimentos colhidos até agora, integrantes do Cade e do Ministério
Público se surpreenderam com a quantidade de irregularidades encontradas
nos acordos firmados entre os governos tucanos de São Paulo e as
companhias encarregadas da manutenção e aquisição de trens e da
construção de linhas do Metrô e de trens. Uma das autoridades envolvidas
na investigação chegou a se referir ao esquema como uma fabulosa
história de achaque aos cofres públicos, num enredo formado por
pessoas-chaves da administração – entre eles diretores do metrô e da
Companhia Paulista de Trens Metropolitanos (CPTM) –, com participação
especial de políticos do PSDB, os principais beneficiários da tramoia.
Durante a apuração, ficou evidente que o desenlace dessa trama é amargo
para os contribuintes paulistas. A investigação revela que o cartel
superfaturou cada obra em 30%. É o mesmo que dizer que os governantes
tucanos jogaram nos trilhos R$ 3 de cada R$ 10 desembolsado com o
dinheiro arrecadado dos impostos. Foram analisados 16 contratos
correspondentes a seis projetos. De acordo com o MP e o Cade, os
prejuízos aos cofres públicos somente nesses negócios chegaram a RS
425,1 milhões. Os valores, dizem fontes ligadas à investigação ouvidas
por IstoÉ, ainda devem se ampliar com o detalhamento de outros certames
vencidos em São Paulo pelas empresas integrantes do cartel nesses e em
outros projetos.
Entre os contratos em que o Cade detectou flagrante sobrepreço está o de
fornecimento e instalação de sistemas para transporte sobre trilhos da
fase 1 da Linha 5 Lilás do metrô paulista. A licitação foi vencida pelo
consórcio Sistrem, formado pela empresa francesa Alstom, pela alemã
Siemens juntamente com a ADtranz (da canadense Bombardier) e a espanhola
CAF. Os serviços foram orçados em R$ 615 milhões. De acordo com
testemunhos oferecidos ao Cade e ao Ministério Público, esse contrato
rendeu uma comissão de 7,5% a políticos do PSDB e dirigentes da estatal.
Isso significa algo em torno de R$ 46 milhões só em propina. "A Alstom
coordenou um grande acordo entre várias empresas, possibilitando dessa
forma um superfaturamento do projeto", revelou um funcionário da Siemens
ao MP. Antes da licitação, a Alstom, a ADtranz, a CAF, a Siemens, a
TTrans e a Mitsui definiram a estratégia para obter o maior lucro
possível. As companhias que se associaram para a prática criminosa são
as principais detentoras da tecnologia dos serviços contratados.
O responsável por estabelecer o escopo de fornecimento e os preços a
serem praticados pelas empresas nesse contrato era o executivo Masao
Suzuki, da Mitsui. Sua empresa, no entanto, não foi a principal
beneficiária do certame. Quem ficou com a maior parte dos valores
recebidos no contrato da fase 1 da Linha 5 Lilás do Metrô paulista foi a
Alstom, que comandou a ação do cartel durante a licitação. Mas todas as
participantes entraram no caixa da propina. Cada empresa tinha sua
própria forma de pagar a comissão combinada com integrantes do PSDB
paulista, segundo relato do delator e ex-funcionário da Siemens revelado
por ISTOÉ em sua última edição. Nesse contrato específico, a
multinacional francesa Alstom e a alemã Siemens recorreram à consultoria
dos lobistas Arthur Teixeira e Sérgio Teixeira. Documentos apresentados
por ISTOÉ na semana passada mostraram que eles operam por meio de duas
offshores localizadas no Uruguai, a Leraway Consulting S/A e Gantown
Consulting S/A. Para não deixar rastro do suborno, ambos também se valem
de contas em bancos na Suíça, de acordo a investigação.
No contrato da Linha 2 do Metrô, o superfaturamento identificado até
agora causou um prejuízo estimado em R$ 67,5 milhões ao erário paulista.
As licitações investigadas foram vencidas pela dupla Alstom/Siemens e
pelo consórcio Metrosist, do qual a Alstom também fez parte. O contrato
executado previa a prestação de serviços de engenharia, o fornecimento, a
montagem e a instalação de sistemas destinados à extensão oeste da
Linha 2 Verde. Orçado inicialmente em R$ 81,7 milhões, só esse contrato
recebeu 13 reajustes desde que foi assinado, em outubro de 1997. As
multinacionais francesa e alemã ficaram responsáveis pelo projeto
executivo para fornecimento e implantação de sistemas para o trecho Ana
Rosa/ Ipiranga. A Asltom e a Siemens receberam pelo menos R$ 143,6
milhões para executar esse serviço.
