Dilma não vai aceitar celebrações militares
Após 50 anos, o golpe militar de 31 de março de 1964 é uma lembrança a
cada dia mais tênue na memória nacional, mas também uma história sem
ponto final que ainda hoje contamina com rancor e ódio o ambiente
político. O conflito é particularmente visível na relação do atual
governo com as Forças Armadas, sobretudo com militares da reserva, e na
Comissão Nacional da Verdade, criada em 2011 para investigar e
esclarecer o que ocorreu com 153 militantes de esquerda desaparecidos
durante a ditadura militar (1964-1985).
Antecipando-se a eventuais celebrações, o governo tomou providências
para evitar uma nova crise com o meio militar, como se deu em 2012 e
2013 por ocasião do aniversário de 31 de março. Por orientação da
presidente Dilma Rousseff, uma ex-combatente da luta armada contra o
regime dos generais, o ministro da Defesa, Celso Amorim, chamou os
comandantes militares e passou o recado: o governo não vai tolerar
manifestações do pessoal da ativa. As punições podem ir da simples
advertência à prisão e exclusão das Forças Armadas.
Amorim recebeu a garantia dos chefes militares de que não haverá nada de
iniciativa do pessoal da ativa. A rigor, desde o governo do
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva o 31 de março foi banido do
calendário de comemorações militares, o que nem sempre impediu um ou
outro oficial de levantar a voz para fazer a apologia da "Redentora" - o
apelido da "Revolução de 31 de março de 1964", como se referiam ao
golpe os militares e civis que apoiaram a deposição do ex-presidente
João Belchior Marques Goulart (1961-1964). Atualmente, os bolsões que
combatem o governo do PT falam em "contrarrevolução".
O Palácio do Planalto também autorizou "conversas do alto escalão" das
Forças Armadas com o pessoal da reserva reunido em torno dos clubes
militares. O mais importante deles é o do Exército, chamado de Clube
Militar — a Casa da República. Há um "entendimento" para que a "Casa"
evite se manifestar. Realisticamente, no entanto, na avaliação do
Ministério da Defesa o simbolismo da data — os 50 anos — é muito forte: o
pessoal da ativa e até o Clube Militar, eventualmente, podem ser
mantidos sob rédea curta. Mas dificilmente o grupo mais radical — ligado
aos porões da repressão — deixará de celebrar o 31 de março.
No que se refere ao pessoal da ativa, o governo aplicará as punições
previstas nos regulamentos das Forças Armadas. Em relação aos grupos
mais radicais da reserva, especialmente aqueles ligados ao esquema de
repressão do regime, o governo avalia que não tem muito o que fazer. A
decisão de punir dependerá do tom da comemoração. Afinal, a mesma
Constituição contra a qual se puseram os militares da linha-dura lhes
garante hoje o direito de expressão.
O que o Palácio do Planalto não pretende deixar passar é a quebra da
hierarquia, como ocorreu em 2012, ano em que foi instalada a Comissão da
Verdade. O Ministério da Defesa tem pareceres jurídicos segundo os
quais os comandantes têm poderes para punir também o pessoal da reserva.
Os vários grupos que convocaram a reedição da Marcha da Família com
Deus, em Defesa da Liberdade — movimento civil que foi uma espécie de
escalão precursor do golpe de 1964 — devem receber o mesmo tratamento
dado aos manifestantes que vêm ocupando as ruas do país desde junho.
Algumas dessas convocações, porém, têm um componente explosivo: estão
marcadas para sair da porta dos quartéis.
Também receberão o tratamento dado aos manifestantes comuns, se ficarem da porta para fora da caserna.
A presidente Dilma Rousseff estava do lado que perdeu em 1964.
Integrante de grupos armados de combate ao regime, foi presa e torturada
nos porões da ditadura. Em seu discurso de posse na Presidência, fez um
gesto de conciliação: "Não carrego, hoje, nenhum ressentimento nem
nenhuma espécie de rancor", disse. "A minha geração veio para a política
em busca da liberdade, num tempo de escuridão e medo. Pagamos o preço
da nossa ousadia, ajudando, entre outros, o país a chegar até aqui. Aos
companheiros meus que tombaram nessa caminhada, minha comovida homenagem
e minha eterna lembrança".
