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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

sábado, março 08, 2014



A Pública
Caso Amarildo é um dos poucos investigados entre os mais de 6 mil desaparecidos no Estado do Rio de Janeiro entre 2012 e 2013; Especialistas vêem relação entre queda de homicídios praticados por agentes do Estado e desaparecimentos em alta
Em julho do ano passado, um grito ecoou na maior favela da zona Sul do Rio de Janeiro e ultrapassou fronteiras. Como se viesse das caixas de som da rádio poste da Rocinha, o clamor da viúva do pedreiro desaparecido nas mãos da polícia multiplicou-se pelas faixas dos protestos de rua, que sacudiam o país desde junho, e ganhou as redes sociais.
“Cadê o Amarildo?”, o mundo passou a perguntar, como se o conhecesse ali do botequim do Julio, na parte baixa da comunidade. Com a pressão da sociedade, as investigações seguiram adiante. Acabaram revelando que o marido de Elisabete Gomes, trabalhador e pai de 7 filhos, foi torturado e morto pelos policiais da UPP da Rocinha.
Os 25 policiais indiciados por participação nas torturas que levaram Amarildo à morte começaram a ser julgados este mês. Seu corpo, porém, continua desaparecido. Ainda assim o desfecho é uma raridade entre os casos de desaparecimento no Rio de Janeiro – muitos sequer são investigados.
O caso de Amarildo foi o único a ganhar visibilidade entre os 6.034 desaparecimentos contabilizados entre novembro de 2012 e outubro de 2013, pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) – não há dados mais recentes disponíveis. Desde o primeiro ano do governo Sérgio Cabral, as estatísticas do ISP (vinculado à Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro) apontam quase 40 mil desaparecidos.
Além da fragilidade das investigações policiais, o desaparecimento do pedreiro, denunciado por Elisabete, escancarou a violência encoberta pela empolgação com as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), criada a partir de novembro de 2008, com a promessa de “pacificar” as favelas cariocas, martirizadas pelo crime organizado e pela polícia.
“Eu não vou parar de gritar, deixar isso impune. Já que eles (os acusados pelo crime) tão na m…, porque não falam logo onde está meu marido? A família do Amarildo não é fácil. Não vamos calar a boca. Mesmo que meu marido fosse traficante, não tinha que matar, tinha que prender”, reafirma ainda agora Elisabete, as palavras atropeladas pela velocidade da fala, que é a sua arma desde o desaparecimento de Amarildo. Quanto mais gente ouvir o que ela diz, melhor. “No outro dia eu já estava no Wagner Montes (programa policial da Record), na Globo, em tudo que é lugar”, conta.