O sobrepreço de 30% foi estabelecido também em contratos celebrados
entre as empresas pertencentes ao cartel e à estatal paulista CPTM.
Entre eles, o firmado em 2002 para prestação de serviços de manutenção
preventiva e corretiva de dez trens da série 3000. A Siemens ganhou o
certame por um valor original de R$ 33,7 milhões. Em seguida, o
conglomerado alemão subcontratou a MGE Transportes para serviços que
nunca foram realizados. A MGE, na verdade, serviu de ponte para que a
Siemens pudesse efetuar o pagamento da propina de 5% acertada com
autoridades e dirigentes do Metrô e da CPTM. O dinheiro da comissão –
cerca de R$ 1,7 milhão só nessa negociata, segundo os investigadores –
mais uma vez tinha como destino final a alta cúpula da estatal e
políticos ligados ao PSDB. A propina seria distribuída, segundo
depoimento ao Cade ao qual ISTOÉ teve acesso, pelo diretor da CPTM, Luiz
Lavorente. Além da MGE, a Siemens também recorreu à companhia japonesa
Mitsui para intermediar pagamentos de propina em outras transações. O
que mais uma vez demonstra o quão próxima eram as relações das empresas
do cartel que, na teoria, deveriam concorrer entre si pelos milionários
contratos públicos no setor de transportes sobre trilhos. O resultado da
parceria criminosa entre as gigantes do setor pareceu claro em outros
12 contratos celebrados com a CPTM referentes às manutenções dos trens
das séries 2000 e 2100 e o Projeto Boa Viagem, que já foram analisados
pelo CADE. Neles, foi contabilizado um sobrepreço de aproximadamente R$
163 milhões.
Não é por acaso que as autoridades responsáveis por investigar o caso
referem-se ao esquema dos governos do PSDB em São Paulo como uma
"fabulosa história". O superfaturamento constatado nos contratos de
serviços e oferta de produtos às estatais paulistanas Metrô e a
Companhia Paulista de Trens Metropolitanos [CPTM] supera até mesmo os
índices médios calculados internacionalmente durante a prática deste
crime. Cálculos da Organização para Cooperação e Desenvolvimento
Econômico – OCDE, por exemplo, apontam que os cartéis ocasionam um
prejuízo aos cofres públicos de 10% a 20%. No caso destes 16 contratos, a
combinação de preços e direcionamentos realizados pelas companhias
participantes da prática criminosa levaram a um surpreendente rombo de
30% aos cofres paulistas.
Diante das denúncias, na última semana o PT e outros partidos
oposicionistas em São Paulo passaram a se movimentar para tentar aprovar
a instalação de uma CPI. "O governador Geraldo Alckmin diz querer que
as denúncias do Metrô e da CPTM sejam apuradas. Então, que oriente a sua
bancada a protocolar o pedido de CPI, pelo menos, desta vez", propôs o
líder do PT na Assembleia paulista, Luiz Cláudio Marcolino. "É flagrante
que os contratos precisam ser revisados. Temos de ter transparência com
o dinheiro público independente de partido", diz ele. Caso a bancada
estadual do PT não consiga aprovar o pedido, por ter minoria, a sigla
tentará abrir uma investigação na Câmara Federal. "Não podemos deixar um
assunto desta gravidade sem esclarecimentos. Ainda mais quando se trato
de acusações tão contundentes de desvios de verbas públicas", afirmou o
deputado Devanir Ribeiro (PT-SP). O que se sabe até agora já é
suficiente para ensejar um inquérito. Afinal, trata-se de um desvio
milionário de uma das principais obras da cidade mais populosa do País e
onde se concentra o maior orçamento nacional. Se investigada a fundo, a
história do achaque de 30% aos cofres públicos pode trazer ainda mais
revelações fabulosas.
Queima de arquivo
Uma pasta amarela com cerca de 200 páginas guardada na 1ª Vara Criminal
do Fórum da cidade de Itu, interior paulista, expõe um lado ainda mais
sombrio das investigações que apuram o desvio milionário das obras do
metrô e trens metropolitanos durante governos do PSDB em São Paulo nos
últimos 20 anos. Trata-se do processo judicial 9900.98.2012 que
investiga um incêndio criminoso que consumiu durante cinco horas 15.339
caixas de documentos e 3.001 tubos de desenhos técnicos. A papelada
fazia parte dos arquivos do metrô armazenados havia três décadas. Entre
os papeis que viraram cinzas estão contratos assinados entre 1977 e
2011, laudos técnicos, processos de contratação, de incidentes,
propostas, empenhos, além de relatórios de acompanhamento de contratos
de 1968 até 2009. Sob segredo de Justiça, a investigação que poderá ser
reaberta pelo Ministério Público, diante das novas revelações sobre o
caso feitas por ISTOÉ, acrescenta novos ingredientes às já contundentes
denúncias feitas ao Cade pelos empresários da Siemens a respeito do
escândalo do metrô paulista. Afinal, a ação dos bandidos pode ter
acobertado a distribuição de propina, superfaturamento das obras,
serviços e a compra e manutenção de equipamentos para o metrô paulista.
