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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quarta-feira, março 26, 2014

Comuna de Paris: outra democracia é possível?



ANTONI AGUILÓ
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Há 143 anos, começava insurreição que estabeleceu formas inéditas de autonomia popular. Quais foram e como podem inspirar movimentos contemporâneos
Por Antoni Aguiló | Tradução: Gabriela Leite | Imagem: Jacques Tardi, Le cri du peuple
Acaba de completar 143 anos (em 26 de março) a proclamação da Comuna de Paris, uma das experiências de democracia popular participativa mais iluminadoras da história contemporânea do Ocidente, mas também, e ao mesmo tempo, uma das mais trágicas que já se conheceu.
Ao final da guerra franco-prussiana, com a França derrotada, seu primeiro ministro, Adolphe Thiers, destacou a importância de desarmar imediatamente Paris para impor o armistício humilhante assinado com a Prússia. Em 18 de março de 1871, sob o pretexto de que as armas eram propriedade do Estado, Thiers ordenou ao exército a retirada dos canhões que a Guarda Nacional tinha nas colinas Montmartre. Então, uma multidão indignada de mulheres e homens da classe operária se opôs ao desarmamento, que deixaria a cidade indefesa. Uma parte das tropas enviadas pelo governo negou-se a disparar contra o povo e muitos dos soldados acabaram confraternizando com o movimento de resistência. Este levantou-se em armas contra a Assembleia Nacional, desencadeando um processo revolucionário que colocava o proletariado parisiense em choque com a grande classe dos proprietários de terras, rentistas e camponeses ricos que dominava a Assembleia francesa.
Após a tentativa fracassada de desarmamento, o gabinete de Thiers fugiu para Versalhes. Os rebeldes instituíram um governo municipal provisório que, depois das eleições de 26 de março, transformou-se na Comuna de Paris. Constituía-se, assim, uma prefeitura rebelde de forte base entre os trabalhadores. O exemplo de Paris estendeu-se por outras cidades e povoados provinciais, como Lyon e Marselha, onde proclamaram-se comunas insurgentes, rapidamente esmagadas por Versalhes.
Mais além de seus tropeços, a Comuna de Paris nos deixou um legado: os exercícios de construção de poder popular vindos de baixo mais relevantes da história recente. Que aprendizagens da Comuna, em matéria de democracia, podem contribuir para iluminar as atuais lutas por democracias reais? Em que medida essas lutas passam por uma prática política revolucionária que amplia o poder efetivo das classes populares e outros coletivos historicamente afetados pela discriminação? Ao meu juizo, como embrião de democracia revolucionária, a Comuna de Paris proporciona alguns ensinamentos chave, que abrem caminhos pouco explorados para o avanço das democracias a serviço da emancipação social:
Democracia de base: a pretensão era a criação de um Estado desde a base, formado por autogovernos municipais federados entre si, com um governo central que tivesse escassas funções de coordenação. Um Estado novo, que contribuísse para desfazer a relação entre governantes e governados e assegurar melhores condições de vida e trabalho; no qual as pessoas se sentissem reconhecidas e, portanto, dispostas a defendê-lo.
Democracia operária de inspiração socialista. Os comuneiros tinham consciência da necessidade de romper com as velhas formas de dominação política (o parlamentarismo liberal e o Estado capitalista burguês), o que os levou a experimentar formas alternativas de política e sociedade. Mesmo que a Comuna não tenha acabado com o Estado capitalista, seu grande mérito foi arrebatar completamente seu controle da burguesia, transformando-o em um organismo novo, que permitia o acesso ao poder a quem tradicionalmente havia sido apartado dele. Já não era o governo das classes elitistas dominantes, mas o das maioria populares não representadas, os operários, cuja bandeira vermelha, símbolo da fraternidade internacional dos trabalhadores, tremulava pela primeira vez na sede do Governo, o Hôtel de Ville.