Dedo apontado para a polícia

Desde 15 de julho, Bete insiste: o marido desapareceu pelas mãos de policiais da UPP, instalada 10 meses antes para substituir a dominação territorial do tráfico de drogas na favela da Rocinha. O disse-me-disse para desacreditar a versão da mulher de Amarildo começou naquele dia. O soldado Douglas Vital, responsável pela abordagem agressiva do pedreiro, disse que não conhecia Amarildo e o confundira com um traficante chamado Guinho - apesar de já ter prendido um de seus filhos e de testemunhas relatarem que ele ameaçava Amarildo. O comandante da UPP, major Edson Santos, disse que o pedreiro havia sido liberado depois de uma averiguação de rotina e saíra da sede da unidade pela “escada da Dionéia” - câmeras de segurança não confirmaram sua versão.
O então delegado adjunto da 15ª Delegacia de Polícia (Gávea), Ruchester Marreiros, disse que Amarildo e Bete prestavam serviços para o tráfico e chegou a pedir a prisão da esposa do pedreiro. Por ele, a investigação teria terminado logo na primeira semana, com a conclusão de que Amarildo teria sido morto pelos traficantes, que persistem na comunidade, como suposto X-9 – numa escuta telefônica forjada pelos PMs, um “traficante” assumia a culpa pelo crime. Mas Bete não desistiu.
“Procuramos em tudo que era parente. Fomos em Nova Iguaçu, Alcântara, e nada. Aí começamos a procurar em delegacia”, lembra Bete enquanto caminha pelas ruelas da Rocinha, sob olhares dos policiais da UPP, ao lado dos três filhos mais novos, que se recusam a deixar a mãe sozinha desde o sumiço do pai.
Bete, esposa de Amarildo, ainda busca pistas sobre o caso do marido (Foto: Giuliander Carpes)
Bete, esposa de Amarildo, ainda busca pistas sobre o caso do marido (Foto: Giuliander Carpes)
Relembra a história: “Chegamos na delegacia e fomos maltratados pelo delegado lá. O delegado veio cheio de abuso comigo. Disse que a gente era envolvido. Disse ‘vai embora, some daqui, vai procurar seu marido noutro lugar’. Depois disse ‘tô só alisando a sua cabeça’. Eu falei ‘moço, tô atrás do meu marido, o policial sumiu com o meu marido e os documentos dele também’.”
Naquele julho, o Brasil, em especial o Rio de Janeiro, vivia uma onda de protestos, reivindicando principalmente cidadania. A violência dos agentes do Estado contra um negro, morador de favela, tantas vezes repetida, dessa vez foi cobrada nas ruas por uma multidão indignada. O governo teve que dar prioridade ao caso. Foi quando o então delegado titular da 15ª DP, Orlando Zaccone (hoje na 30ª DP -Marechal Hermes) mudou o rumo das investigações. O crime passou a ser apurado como assassinato e o caso passou depois para a Divisão de Homicídios (DH).
Na divisão especializada, os investigadores concluíram que o pedreiro foi torturado dentro da própria sede da UPP.As “técnicas” utilizadas envolviam asfixia com saco plástico na cabeça, choque elétrico na planta dos pés molhados e afogamentos na privada.
Mais grave: esses “métodos” eram usados corriqueiramente contra “suspeitos” na unidade comandada pelo major Edson Santos, ex-agente do Batalhão de Operações Especiais (Bope), de acordo com os depoimentos de 22 pessoas que sobreviveram às torturas, anexados ao inquérito de mais de 2,6 mil páginas sobre o caso Amarildo.
A resistência dos policiais acusados em dizer onde está o corpo de Amarildo também chamou a atenção de especialistas em violência para um fenômeno cada vez mais nítido no Rio de Janeiro: o crescimento no número de desaparecimentos, que alguns relacionam com outro índice alterado, este, em queda: o registro de mortes provocadas por policiais.
Leia também: O repórter Giuliander Carpes relata os bastidores da reportagem

O sobe e desce do crime

O Instituto de Segurança Pública (ISP) do Estado do Rio de Janeiro reconhece que o desaparecimento de pessoas assumiu viés de alta desde o início dos anos 1990. Em 1991 foram registrados 2.616 casos. Em 2003, o número pulou para 4.800 desaparecidos, e depois de uma queda de 19,4% no governo de Rosinha Garotinho – foram 3.877 em 2006, recuperou o fôlego no governo Cabral quando os sumiços aumentaram 32%.
Por outro lado, os números do ISP referentes a homicídios dolosos caíram praticamente na mesma medida: 35% (de 6.133 casos, em 2007, para 4.543 de novembro de 2012 a outubro de 2013). E a queda é ainda maior ao se examinar as taxas de autos de resistência (mortes de civis em confrontos com policiais) na comparação dos mesmos períodos: 72% (de 1.330, em 2007, para 402 casos entre 2012 e 2013).
Em 2009, o ISP realizou uma pesquisa para verificar se – e em quantos casos – os desaparecimentos poderiam estar encobrindo homicídios – praticados por policiais ou não-policiais – através da ocultação de cadáver. As conclusões minimizaram a importância do fenômeno: segundo o instituto de pesquisa da Secretaria de Segurança Pública do Rio de Janeiro, com pouco mais de 400 familiares de desaparecidos contatados por telefone, 71% dos desaparecidos já haviam retornado para casa e apenas 7% foram encontrados mortos; 15% jamais foram vistos novamente, vivos ou mortos.
Como os crimes não foram investigados, pouco se sabe além desses números obtidos em um estudo que “apresenta algumas limitações metodológicas, como uma mostra pequena e um contato com os denunciantes feito pela via telefônica”, como explica o sociólogo Ignacio Cano, sociólogo coordenador do Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ).

