Por que é tão difícil legalizar a maconha?
Publicado no Outras Palavras
Existe um consenso mundial de que o proibicionismo
antidrogas fracassou e deve ser substituído por outro paradigma jurídico. Também
já está bastante claro que o novo modelo jamais logrará êxito enquanto não
incluir a legalização da maconha, isto é, a venda controlada e a
permissão para o cultivo doméstico. Essas medidas retirariam do crime
organizado o monopólio sobre uma planta que, ao contrário de outras substâncias
ilícitas, o cidadão pode produzir a custo irrisório. Sem pagar um centavo a
bandidos.
Só a perspectiva de reduzir os ganhos do tráfico deveria
bastar para que a sociedade brasileira se mobilizasse em torno da questão.
Acrescentando-lhe os desdobramentos positivos na área criminal (maior eficácia
no combate à violência, alívio do sistema carcerário e da corrupção fardada), a
causa ganha força inquestionável, dispensando os muitos alicerces filosóficos e
doutrinários que a justificam.
Mas então de onde vem a curiosa antipatia que os nossos
legisladores parecem nutrir por uma planta de uso disseminado, utilidades múltiplas
e cultura milenar?
Primeiro do estigma criado pela propaganda
estadunidense na eficaz demonização da maconha que se seguiu ao fim
da Lei Seca e justificou décadas de programas intervencionistas de Washington
na América Latina. Esse repertório de preconceitos foi assimilado e difundido
com tamanha credulidade ao longo dos anos que sobrevive no comentarismo da imprensa até hoje.
Em segundo lugar vem a conveniência ideológica das
autoridades políticas e da mídia que as apóia. A ilicitude de um produto
consumido por milhões de pessoas ajuda a perpetuar as simplificações que atenuam
a imagem do colapso das políticas de Segurança Pública. Além disso, a mitologia
negativa dos entorpecentes compõe um leque mais amplo de princípios conservadores baseados no cerceamento dos direitos individuais e na
criminalização da vida cotidiana.
Terceiro, e mais importante, porque o acesso legalizado
à planta prejudicaria diversos interesses comerciais, principalmente os da
indústria farmacêutica. Para entender esse impacto, basta consultar as muitas pesquisas
sobre as propriedades medicinais da maconha e seu uso terapêutico em
casos clínicos tratados por medicamentos onerosos e amiúde causadores de
efeitos colaterais indesejáveis.
É fácil imaginar as fortunas que deixariam de fluir
aos cofres dos laboratórios se os pacientes pudessem usar um remédio natural que
ameniza inapetência, dor, náusea, insônia, depressão, ansiedade e até o vício
químico em drogas letais. Que ninguém estranhe, portanto, o ressurgimento periódico
de artigos e declarações de certos especialistas usando argumentos pseudocientíficos
e dogmáticos que contrariam até as diretrizes de organismos internacionais
voltados ao tema.
A prova de que esses profissionais seguem uma
agenda suspeita é a insistência em reduzir o debate aos supostos malefícios da planta. Como se “fazer mal” fosse critério para proibir qualquer produto
de uso cotidiano, começando pela química obscura dos próprios remédios. Como se
a “perda temporária da memória de curto prazo” ou a “dependência psicológica
eventual” estivessem de fato na origem de uma legislação inútil, dispendiosa e socialmente
nociva.
A revisão do novo Código Penal representa uma
chance histórica para o país abandonar essa excrescência, renegada inclusive nos
EUA, seus maiores patrocinadores históricos. Tudo leva a crer, porém, que os
juristas e parlamentares desperdiçarão a oportunidade, preservando o entulho
repressor sob um verniz progressista, misturando abordagens
igualmente punitivas para substâncias incomparáveis e apenas trocando a cadeia
pelo tratamento psiquiátrico involuntário.
Afinal, é chique seguir os exemplos
internacionais. Mas só os piores.
*GuilhermeScalzilli
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