Neste ponto, adquire especial relevância o componente socialista da Comuna, presente no tipo de democracia que se estabeleceu: uma democracia não meramente formal, mas substantiva, participativa, que combinava democracia representativa com democracia direta. Uma democracia que representava um processo mais além da tomada conjuntural do poder, já que aspirava substituir o aparato burguês do Estado por outro, em correspondência com os interesses da classe trabalhadora. Em outras palavras, a democracia operária da Comuna permitiu a inversão do poder, deslocando o poder político classista e elitista monopolizado por proprietários para colocar nas mãos da classe trabalhadora a capacidade efetiva de deliberar, decidir e organizar a sociedade.
A democracia da Comuna articulava-se em torno de cinco princípios: 1) Eleição por sufrágio universal de todos os funcionários públicos. 2) Limitação do salário dos membros e funcionários comunais, que não podiam exceder o salário médio de um operário qualificado, e em nenhum caso superar os 6 mil francos anuais. 3) Os representantes políticos estavam ligados umbilicalmente aos eleitores por delegação e mandato imperativo. 4) Qualquer representante podia perder a confiança dos eleitores e ser deposto de imediato; ou seja, a Comuna instituiu a revogabilidade do mandato, acabando com a perversidade de um sistema representativo liberal que, como na atualidade, permitia suplantar a vontade dos representados e promovia a profissionalização da política. A Comuna cuidou, deste modo, de fazer um uso contra-hegemônico da democracia representativa, em que os representantes obedecem — e não um sistema como o atual, em que os que mandam não obedecem, e os que obedecem não mandam. Este tipo de democracia representativa consagrava o direito popular a pedir contas, exigir responsabilidades e controlar os representantes, o que representou um duro golpe à (hoje tão em voga…) compreensão parasitária da política, vista como um trampolim para obter privilégios, fazer carreira profissional e esquecer-se do eleitorado. 5) Transferência de tarefas do Estados aos trabalhadores organizados, como a promoção da autogestão operária mediante a socialização das fábricas abandonadas pelos patrões.
Novas medidas emancipadoras. As iniciativas para socializar o poder político não foram as únicas. Também foram acompanhadas de medidas atrevidas de caráter social, entre as quais cabe destacar a separação entre Igreja e Estado, garantindo o caráter laico, obrigatório e gratuito da educação pública; a expropriação dos bens das igrejas; a supressão do serviço militar obrigatório; a aprovação de uma moratória sobre as rendas de habitação, que abolia as leis anteriores nesta matéria, confiscava as residências vazias e cancelava as dívidas por aluguel, pondo a moradia a serviço das necessidades sociais e ao bem estar geral; a supressão do trabalho noturno das padarias e a proibição da prática patronal de multar os empregados, uma estratégia habitual para reduzir seus salários.
Contudo, a burguesia francesa não permitiu que o novo sistema político prosperasse. Com a colaboração das tropas prussianas que cercavam Paris, o governo de Versalhes enviou mais de 130 mil soldados que, em 28 e maio de 1871, depois de 72 dias intensos e fugazes de autogoverno popular, aniquilaram a Comuna. Estima-se que na batalha tenham morrido mais de 20 mil parisienses, e que uns 43 mil combatentes tenham sido capturados; 13 mil condenados à prisão, 7 mil deles deportados para a Nova Caledônia.
A Comuna de Paris representa não apenas a última das grandes revoluções populares do século XIX, mas também o primeiro dos democraticídios da era moderna, algo mencionado apenas de passagem na história “oficial” da democracia. Lamentavelmente, hoje também são tempos de democraticídio, de extermínio de saberes e práticas democráticas. O capitalismo fulminou a democracia representativa em boa parte da Europa, onde os Parlamentos e as eleições tornaram-se praticamente dispensáveis. Mas também são, entre outras coisas, tempos de experimentalismo político, de rachaduras no poder constituído, de protestos populares, de organização coletiva e de lutas por um poder popular constituinte. Como nos recorda a Comuna de Paris, ele nasce nas ruas, como exigência de mudança das velhas estruturas políticas e econômicas que oprimem a gente e restringem a construção de outras democracias possíveis.
*GilsonSampaio

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