Obscuras estatísticas

Ainda assim, as especulações de que os desaparecimentos estariam encobrindo crimes ganharam força. Até por que, um ano antes da pesquisa, a antropóloga Ana Paula Miranda, ex-diretora do ISP, afirmara para o jornal O Estado de S. Paulo que “o governo não contabilizava autos de resistência na soma final de homicídios dolosos” e que “alguns casos que são claramente homicídios [os casos] estavam sendo registrados como encontro de cadáveres e ossadas”. O sociólogo Gláucio Soares, que comandou o estudo de 2009, publicou então um artigo no jornal O Globo desqualificando a hipótese, dizendo que as estatísticas fluminenses não eram maiores do que a de outros países e que  homicídios e desaparecimentos “não eram farinha do mesmo saco”.
A dificuldade de obter números oficiais confiáveis, porém, continua a ser um obstáculo para os que se dispõem a aprofundar as pesquisas sobre o tema. “É preciso fazer muito trabalho de campo porque os dados em si não vão falar nada. A própria forma dos registros, os boletins de ocorrência não falam muita coisa. Eles já são feitos propositadamente para não deixar pistas das coisas”, opina o sociólogo Fábio Araújo, que em 2012 apresentou uma tese de doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) sobre desaparecimentos forçados.
Outro motivo para a desconfiança dos pesquisadores em relação às estatísticas policiais é o fato de que as quedas de homicídios e autos de resistência estão entre as metas do programa de redução de criminalidade da Secretaria de Segurança Pública do estado. Quando a chamada “letalidade violenta” cai, há bônus em dinheiro para os membros de batalhões da polícia militar e delegacias de polícia civil. Segundo a Secretaria de Planejamento e Gestão, o repasse total em 2013 foi de R$ 59.862.142,64, distribuídos entre 8.036 servidores.
“Naturalmente, quem vai ser avaliado não pode produzir sozinho esta informação, tem que haver algum outro esquema para garantir que aquela informação é fidedigna, muitas vezes o interesse da delegacia pode ser não registrar”, diz o economista Daniel Cerqueira que se debruçou sobre as estatíticas de mortes violentas para realizar uma pesquisa para o Ipea (Instituto de Pesquisas e Análises). “Não é uma hipótese de manipulação do sistema (de dados), mas sim uma hipótese de manipulação do ser humano. É algo até natural se formos pensar que ele está trabalhando para ganhar lá na frente”, pondera.
Na pesquisa “Mortes Violentas Não Esclarecidas e Impunidade no Rio de Janeiro”, Cerqueira cruzou os dados do ISP e do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM), do Ministério da Saúde – considerados internacionalmente como mais confiáveis. Toda morte violenta cuja causa não é logo elucidada comunicada ao SIM deve gerar uma investigação com participação de legistas e da polícia, que então concluirá se foi ou não fruto de crime. Segundo Cerqueira, no entanto, desde 2007 o governo Cabral dificulta o repasse de informações das autoridades policiais para as de saúde, fazendo crescer os casos qualificados como mortes sem causa esclarecida.
“Os dados passaram a perder muita qualidade. Muitas mortes por arma de fogo ficam registradas no SIM como mortes violentas de causa indeterminada”, explica o pesquisador, que considera essas mortes violentas como “homicídios ocultos”.
Os números são significativos. Embora o número de homicídios tenha permanecido estável entre 2006 e 2009, as mortes violentas de causa indeterminada correspondiam a 62,5% do número total de mortes registradas em 2009 no SIM. Em números absolutos, isso significa que 3.165 homicídios deixaram de ser incluídos nas estatísticas do ISP daquele ano.
Por outro lado, o Rio de Janeiro é o campeão brasileiro em número de mortes violentas indeterminadas. Nos registros de São Paulo, por exemplo, a taxa dessas mortes passou de 11 por 100 mil habitantes entre 2000 e 2006 para 6 por 100 mil habitantes entre 2007 e 2009, igual à média nacional. No Rio, nos mesmos períodos essa taxa subiu de 12 para 22 por 100 mil habitantes.
O ISP respondeu às conclusões do Ipea com uma nota. “Os bancos de dados da Secretaria de Estado de Segurança, compilados pelo Instituto de Segurança Pública (ISP), e da Secretaria de Estado de Saúde, tratados no Sistema de Informação de Mortalidade (SIM), são distintos em sua finalidade, temporalidade e categorização dos dados. Por isso, qualquer comparação entre os bancos de dados da Segurança e da Saúde que não considere essas diferenças resultará em conclusões equivocadas.”
Alheio à discussão estatística, o advogado João Tancredo, que representa a família de Amarildo na Justiça, conhece bem os crimes cometidos por policiais no Rio de Janeiro. Há anos ele acompanha casos que envolvem violência de agentes do Estado – dentro e fora do expediente – contra a população e não tem dúvidas: o aumento dos desaparecimentos está intimamente ligado à diminuição dos homicídios causados por policiais.
“Para mim, o auto de resistência hoje em dia tem se tornado desaparecimento. Por quê? O auto tem os nomes das vítimas e dos policiais militares. Se a família (da vítima) cobra providências, a sociedade civil se mobiliza e o PM que matou alguém de forma covarde vai para a cadeia. Ao governo do estado é melhor ter a aparência de paz. O aumento dos desaparecimentos faz sentido nesta ideia. Desaparecimento não tem autor”, pondera.
Tancredo também conhece bem a atuação das milícias formadas majoritariamente por policiais “justiceiros” e corruptos. Em 2008, como presidente do Instituto de Defensores dos Direitos Humanos (IDDH), chegou a ter o carro – blindado – alvejado por quatro tiros ao investigar uma denúncia de moradores da favela Furquim Mendes sobre um policial que estava cometendo crimes na região – conhecido então como “Predador”, um miliciano.