Entre as demandas não resolvidas do governo Lula, a presidente
encontrou, ao assumir, a criação da Comissão da Verdade. Duas posições
se destacaram ao longo dos oito primeiros anos do PT: uma previa a
revisão da lei da anistia para permitir a punição dos torturadores,
militares ou civis; outra defendia uma comissão nos moldes da que foi
criada na África do Sul, na saída do apartheid: o depoente que contasse a
verdade seria isentado de punição, aquele que mentisse sairia da
comissão processado.
O ex-presidente Lula logo percebeu que o tema era um vespeiro, empurrou o
assunto com a barriga e deixou o governo sem criar a Comissão da
Verdade. Dilma entrou e aproveitou o momento de força de uma presidente
recém-saída da eleição para criá-la. O grupo começou a trabalhar a
partir de maio de 2012, mas já às vésperas do 31 de março daquele ano o
Clube Militar divulgou um manifesto com duras críticas. Dizia que seus
integrantes estavam "limitando sua atividade à investigação apenas de
atos praticados pelos agentes do Estado, varrendo para debaixo do tapete
os crimes hediondos praticados pelos militantes da sua própria
ideologia".
Dilma chamou Amorim e pediu providências. Por meio dos comandantes das
três forças — Exército, Marinha e Aeronáutica —, o ministro da Defesa
conseguiu que o texto do manifesto fosse retirado do sítio da "Casa da
República" na internet. Mas um grupo que abriga acusados notórios da
prática de tortura publicou outro manifesto, intitulado "Alerta à Nação -
Eles Que Venham, aqui não Passarão", repudiando a intervenção de
Amorim.
O texto ultrapassa a risca de giz de Dilma: questiona a "autoridade ou
legitimidade" do ministro e afirma que a criação da Comissão da Verdade
"foi um ato inconsequente, de revanchismo explícito e de afronta à lei
de anistia com o beneplácito, inaceitável, do atual governo". O
documento teve a adesão de cerca de 400 militares da reserva. Dilma
mandou Amorim jogar duro. As íntegras dos textos praticamente sumiram da
internet, mas não se tem notícia de nenhuma advertência ou prisão. Como
de costume, os comandantes acomodaram a situação — uma característica
da relação que mantêm com a presidente.
Bom exemplo dessa relação se deu quando o chefe do Gabinete de Segurança
Institucional (GSI), general José Elito Siqueira, responsável pela área
de inteligência do governo, deu declarações públicas sobre o 31 de
março na contramão do governo. "Nós temos que ver o 31 de março de 1964
como dado histórico de Nação, seja com prós e contras." Ou seja, o golpe
é um assunto da história. Ponto. Dilma, como em outros episódios
envolvendo o general — outro exemplo é o episódio da espionagem da
Agência Brasileira de Inteligência (Abin) no Porto de Suape (PE) —,
resolveu o problema com uma conversa de pé de ouvido com Elito.
Há registro de outras desfeitas dos militares com Dilma Rousseff. Todas
explicadas pelos militares com base nos regulamentos e decretos
vigentes. Em sua primeira solenidade de promoção de oficiais das Forças
Armadas, os militares não bateram continência à presidente, e Dilma
limitou-se a apertar as mãos dos oficiais. A explicação: o aperto de mão
é uma das formas de "respeito e apreço a seus superiores" prevista nos
rituais militares. Um decreto de meados dos anos 1970 já havia banido a
exigência da continência.
Em dezembro, o Congresso fez a devolução simbólica do mandato do
ex-presidente João Goulart. O pano de fundo da devolução era
declaradamente retirar qualquer ar de legalidade do golpe de 31 de março
de 1964. Presentes — assim como Dilma — os comandantes das três Forças
Armadas não bateram palmas no momento em que o diploma foi entregue a
João Vicente, filho de Jango. O Ministério da Defesa não entendeu o
gesto como um protesto dos militares porque eles nem sequer estavam
obrigados a ir à cerimônia — foram convidados informalmente por Celso
Amorim e resolveram comparecer. Os três.
O Ministério da Defesa também foi encarregado por Dilma para
providenciar o traslado do corpo de Jango do Rio Grande do Sul para
Brasília, no curso de uma investigação sobre a morte do ex-presidente — a
suspeita é que ele foi assassinado pelo serviço secreto em 1976. A
presidente exigiu honras de chefe de Estado. Um problema, pois não havia
precedentes na história.
