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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista
terça-feira, março 18, 2014
Quem mais matou Dona Cláudia?
A filha de Cláudia Ferreira da Silva, a mulher duas vezes assassinada – a tiros e ao ser arrastada como um farrapo pelo carro da polícia – por policiais militares no Rio , disse que os PMs a “acusaram” de ter dado um copo de café a “um bandido”.
Sejamos honestos: seu brutal assassinato está chamando a atenção do país porque se filmou a queda de seu corpo do carro dos policiais e a cena dantesca de sua segunda morte.
Porque a primeira morte de Cláudia foi ter sido baleada, essencialmente, por ser moradora de uma favela e negra.
Se não era mãe de traficante – como a própria temia fossem confundidos seus filhos – era tia, amiga, prima, parente ou amiga deles.
Devia ser: afinal era negra e favelada. E seus filhos deveriam ser, também eram negros e favelados.
“Todo os dias, eles [ PMs] chegam atirando e depois vão ver quem é. Ela não deixava a gente ficar na rua com medo de acontecer alguma coisa ou de confundirem a gente com traficantes”.
Como a Cláudia, seus filhos, milhares de Cláudias, Cláudios e Claudinhos.
Bandidos ou não, mas sempre, ou quase sempre, negros e favelados.
Quando morava em Santa Teresa, um bairro envolto por favelas nos morros do Rio, conheci um rapaz que sempre estava no ônibus tardio em que eu voltava para casa – o bondinho ainda circulava, mas só até 21 horas – que andava sempre com uma Bíblia na mão.
Um dia, puxei conversa sobre religião e fiquei surpreso de saber que ele não era evangélico.
A Bíblia era só para estabelecer uma mínima dúvida nas muitas ocasiões em que era parado pela PM. para não ser imediatamente tratado como bandido traficante.
Ele, afinal, era também negro e favelado, do Morro dos Prazeres. Logo, também, deveria ser um bandido.
E se em lugar de D. Cláudia, fosse o negrinho da corrente no pescoço quem ficasse pendurado pela roupa, sendo arrastado?
Aí seria “compreensível”, D. Sheherazade?
Escolhi essa foto do enterro de Dona Cláudia pensando em você, Ali Kamel, e no seu “não somos racistas”.
Olhe bem para ela e veja: há apenas um branco, sofrendo do mesmo jeito que os negros.
A dor tem cor? Tem classe? Tem comprovante de renda e endereço?
A dor deles é menor que seria a minha ou a sua, diante da mãe morta?
A barbárie e seu elogio só trazem mais barbárie.
Ou você acha que aqueles policiais se tornaram monstros, já nasceram assim, desprezando a integridade de um ser humano – bandido ou não bandido – ao ponto de o colocarem, mesmo gravemente ferido, baleado, na caçamba de uma caminhonete?
Quem os açulou ao ponto de animalizá-los assim?
Não adianta apenas dizer que eles agiram como monstros – e agiram – sem tocarmos naquilo que os torna monstros – a eles, policiais e aos bandidos .
Quando este Estado teve um governante que não tolerava isso, Kamel, você, a sua Globo, as elites e as Sheherazades de então, vociferaram contra, porque Brizola “não deixava a polícia trabalhar”.
A foto ao lado mostra o que era a PM antes de sua chegada.
Negros e favelados, tratados como convinha tratar negros e favelados, então.
Eu lembro perfeitamente bem como essa história começou: quando dois policiais subiram o Morro do Chapéu Mangueira, no Leme, atirando contra um ladrão de bolsas.
Mataram uma menina de oito anos, sentada à porta de sua casa, no morro, brincando.
Ela, afinal, era negra e favelada.
Boa coisa não ia dar, não é?
O lobo tem as suas razões, sempre.
*Tijolaço
Por que é tão difícil legalizar a maconha?
Publicado no Outras Palavras
Existe um consenso mundial de que o proibicionismo
antidrogas fracassou e deve ser substituído por outro paradigma jurídico. Também
já está bastante claro que o novo modelo jamais logrará êxito enquanto não
incluir a legalização da maconha, isto é, a venda controlada e a
permissão para o cultivo doméstico. Essas medidas retirariam do crime
organizado o monopólio sobre uma planta que, ao contrário de outras substâncias
ilícitas, o cidadão pode produzir a custo irrisório. Sem pagar um centavo a
bandidos.
Só a perspectiva de reduzir os ganhos do tráfico deveria
bastar para que a sociedade brasileira se mobilizasse em torno da questão.
Acrescentando-lhe os desdobramentos positivos na área criminal (maior eficácia
no combate à violência, alívio do sistema carcerário e da corrupção fardada), a
causa ganha força inquestionável, dispensando os muitos alicerces filosóficos e
doutrinários que a justificam.
Mas então de onde vem a curiosa antipatia que os nossos
legisladores parecem nutrir por uma planta de uso disseminado, utilidades múltiplas
e cultura milenar?
Primeiro do estigma criado pela propaganda
estadunidense na eficaz demonização da maconha que se seguiu ao fim
da Lei Seca e justificou décadas de programas intervencionistas de Washington
na América Latina. Esse repertório de preconceitos foi assimilado e difundido
com tamanha credulidade ao longo dos anos que sobrevive no comentarismo da imprensa até hoje.
Em segundo lugar vem a conveniência ideológica das
autoridades políticas e da mídia que as apóia. A ilicitude de um produto
consumido por milhões de pessoas ajuda a perpetuar as simplificações que atenuam
a imagem do colapso das políticas de Segurança Pública. Além disso, a mitologia
negativa dos entorpecentes compõe um leque mais amplo de princípios conservadores baseados no cerceamento dos direitos individuais e na
criminalização da vida cotidiana.
Terceiro, e mais importante, porque o acesso legalizado
à planta prejudicaria diversos interesses comerciais, principalmente os da
indústria farmacêutica. Para entender esse impacto, basta consultar as muitas pesquisas
sobre as propriedades medicinais da maconha e seu uso terapêutico em
casos clínicos tratados por medicamentos onerosos e amiúde causadores de
efeitos colaterais indesejáveis.
É fácil imaginar as fortunas que deixariam de fluir
aos cofres dos laboratórios se os pacientes pudessem usar um remédio natural que
ameniza inapetência, dor, náusea, insônia, depressão, ansiedade e até o vício
químico em drogas letais. Que ninguém estranhe, portanto, o ressurgimento periódico
de artigos e declarações de certos especialistas usando argumentos pseudocientíficos
e dogmáticos que contrariam até as diretrizes de organismos internacionais
voltados ao tema.
A prova de que esses profissionais seguem uma
agenda suspeita é a insistência em reduzir o debate aos supostos malefícios da planta. Como se “fazer mal” fosse critério para proibir qualquer produto
de uso cotidiano, começando pela química obscura dos próprios remédios. Como se
a “perda temporária da memória de curto prazo” ou a “dependência psicológica
eventual” estivessem de fato na origem de uma legislação inútil, dispendiosa e socialmente
nociva.
A revisão do novo Código Penal representa uma
chance histórica para o país abandonar essa excrescência, renegada inclusive nos
EUA, seus maiores patrocinadores históricos. Tudo leva a crer, porém, que os
juristas e parlamentares desperdiçarão a oportunidade, preservando o entulho
repressor sob um verniz progressista, misturando abordagens
igualmente punitivas para substâncias incomparáveis e apenas trocando a cadeia
pelo tratamento psiquiátrico involuntário.
Afinal, é chique seguir os exemplos
internacionais. Mas só os piores.
*GuilhermeScalzilli
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