No berço das milícias

Os policiais de Campo Grande, na zona oeste do Rio de Janeiro, estão entre os que mais se beneficiaram dos bônus pela queda nas estatísticas de “letalidade violenta” no ano passado – a região teve o segundo melhor resultado do estado, atrás apenas da pequena Barra do Piraí, no interior do estado.  Em dezembro, o governo anunciou que cada policial da região receberia R$ 9 mil a mais no contracheque pelo cumprimento da meta.
De fato, os homicídios caíram bastante por lá. Em 2011, foram registrados 149; em 2012, 106 casos, e apenas 60 homicídios constam nos dados disponíveis dos últimos 12 meses (seis deles registrados como autos de resistência) – correspondendo a uma queda de 60%. Mas os desaparecimentos só aumentaram. Passaram de 212 para 249 entre 2011 e 2012 e já somam 278 casos nos últimos 12 meses. É a delegacia que mais registra desaparecimentos no Estado.
Na Delegacia de Campo Grande um mural mostra o rosto dos desaparecidos (Foto: Giuliander Carpes)
Na Delegacia de Campo Grande um mural mostra o rosto dos desaparecidos (Foto: Giuliander Carpes)
Campo Grande é conhecido por moradores e especialistas como o berço das milícias, que continuam a agir com a maior desenvoltura através da cobrança de taxas da população – para autorizar a circulação das vans, dos caminhões de gás, instalar TV a cabo pirata e, claro, fornecer “serviços de segurança”. Esses “serviços” incluem dar fim a “suspeitos” de pequenos crimes ou de importunar a ordem local.
“Muitas das milícias são formadas por policiais em atividade. A escala da PM é de 24h de trabalho por 72h de folga. Nestas 72h de folga, o PM vira miliciano. É o bico. E o objetivo da milícia é desaparecer com marginal”, diz o sociólogo Michel Misse, coordenador do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e autor do livro “Quando a Polícia Mata”.
No dia 31 de julho de 2012, Donício Alves Vianna Júnior, conhecido como Dony e morador da comunidade de Bel Clima, em Campo Grande, desapareceu. Naquela noite, pretendia sair com o primo e com a cantora Anitta – que ainda não tinha caído nas graças do público, apenas na lábia do Don Juan de Bel Clima, com quem tinha um affair. Tudo que se descobriu sobre o desaparecimento do garoto de 22 anos, estoquista de uma empresa que prestava serviços para Michelin, é que ele foi rendido naquela noite por volta das 21h30 por um grupo de quatro homens.
Dony desapareceu em 2012, em Campo Grande
Dony desapareceu em 2012, em Campo Grande
Fui visitar a família de Dony em Bel Clima, uma das grandes ilhas de pobreza que se encontram nesse bairro de classe média, como acontece em todo lugar no Rio de Janeiro. No meio da tarde quente de janeiro, a praça estava iluminada pelo sol incandescente do verão e crianças brincavam despreocupadas nos brinquedos do play. Aliás, como lembram seus familiares, a praça onde Dony desapareceu é muito frequentada, mesmo à noite. Ainda assim os sequestradores não se intimidaram.
