GOLPISTAS E MACONHEIROS
Enquanto jovens que querem legalizar a maconha são tratados na pancada, quem defende golpe militar é tratado a pão de ló
Paulo Moreira Leite
A importância dos protestos a favor de um golpe militar no fim de semana reside em sua desimportância.
O povo fez sua parte. Ao ignorar as manifestações, demonstrou sua rejeição a aventuras contra a democracia e contra a liberdade.
Os sociólogos e analistas políticos que adoram falar numa “cultura
autoritária” do brasileiro, sempre útil quando se quer achar uma
justificativa para o próprio autoritarismo, já estavam com o argumento
no bolso para ser utilizado caso algum protesto tivesse reunido um pouco
de gente a mais. Tiveram de ficar em silêncio.
O fiasco da marcha dos golpistas não terminou bem para todo mundo,
porém. A marcha foi tratada de forma tolerante, hospitaleira até, por
determinados meios de comunicação.
O que se viu foi o seguinte.
-- Você vai ao cinema?
-- Não. Vou pedir um golpe de Estado.
E isso é grave, até porque não resiste a uma comparação.
Há vários anos que assistimos a um ritual conhecido. Toda vez que
estudantes e jovens procuram organizar uma marcha pela legalização da
maconha, surgem vozes dispostas a proibir a manifestação. Mesmo
reconhecendo que vivemos num país onde a liberdade de expressão é um
direito fundamental, não faltam questionamentos.
Já em 2010, o desembargador Sergio Ribas afirmou:
“Enquanto não houver provas científicas de que o ‘uso da maconha’ não
constitui malefícios à saúde pública e que a referida substância deva
sair do rol das drogas ilícitas, toda tentativa de se fazer uma
manifestação no sentido de legalização da ‘maconha’ não poderá ser tida
como mero exercício do direito de expressão ou da livre expressão do
pensamento, mas sim, como sugestão ao uso estupefaciente denominado
vulgarmente ‘maconha’, incitando ao crime, como previsto no artigo 286,
do Código Penal, ou ainda, como previsto na lei especial, artigo 33, 2º,
da Lei 11.343/2006.”
Um ano antes, em 2009, a desembargadora Maria Tereza do Amaral já havia
dito que: “não se desconhece o direito constitucional à liberdade de
expressão e reunião, que, à evidência, não está se afrontando neste
caso, porquanto, não se trata de um debate de idéias, mas de uma
manifestação de uso público coletivo da maconha”.
Não sou a favor da legalização da maconha. Mas admito que há um lugar
para que isso seja debatido em nossa sociedade e que as pessoas
favoráveis a medida possam expressar-se. O argumento para proibir a
marcha da maconha dizia a
que a liberdade de expressão também tem limites numa sociedade
democrática, principalmente quando atenta contra a ordem
pública/jurídica, ou a paz social.
Ordem pública? Paz social? Com golpe?
Pergunto por que esses mesmos questionamentos não foram feitos diante da marcha dos golpistas.
Acho que ninguém precisa de “provas científicas” de que as ditaduras fazem mal a nossa vida pública.
Não estamos falando de uma medida pontual, que diz respeito a uma droga
específica, como a maconha, mas de uma garantia fundamental do Estado de
Direito. A democracia, para os brasileiros, não está mais em discussão
desde 1988, pelo menos. Naquele ano, ela entrou na Constituição como
cláusula pétrea – que não pode ser reformada e que, conforme
entendimento do Supremo, o Congresso sequer tem o direito de debater se
irá reformar ou não. O artigo 60 da Carta diz:
“Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a
abolir:
I - a forma federativa de Estado;
II - o voto direto, secreto, universal e periódico;
III - a separação dos Poderes;
IV - os direitos e garantias individuais.
Isso quer dizer o seguinte. Não se pode debater o retorno da censura nem
da tortura nem tentar legalizar o racismo. O voto direto não pode ser
abolido e assim por diante.
Desse ponto de vista, o que se viu no fim de semana foi puro absurdo –
reforçado quando se verifica o tratamento dispensado aos garotos que
pediam a legalização da maconha. Eles tomaram porrada. Foram feitas
prisões. Com o pretexto de que eles pretendiam fumar maconha na rua – o
que é proibido e pode ser punido na forma da lei – proibiu-se que
manifestassem sua opinião, o que é perfeitamente legítimo.
E aí o que nós vimos no fim de semana foi outro fenômeno político.
Em
vez de ser rejeitado de forma absoluta pretendeu-se dispensar à ideia
de um golpe de Estado um tratamento relativo, com argumentos
supostamente equilibrados, ora contra, ora a favor.
Vamos “debater” a ditadura? Procurar seu lado "bom"?
É inaceitável. O que se fez na rua no fim de semana foi a apologia de um crime.
Mas dá para compreender como manifestação política.
A
experiência ensina que a democracia sempre se torna um valor relativo
quando deixa de atender a determinados interesses. Nessas horas, as
juras de amor pelo regime são acompanhadas de muitos mases, poréns,
entretantos e todavias... Erros, falhas, incongruências de um governo
são apresentados como falhas do próprio sistema, como justificativas
para questioná-lo nas entrelinhas.
Fico imaginando se alguém questiona a democracia, nos Estados Unidos
(nos Estados Unidos!) toda vez que Barack Obama tem o governo paralisado
porque atingiu o limite de gastos no orçamento.
É
isso o que se vê hoje e nós sabemos muito bem por que. Apos três
derrotas consecutivas em eleições presidenciais, ameaçados de enfrentar
um quarto fracasso em outubro, conforme dizem todas as pesquisas de
intenção de voto, os filhos, netos e bisnetos ideológicos dos golpistas
de 64 sonham com uma revanche.
Acredite: sonham com uma Venezuela e o sufoco imposto a Nicolas Maduro.
Não suportam a possiblidade de enfrentar mais quatro anos longe do
poder, com um governo que, apesar de muitos trancos, barrancos e
solavancos, tem conseguido manter uma política de distribuição de renda,
preservação com emprego e dos salários.
Confiando na perda de memória de 1964, os marchadeiros de 2014 mostram
que perderam até a vergonha. Têm coragem de falar que só querem uma
intervenção pontual, de curta duração. Nem neste aspecto são originais.
No 1 de abril de 1964, é bom lembrar, falava-se uma intervenção tão
curta que os militares iriam se retirar a tempo da retomada do
calendário eleitoral, em 1965.
O país foi obrigado a atravessar um quarto de século de treva autoritária antes de recuperar seus direitos soberanos.
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