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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

terça-feira, março 18, 2014

Por que é tão difícil legalizar a maconha?















Publicado no Outras Palavras

Existe um consenso mundial de que o proibicionismo antidrogas fracassou e deve ser substituído por outro paradigma jurídico. Também já está bastante claro que o novo modelo jamais logrará êxito enquanto não incluir a legalização da maconha, isto é, a venda controlada e a permissão para o cultivo doméstico. Essas medidas retirariam do crime organizado o monopólio sobre uma planta que, ao contrário de outras substâncias ilícitas, o cidadão pode produzir a custo irrisório. Sem pagar um centavo a bandidos.

Só a perspectiva de reduzir os ganhos do tráfico deveria bastar para que a sociedade brasileira se mobilizasse em torno da questão. Acrescentando-lhe os desdobramentos positivos na área criminal (maior eficácia no combate à violência, alívio do sistema carcerário e da corrupção fardada), a causa ganha força inquestionável, dispensando os muitos alicerces filosóficos e doutrinários que a justificam.

Mas então de onde vem a curiosa antipatia que os nossos legisladores parecem nutrir por uma planta de uso disseminado, utilidades múltiplas e cultura milenar?

Primeiro do estigma criado pela propaganda estadunidense na eficaz demonização da maconha que se seguiu ao fim da Lei Seca e justificou décadas de programas intervencionistas de Washington na América Latina. Esse repertório de preconceitos foi assimilado e difundido com tamanha credulidade ao longo dos anos que sobrevive no comentarismo da imprensa até hoje.

Em segundo lugar vem a conveniência ideológica das autoridades políticas e da mídia que as apóia. A ilicitude de um produto consumido por milhões de pessoas ajuda a perpetuar as simplificações que atenuam a imagem do colapso das políticas de Segurança Pública. Além disso, a mitologia negativa dos entorpecentes compõe um leque mais amplo de princípios conservadores baseados no cerceamento dos direitos individuais e na criminalização da vida cotidiana.

Terceiro, e mais importante, porque o acesso legalizado à planta prejudicaria diversos interesses comerciais, principalmente os da indústria farmacêutica. Para entender esse impacto, basta consultar as muitas pesquisas sobre as propriedades medicinais da maconha e seu uso terapêutico em casos clínicos tratados por medicamentos onerosos e amiúde causadores de efeitos colaterais indesejáveis.

É fácil imaginar as fortunas que deixariam de fluir aos cofres dos laboratórios se os pacientes pudessem usar um remédio natural que ameniza inapetência, dor, náusea, insônia, depressão, ansiedade e até o vício químico em drogas letais. Que ninguém estranhe, portanto, o ressurgimento periódico de artigos e declarações de certos especialistas usando argumentos pseudocientíficos e dogmáticos que contrariam até as diretrizes de organismos internacionais voltados ao tema.

A prova de que esses profissionais seguem uma agenda suspeita é a insistência em reduzir o debate aos supostos malefícios da planta. Como se “fazer mal” fosse critério para proibir qualquer produto de uso cotidiano, começando pela química obscura dos próprios remédios. Como se a “perda temporária da memória de curto prazo” ou a “dependência psicológica eventual” estivessem de fato na origem de uma legislação inútil, dispendiosa e socialmente nociva.

A revisão do novo Código Penal representa uma chance histórica para o país abandonar essa excrescência, renegada inclusive nos EUA, seus maiores patrocinadores históricos. Tudo leva a crer, porém, que os juristas e parlamentares desperdiçarão a oportunidade, preservando o entulho repressor sob um verniz progressista, misturando abordagens igualmente punitivas para substâncias incomparáveis e apenas trocando a cadeia pelo tratamento psiquiátrico involuntário.

Afinal, é chique seguir os exemplos internacionais. Mas só os piores.
*GuilhermeScalzilli

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