“Dizem que aqui não tem milícia, só que tem sim. É pior ainda que outros lugares porque aqui ela não dá tanto na vista”, diz Robson da Silva Heringer, primo e melhor amigo de Dony. Antes do desaparecimento, os dois eram unha e carne, compartilhavam segredos. Robson conta que Dony assinou sua sentença de morte ao se envolver com a amante de um dos chefes da milícia local, seu vizinho. “O moleque era ‘pintoso’. E era chato. A gente ia lá para o Camaleão (boate), lá para o lado do RioCentro, e ele pegava geral. Vinha todo dia falando de mulher”, conta o primo enquanto conversamos no local onde o garoto desapareceu.
“Onde ele chegava juntava um monte em cima dele, né? A maioria das amizades dele eram com mulher”, concorda a mãe de Dony, Vera Lúcia Vianna, com uma pontinha de orgulho.
Dony conheceu a Eva de seu Paraíso semanas antes de desaparecer, no salão onde cortava o cabelo, ali perto. Comentou com o primo que a loira estava dando mole. Pergunto a Robson se o primo sabia que a moça estava envolvida com um miliciano. “Creio que não. Se ele soubesse, não seria tão burro. Mulher tem aos montes por aí”, responde Robson.
Na emboscada, os milicianos deram socos, tapas e ameaçaram Dony com um fuzil. Pelo menos um deles vestia uma camisa cinza onde se lia “POLÍCIA CIVIL”. Entraram no seu carro e obrigaram-no a dirigir para o nada.
Sem dormir, a família ficou dois dias procurando por ele: foram no Instituto Médico Legal, visitaram favelas, reviraram matagais da zona oeste conhecidos como locais de desova dos milicianos. “Nós rodamos isso tudo atrás do meu filho. Entrei em todas as favelas. Meia-noite estava naquela de Cosmos”, conta Vera Lúcia com a voz cansada e o olhar perdido na tatuagem que fez para o filho no braço.
Cosmos é uma localidade que rima com milícia. Lá os integrantes destes bandos andam com uma arma na mão e mulheres, bebidas ou “vagabundos” no outro braço. ”Campo Grande todo é da galera de Cosmos. Tudo que é quadrilha de Campo Grande presta contas lá”, explica Robson. “Cosmos é o quartel-general deles”, diz o pai de Dony.
O Fiat Siena preto que Dony dirigia ainda apareceu uma vez depois do sumiço dele. Outro primo do garoto perseguiu de moto o veículo que rodava em alta velocidade pelas estradas de Campo Grande. Derrapou numa curva, caiu, machucou o braço, e nunca mais ninguém viu o carro de novo.
Segundo o inquérito aberto para investigar o caso, não havia policiais civis envolvidos, mas sim quatro policiais militares do 27º (Santa Cruz) e 40º (Campo Grande) batalhões que foram presos. Dois comparsas e a loira continuam foragidos. Enquanto conversamos na calçada, Robson aponta um Renault Sandero com vidros pretos que, segundo ele, foi o carro que abordou Dony no dia do crime. Um dos suspeitos estaria ali dentro, ele diz.
Vera tatuou o nome do filho, desaparecido após cair numa emboscada de milicianos (Foto: Giuliander Carpes)
Vera tatuou o nome do filho, desaparecido após cair numa emboscada de milicianos (Foto: Giuliander Carpes)
“Eles espalharam câmeras por aqui tudo, já devem até ter visto que estamos conversando”, diz Robson. O carro passa lentamente, parece que a não mais do que 5 km/h. Não é possível ver quem está dentro do veículo por causa dos filtros nas janelas do carro, mais escuros do que a lei permite.
Leia também: O repórter Giuliander Carpes relata os bastidores da reportagem

