Um dia pra lembrar que lutar contra o racismo também é feminismo
Por Charô Nunes
Houve um
momento da vida em que quase enlouqueci. Me refugiar na ideia de que o
racismo não existia não estava funcionando. A quantidade de trabalho
empreendido para fechar os olhos era de tal ordem que estava
praticamente me matando. Até que um dia não consegui suportar um
comentário sobre ter de me vestir duas vezes melhor pelo fato de ser
negra. Perceber que meus pesadelos de infância e adolescência não haviam
terminado foi demais para mim. Hoje sei que não foi esse episódio
isolado que me derrubou mas sim a combinação de todas as outras
estórias, de anos a fio, tantas vezes sem revide e compreensão ou
suporte.
Foi o olhar
sanguinário do vigia, trabalhando para manter tudo onde está e nos fazem
acreditar que a responsabilidade é nossa. Para muitos e na minha cabeça
também, eu simplesmente havia sido fraca por sucumbir. O problema não
era todo o sistema de coisas contra o qual eu lutava. Não era a aliança
bensucedida entre todos aquele que se beneficiam e promovem o racismo.
Eu que não havia remado o bastante, não até o fim. Mas um dia oxalá
percebi que a minha estória é a de todas, que a estória de todas é a
minha também.
Estou
falando daquilo que para a estatística são apenas números, muitas vezes
sem gênero ou ainda dolorosamente mulher. Ser apartada de sua negritude
para sobreviver à violência. Ser criticada em todos os pormenores do seu
corpo ou ser hipersexualizada justamente por causa deles, desde muito
cedo inclusive. Ser perseguida por seguranças em shoppings, causar
espanto por falar ou escrever corretamente, por não saber dançar ou não
escutar samba. Por ousar ser outra coisa que não globeleza, tia
nastácia, mãe preta de alguém. Por ter formado um ou todos os filhos. Ou
ainda, simplesmente adoecer porque tudo isso junto ao longo de uma vida
é demais, demais.
Tão feminismo quanto
Tão ou ainda
mais triste que todo esse combinado de coisas é o fato de que grande
parte dessas violências, e por consequência o esforço para combatê-las,
ainda não são considerados questões de gênero por alguns, quando deveria
ser enegrecido que combater o racismo é tão feminismo quanto falar
sobre aborto, cultura do estupro ou mercado de trabalho. Tudo aquilo que
diz respeito à mulher negra deveria ser feminismo para todo mundo.
Desde a necessidade de você estar preparada para reagir quando alguém
atacar nossa aparência. Ou ter ferramentas para detectar o tratamento
desigual por parte de médicos que tem nojo de tocar em seu corpo ou não
nos consideram inteligentes o bastante para entender um diagnóstico
simplório.
Por que o
feminismo acontece pelo modo como reagimos, em grupo ou isoladamente,
quando somos automaticamente classificadas nesse ou naquele grupo por
conta de nossa cor e nossa idade, quando nos tornam assexuadas por conta
de nosso tipo de corpo que deveria sempre ser magro, jovem e estar
quase sempre desnudo. Quando somos destinadas ao mesmo lugar de
servidão, subjugadas por corpos brancos de toda a sorte e a todo
momento. Quando alguém diz que quer nos amar, desde que seja às
escondidas e nunca para algo a mais que um encontro furtivo à quatro
paredes. Quando um de nós adoece, sem ao menos entender o porquê como
aconteceu comigo e acontece com tantas outras.
Por que a
luta contra o racismo também é feminismo quando atinge aqueles que estão
à nossa volta. Afinal tantas vezes está em jogo a vida de nossos
companheiros, filhos, pais, amigos. Nossas companheiras, filhas, mães e
amigas. Quantas de nós tiveram ou ainda terão de ensinar seus filhos a
não serem confundidos com ladrões por exemplo. Quantas de nós vimos ou
veremos nossos companheiros serem mortos posto que são dispensáveis,
descartáveis. Nossas companheiras serem estupradas. Quantas de nós
seremos o arrimo de família, cuidando de tudo e de todos. Inúmeras
violências que operam simplesmente porque somos mulheres e somos negras.
A luta contra o racismo também é feminismo
Não temos
tempo. Mais que pra ontem enegrecer as questões “clássicas” de gênero,
mostrar seu rosto negro; que a luta contra o racismo é feminismo, que
precisa ser agenda e não apenas um recurso de argumentação ou uma pauta a
ser apenas publicizada. Fugir dessa urgência é despreparo, ma-fé e
porque não dizer em alto e bom som: racismo. Porque esse é o único
motivo para que a mulher negra seja silenciada enquanto o preconceito de
cor limita nossas vidas e nos mata. Algumas vezes muito rapidamente
quando se trata de acesso à saúde por exemplo; outras tantas vezes ao
logo dos anos, diminuindo nossa expectativa de vida, a vontade de viver e
de lutar.
Por outro
lado, hoje também é dia de esperança, como todos os outros. O feminismo
negro é um movimento diverso, vibrante e atuante. E não, não pediremos
licença porque entre nós a compreensão de que o combate ao racismo
também tem rosto de mulher é uma realidade. Concreta desde que uma
mulher negra, ainda em África, conseguiu escapar da escravidão tecida
pelo branco europeu. Muito provavelmente antes disso. Ou quando nossas
mães fizeram o que podiam e o que não podiam para que nossos destino não
fosse traçado antes que pudéssemos sequer pensar sobre ele.
É por isso
que pra gente hoje também é mais um dia de luta. E como em todos os
outros dias, lutaremos. Com respeito e sororidade, onde for espaço de
respeito e sororidade. De punhos fechados quando preciso. Coletiva,
individualmente. Presencialmente, pela rede. Nas conversas de bar, na
hora da novela, durante as horas de estudo, nas fábricas, nos
sindicatos. Andando pela rua em festa e também nos espaços que nos são
negados por causa de nossa cor. E também como Blogueiras Negras.
Inclusive dizendo que lutar contra o racismo também é feminismo, precisa
ser.
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