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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

domingo, março 09, 2014

A luta contra o racismo também é feminismo

    Um dia pra lembrar que lutar contra o racismo também é feminismo


Por Charô Nunes
Houve um momento da vida em que quase enlouqueci. Me refugiar na ideia de que o racismo não existia não estava funcionando. A quantidade de trabalho empreendido para fechar os olhos era de tal ordem que estava praticamente me matando. Até que um dia não consegui suportar um comentário sobre ter de me vestir duas vezes melhor pelo fato de ser negra. Perceber que meus pesadelos de infância e adolescência não haviam terminado foi demais para mim. Hoje sei que não foi esse episódio isolado que me derrubou mas sim a combinação de todas as outras estórias, de anos a fio, tantas vezes sem revide e compreensão ou suporte.
Foi o olhar sanguinário do vigia, trabalhando para manter tudo onde está e nos fazem acreditar que a responsabilidade é nossa. Para muitos e na minha cabeça também, eu simplesmente havia sido fraca por sucumbir. O problema não era todo o sistema de coisas contra o qual eu lutava. Não era a aliança bensucedida entre todos aquele que se beneficiam e promovem o racismo. Eu que não havia remado o bastante, não até o fim. Mas um dia oxalá percebi que a minha estória é a de todas, que a estória de todas é a minha também.
Estou falando daquilo que para a estatística são apenas números, muitas vezes sem gênero ou ainda dolorosamente mulher. Ser apartada de sua negritude para sobreviver à violência. Ser criticada em todos os pormenores do seu corpo ou ser hipersexualizada justamente por causa deles, desde muito cedo inclusive. Ser perseguida por seguranças em shoppings, causar espanto por falar ou escrever corretamente, por não saber dançar ou não escutar samba. Por ousar ser outra coisa que não globeleza, tia nastácia, mãe preta de alguém. Por ter formado um ou todos os filhos. Ou ainda, simplesmente adoecer porque tudo isso junto ao longo de uma vida é demais, demais.
Tão feminismo quanto
Tão ou ainda mais triste que todo esse combinado de coisas é o fato de que grande parte dessas violências, e por consequência o esforço para combatê-las, ainda não são considerados questões de gênero por alguns, quando deveria ser enegrecido que combater o racismo é tão feminismo quanto falar sobre aborto, cultura do estupro ou mercado de trabalho. Tudo aquilo que diz respeito à mulher negra deveria ser feminismo para todo mundo. Desde a necessidade de você estar preparada para reagir quando alguém atacar nossa aparência. Ou ter ferramentas para detectar o tratamento desigual por parte de médicos que tem nojo de tocar em seu corpo ou não nos consideram inteligentes o bastante para entender um diagnóstico simplório.
Por que o feminismo acontece pelo modo como reagimos, em grupo ou isoladamente, quando somos automaticamente classificadas nesse ou naquele grupo por conta de nossa cor e nossa idade, quando nos tornam assexuadas por conta de nosso tipo de corpo que deveria sempre ser magro, jovem e estar quase sempre desnudo. Quando somos destinadas ao mesmo lugar de servidão, subjugadas por corpos brancos de toda a sorte e a todo momento. Quando alguém diz que quer nos amar, desde que seja às escondidas e nunca para algo a mais que um encontro furtivo à quatro paredes. Quando um de nós adoece, sem ao menos entender o porquê como aconteceu comigo e acontece com tantas outras.
Por que a luta contra o racismo também é feminismo quando atinge aqueles que estão à nossa volta. Afinal tantas vezes está em jogo a vida de nossos companheiros, filhos, pais, amigos. Nossas companheiras, filhas, mães e amigas. Quantas de nós tiveram ou ainda terão de ensinar seus filhos a não serem confundidos com ladrões por exemplo. Quantas de nós vimos ou veremos nossos companheiros serem mortos posto que são dispensáveis, descartáveis. Nossas companheiras serem estupradas. Quantas de nós seremos o arrimo de família, cuidando de tudo e de todos. Inúmeras violências que operam simplesmente porque somos mulheres e somos negras.
A luta contra o racismo também é feminismo
Não temos tempo. Mais que pra ontem enegrecer as questões “clássicas” de gênero, mostrar seu rosto negro; que a luta contra o racismo é feminismo, que precisa ser agenda e não apenas um recurso de argumentação ou uma pauta a ser apenas publicizada. Fugir dessa urgência é despreparo, ma-fé e porque não dizer em alto e bom som: racismo. Porque esse é o único motivo para que a mulher negra seja silenciada enquanto o preconceito de cor limita nossas vidas e nos mata. Algumas vezes muito rapidamente quando se trata de acesso à saúde por exemplo; outras tantas vezes ao logo dos anos, diminuindo nossa expectativa de vida, a vontade de viver e de lutar.
Por outro lado, hoje também é dia de esperança, como todos os outros. O feminismo negro é um movimento diverso, vibrante e atuante. E não, não pediremos licença porque entre nós a compreensão de que o combate ao racismo também tem rosto de mulher é uma realidade. Concreta desde que uma mulher negra, ainda em África, conseguiu escapar da escravidão tecida pelo branco europeu. Muito provavelmente antes disso. Ou quando nossas mães fizeram o que podiam e o que não podiam para que nossos destino não fosse traçado antes que pudéssemos sequer pensar sobre ele.
É por isso que pra gente hoje também é mais um dia de luta. E como em todos os outros dias, lutaremos. Com respeito e sororidade, onde for espaço de respeito e sororidade. De punhos fechados quando preciso. Coletiva, individualmente. Presencialmente, pela rede. Nas conversas de bar, na hora da novela, durante as horas de estudo, nas fábricas, nos sindicatos. Andando pela rua em festa e também nos espaços que nos são negados por causa de nossa cor. E também como Blogueiras Negras. Inclusive dizendo que lutar contra o racismo também é feminismo, precisa ser.

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