Para o delegado, fato isolado

O delegado da 35ª DP (Campo Grande), Marcus Drucker Brandão, encarregado do inquérito, me recebe no escritório quase desprovido de mobília, ocupado por uma mesa coberta de pilhas de papéis. Puxo uma cadeira para escutá-lo. Ele começa por criminalizar a vítima, que segundo ele, estava “prestando vestibular para o crime”. “Uma testemunha conta que ele havia dirigido um carro para outro colega tentar matar um miliciano”, diz.
Depois disse que o caso de Dony é “um fato isolado” no bairro que, segundo ele, nem tem mais as milícias formadas majoritariamente por policiais. “Hoje estes grupos são o que nos Estados Unidos chamam de gangues. A grande maioria dos policiais e ex-policiais que comandavam as milícias estão presos. Neste vácuo de poder do crime, eles foram substituídos por civis. O problema é que, por continuarem sendo chamadas de milícia, elas passam uma condição oficial, ou oficiosa, para a comunidade”, discursa.
Segundo a Secretaria de Segurança Pública do Estado, que destacou a Delegacia de Repressão às Ações Criminosas e Organizadas e Inquéritos Especiais (Draco-IE) para combater as milícias, entre 2007 e 2013, 857 milicianos foram presos, contra apenas cinco em 2006.
Brandão diz ainda que a maior parte dos desaparecimentos é de gente que perde o caminho de casa por sua própria vontade. “Há muitas famílias desestruturadas na região.”
Não é essa a realidade que apontam as pesquisas acadêmicas. Segundo um estudo recente da antropóloga Alba Zaluar, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos (Iesp) da UERJ, em conjunto com Christovam Barcellos, da Fiocruz, a milícia domina 454 das 1001 favelas localizadas no município do Rio de Janeiro – o equivalente a 45%.
“Lá (em Campo Grande) estão as milícias. Lá também estava a maior taxa de homicídios do município. É a milícia que está matando. Vai investigar o quê? Começar por onde? Miliciano enterra no meio do mato e acabou. As famílias têm medo. O máximo que elas fazem é registrar o desaparecimento, quando o fazem. Muitos desaparecimentos nem são registrados. Acho inclusive que a maioria dos desaparecimentos que são, na verdade, assassinatos não são notificados”, opina Misse.
Com ele concorda Ignácio Cano, autor do livro “No Sapatinho”, sobre a evolução dos grupos paramilitares no Rio de Janeiro: “Apesar do número de denúncias ter caído a partir de 2009, a repressão não conseguiu desarticulá-las (as milícias). Há indicações de que elas continuam atuando normalmente”, afirma.
Em seu estudo, Cano propôs um modelo estatístico cruzando dados de denúncias contra milícias e registros de desaparecimentos e homicídios até 2011. Para ele, ficou estabelecida a ligação dos sumiços em Campo Grande com os grupos paramilitares da região. “Elas estão matando menos, mas estão sendo mais discretas nos seus homicídios, recorrendo ao desaparecimento de pessoas como alternativa. Os registros oficiais de desaparecimentos, a despeito das suas limitações, parecem confirmar uma tendência de aumento de casos em locais e momentos que a milícia está mais presente.”
Há moradores de Campo Grande que aprovam e outros que temem a atuação das milícias. Um deles, ex-colega de escola de alguns milicianos que atuam sob o codinome de personagens do game Street Fighter, descreve com rigor e certo fascínio um dos métodos utilizados pelos criminosos para desaparecer gente. “Eles fazem um corte do pescoço até o umbigo e retiram as vísceras da pessoa. Aí jogam no rio Guandu. Sem as vísceras, o corpo não boia, afunda.”
O rio, que passa por Campo Grande e deságua na Bacia de Sepetiba, é onde está localizada a estação de tratamento de água (ETA) Guandu. A Companhia Estadual de Águas e Esgotos (CEDAE) se orgulha da construção: é a maior do mundo, reconhecida pelo Guinness, o livro dos recordes. Um funcionário da empresa comenta que não há dia que não tiram um cadáver da peneira da ETA Guandu direto para o IML. Desde 1955, sai dali a água que abastece toda a cidade do Rio de Janeiro e boa parte da Baixada Fluminense. O líquido pinga das torneiras insípido, incolor, com cheiro de morte.