Os manuais militares também não preveem a recepção de restos mortais. O
cerimonial da Defesa improvisou e fez uma adaptação da recepção a chefes
de Estado (guarda de honra, o hino dos dois países e a apresentação de
armas) com a prestação de honras fúnebres (guarda, salva de tiros e
apresentação de armas): os despojos foram recepcionados na base aérea de
Brasília com a guarda e a apresentação de armas por três pelotões
(Exército, Marinha e Aeronáutica).
O eixo atual das divergências é a Comissão da Verdade, mas os atritos
vêm de longe. Em abril de 2010, Lula ainda era presidente, e o site do
Comando do Exército dizia que o golpe de 64 fora uma "opção pela
democracia". A solução foi pioneira: tirou-se o texto do ar. Lula, na
realidade, sempre driblou o assunto: em seu primeiro ano de mandato a
Justiça Federal determinou que o governo indicasse a localização dos
corpos dos desaparecidos da guerrilha do Araguaia. Um grupo do PT
pressionou o presidente a não recorrer da decisão. Mas Lula, alegando
"razões de Estado", determinou que a Advocacia-Geral da União (AGU)
providenciasse o recurso.
Ao final de seu trabalho, a Comissão da Verdade deve publicar um livro
sobre o que apurou. É provável que não passe de uma versão melhorada do
projeto Brasil Nunca Mais, publicado nos anos 1980. A narrativa à
esquerda dos acontecimentos dos 21 anos de ditadura militar pode ser
encontrada em três arquivos básicos. O primeiro são os processos nas
auditorias militares. O segundo é dos presos políticos de São Paulo,
chamado de "Bagulhão", com a identificação de 233 torturadores. O
terceiro — e um dos mais importantes —, também dos presos de São Paulo,
chama-se "História da Repressão Policial Militar no Brasil".
O documento fala do regime militar até 1975, os instrumentos, métodos e
lugares de tortura e das pessoas que foram torturadas. Na esquerda, é
considerado uma análise insuperável sobre o regime militar. Trata dos
antecedentes do golpe, seu estrato ideológico e a repressão nas artes,
na cultura, nos sindicatos, nos partidos políticos, no parlamento, no
movimento estudantil e a pequenos agricultores. Os manuscritos foram
redigidos nas masmorras e contrabandeados para fora dos presídios
enrolados dentro de garrafas térmicas. Os cinco volumes de "Brasil Nunca
Mais" são um compêndio desses três arquivos.
As Forças Armadas sempre são bem avaliadas nas pesquisas sobre a
percepção que a população tem das instituições. Também sempre tiveram
protagonismo na história do Brasil. E não reconhecem que a tortura foi
uma política de Estado. Segundo seus comandantes, os documentos
referentes ao período foram reduzidos a cinzas, nos termos da legislação
à época. Atualmente, há dois pedidos da Comissão da Verdade aos
quartéis: o primeiro pede os autos lavrados quando os documentos foram
supostamente incinerados; o segundo, a apuração do "uso das instalações
militares para fins diversos para os quais foram construídos". Menciona
especificamente cinco áreas onde funcionaram centros de tortura.
Curiosamente, foram os governos do PT que retomaram o investimento nas
Forças Armadas e recuperaram o poder aquisitivo dos salários de seu
pessoal. O Orçamento da Defesa é o quarto maior (R$ 72 bilhões,
incluindo-se a folha de pessoal) da Esplanada dos Ministérios, perdendo
apenas para Previdência, Saúde e Educação. Excluído o pessoal (a tropa),
tem a sétima maior fatia do orçamento. Em média, os gastos militares
vêm sendo mantidos em 1,5% do Produto Interno Bruto. Os salários foram
reajustados em 30% por Dilma, bem acima do resto do funcionalismo. O
salário básico do posto mais alto da carreira militar, hoje, é de R$
21.048,08.
A relação das Forças Armadas com o governo Dilma é a evidência de um
passado ainda presente, uma história mal resolvida, depois de meio
século. Bem ou mal, ressentimentos do passado não têm atropelado
assuntos de Estado, mas requerem um desfecho para que todos, famílias,
militares e a própria sociedade brasileira possam seguir em frente.
Raymundo Costa
No Valor
*comtextolivre
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