Segundo o processo, na madrugada do dia 9 de julho do ano passado, nove
homens encapuzados e armados invadiram o galpão da empresa PA Arquivos
Ltda, na cidade de Itu, distante 110 km da capital paulista, renderam os
dois vigias, roubaram 10 computadores usados, espalharam gasolina pelo
prédio de 5 mil m² e atearam fogo. Não sobrou nada. Quatro meses depois
de lavrado o boletim de ocorrência, nº 1435/2012, a polícia paulista
concluiu que o incêndio não passou de um crime comum. "As investigações
não deram em nada", admite a delegada de Policia Civil Milena, que
insistiu em se identificar apenas pelo primeiro nome. "Os homens estavam
encapuzados e não foram identificados", diz a policial. Investigado
basicamente como sumiço de papéis velhos, o incêndio agora ganha ares de
queima de arquivo. O incidente ocorreu 50 dias depois de entrar em
vigor a Lei do Acesso à Informação, que obriga os órgãos públicos a
fornecerem cópias a quem solicitar de qualquer documento que não seja
coberto por sigilo legal, e quatro meses depois de começarem as
negociações entre o Cade e a Siemens para a assinatura do acordo de
leniência, que vem denunciando as falcatruas no metrô e trens paulistas.
"Não podemos descartar que a intenção desse crime era esconder provas
da corrupção", entende o deputado Luiz Cláudio Marcolino, líder do PT na
Assembleia Legislativa do Estado.
Além das circunstâncias mais do que suspeitas do incêndio, documentos
oficiais do governo, elaborados pela gerência de Auditoria e Segurança
da Informação (GAD), nº 360, em 19 de setembro passado, deixam claro que
o galpão para onde foi levado todo o arquivo do metrô não tinha as
mínimas condições para a guarda do material. Cravado em plena zona rural
de Itu, entre uma criação de coelhos e um pasto com cocheiras de gado, o
galpão onde estavam armazenados os documentos não tinha qualquer
segurança. Poderia ser facilmente acessado pelas laterais e fundos da
construção.
De acordo com os documentos aos quais ISTOÉ teve acesso, o governo
estadual sabia exatamente da precariedade da construção quando
transferiu os arquivos para o local. O relatório de auditoria afirma que
em 20 de abril de 2012 - portanto, três dias depois da assinatura do
contrato entre a PA Arquivos e o governo de Geraldo Alckmin - o galpão
permanecia em obras e "a empresa não estava preparada para receber as
caixas do Metrô". A comunicação interna do governo diz mais. Segundo o
laudo técnico do GAD, "a empresa não possuía instalações adequadas para
garantir a preservação do acervo documental". Não havia sequer a
climatização do ambiente, item fundamental para serviços deste tipo.
O prédio foi incendiado poucos dias depois da migração do material para o
espaço. "Não quero falar sobre esse crime", disse um dos proprietários
da empresa, na época do incêndio, Carlos Ulderico Botelho. "Briguei com o
meu sócio, sai da sociedade e tomei muito prejuízo. Esse incêndio foi
estranho. Por isso, prefiro ficar em silêncio". Outra excentricidade do
crime é que o fato só foi confirmado oficialmente pelo governo seis
meses depois do ocorrido. Em 16 páginas do Diário do Diário Oficial,
falou-se em "sumiço" da papelada. Logo depois da divulgação do sinistro,
o deputado estadual do PT, Simão Pedro, hoje secretário de Serviços da
Prefeitura de São Paulo, representou contra o Governo do Estado no
Ministério Público Estadual. "Acredita-se que os bandidos tenham
provocado o incêndio devido o lugar abrigar vários documentos". Para o
parlamentar, "esse fato sairia da hipótese de crime de roubo com o
agravante de causar incêndio, para outro crime, de deliberada destruição
de documentos públicos", disse Simão, em dezembro passado. Procurados
por ISTOÉ, dirigentes do Metrô de SP não quiseram se posicionar.