Na mira do tráfico

Outro caso de desaparecimento investigado nessa reportagem é o de Felipe Rodrigo Pinheiro Venâncio, no dia 22 de novembro de 2008, em Duque de Caxias. Felipe morava na Cruzada São Sebastião, uma ilha de pobreza no coração do Leblon, bairro com o metro quadrado mais caro do Brasil. Construído em 1955 para abrigar os moradores despejados da favela Praia do Pinto, o conjunto habitacional tem 10 prédios e 945 apartamentos construídos em padrão muito inferior ao dos edifícios vizinhos.
Felipe desapareceu em 2008 e até hoje seu caso não foi esclarecido
Felipe desapareceu em 2008 e até hoje seu caso não foi esclarecido
Mas o garoto de 20 anos gostava de ficar no apartamento onde morava, no bloco 5. De lá só saía para dar uma passada num bar ao lado ou para visitar familiares em Jacarepaguá, na zona oeste da cidade. No dia fatídico, a contragosto da mãe, Gracilea de Alcântara Pinheiro, cedeu ao pedido da namorada de passar a noite de sábado com ela em Nova Campina, na Baixada Fluminense. A sogra estava de aniversário. Segundo relatos, foi a última festa que o jovem participou na vida.
No dia seguinte, o telefone da casa da mãe de Rodrigo tocou por volta das 16 horas. Sua irmã, Patrícia, atendeu. “Meu irmão, não! Meu irmão, não!”, repetia, antes de desmaiar. Do outro lado da linha, a namorada do jovem, Juliana, dizia que Felipe havia sido raptado por três homens enquanto jogava futebol num campo ao lado do “Brizolão”, uma escola de Nova Campina construída durante o mandato do finado governador. E desligou.
Sem o telefone ou o endereço da namorada, a família de Rodrigo penou ao iniciar a busca. Na delegacia, só aceitaram registrar o boletim de ocorrência no dia 25, três dias depois do desaparecimento. ”Em todo lugar só faltaram falar que eu era mentirosa. O inspetor que nos atendeu disse: ‘Esta história está muito mal contada’. Eu não podia inventar outra história porque foi o que a Juliana passou pelo telefone. Ela não falou com a gente pessoalmente”, conta a mãe.
Diante da família, a polícia atacava a vítima, um jovem negro morador de uma comunidade onde sabidamente existe tráfico de drogas, consumidor ocasional de maconha. Vale tudo para evitar uma investigação aprofundada, como descobriria depois a família de Amarildo.
“Eles acham que filho de pobre é tudo traficante, não pode estudar, se formar. Então se acontece alguma coisa é porque é vagabundo”, afirma a irmã do desaparecido. “Ninguém podia dizer que era traficante. Não tinha registro na polícia nem nada. E mesmo se fosse, ele é um cidadão.”
Em depoimento ao delegado, Juliana e o pai dela disseram que não sabiam quem poderia ter levado Felipe. Uma semana depois do desaparecimento, porém, o pai de Juliana apareceu na Cruzada com todas as roupas que Rodrigo havia levado para Nova Campina: uma camiseta azul clara, calça bege, uma bermuda, um par de tênis, meias e até a cueca. Também devolveu os documentos do rapaz.
Uma semana depois de Felipe desaparecer, a mãe recebeu as roupas e os documentos do jovem (Foto: Giuliander Carpes)
Uma semana depois de Felipe desaparecer, a mãe recebeu as roupas e os documentos do jovem (Foto: Giuliander Carpes)
“Passei isso para a polícia, mas não colocaram no boletim de ocorrência. Não consegui entender como ele chegou com a roupa toda completa do garoto e os documentos dele. Eu disse para ele pelo menos telefonar para a delegacia, contar o que tinha acontecido. Ele respondeu: ‘Sinto muito. Eu sei quem matou seu filho, mas não posso falar porque eles estão na frente da minha casa 24 horas por dia. Se a gente falar quem fez, vão matar todo mundo. E a Juliana tive que tirar de casa porque eles querem matar ela também.’”
Histórias que chegaram aos ouvidos da família dão conta que Juliana teria envolvimento anterior com um traficante de Nova Campina integrante de uma facção rival aos “donos” do comércio de droga da Cruzada. A ex-namorada estaria então nos braços de um inimigo.
A investigação da polícia não comprovou esta versão nem qualquer outra. O inspetor que me recebeu na 62ª DP (Imbariê) disse apenas que o caso foi relatado no ano passado ao Ministério Público. Desde então permanece parado, já que não há provas para acusar ninguém da responsabilidade pelo crime.
Encontrei a casa que Juliana e sua família moram em Nova Campina, o local onde Felipe teria passado seus últimos momentos. É uma região humilde, as ruas não têm nome e a residência deles foi construída com muitas tábuas de madeira de procedências diferentes. Mandei um recado por uma vizinha para pedir para conversar com eles. Ela me diz que eles ficaram desesperados e pediram para ela falar que não conseguiu encontrá-los. Não querem remoer o caso.
Duque de Caxias é a maior cidade da Baixada e responde por 298 desaparecimentos – um quarto do total dos casos registrados entre novembro de 2012 e outubro do ano de 2013. Também é o primeiro município fora da capital fluminense a receber uma UPP, na favela da Mangueirinha, inaugurada em fevereiro.
Tive acesso a muitos casos desses casos de desaparecimento ocorridos há 3, 4, 8 e até dez anos que não foram devidamente investigados. Terminaram como o de Felipe, sem identificar responsáveis. Há no máximo indícios. Ninguém é punido. O velho ditado “não há corpo, não há crime” prevalece.
Leia também: O repórter Giuliander Carpes relata os bastidores da reportagem

Mortes inconclusas

Uma portaria da polícia civil do Rio de Janeiro de fevereiro de 2013 passou a exigir que as delegacias enviem os casos de desaparecimento não solucionados no prazo de 15 dias para a Seção de Descoberta de Paradeiros da Divisão de Homicídios – a mesma que investigou o sumiço de Amarildo. No entanto, nem sempre a norma é respeitada; outras vezes é a seção que não tem como dar conta da demanda.
Após uma pressão da Corte Interamericana dos Direitos Humanos, o Senado aprovou um projeto de lei para tipificar os desaparecimentos e transformar os sumiços forçados em crime. A votação ocorreu pouco depois do caso Amarildo. Se aprovado também pela Câmara dos Deputados, a prática será incluída no rol dos crimes hediondos. A pena de prisão pode variar de 6 a 40 anos.  Enquanto isso, prevalece o abandono dos casos.
Amarildo estava construindo uma laje no barraco onde morava para fazer um quarto para as filhas. Prometeu à Milena, de seis anos, que não morreria antes de terminar a obra. O dia em que Dony desapareceu foi o seu último de trabalho como estoquista. O dia seguinte seria sua estreia em um novo emprego, mais bem remunerado. Felipe só queria sair de moto nova por aí com a namorada.
São mortes inconclusas. Há dias que os familiares sonham no retorno dos sumidos com vida carregando os tijolos da obra, de volta do trabalho ou em cima de uma moto. Noutros, só gostariam de poder enterrá-los com dignidade, sete palmos de paz, o fim da angústia. “Medo? Eu não tenho nem um pouco”, diz a mãe de Dony, que se mudou de Campo Grande para o bairro vizinho de Bangu para evitar o local onde o filho foi visto pela última vez. “Eu tenho vontade de falar com quem fez isso cara a cara. Ele tirou a coisa mais importante da minha vida. Se ele me matar, está fazendo até um favor. Eu só queria ter o prazer de falar ‘você não tem filho, não, seu canalha? Você tirou a vida do meu filho tão jovem. Você não deve saber amar.’”




*coletivoDAR

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