Tapas, coronhadas e chutes: ‘Não vai falar, vagabunda?’, dizia o torturador
O eterno mal
Dados coletados dão uma ideia da
dimensão da tortura no Brasil. Foram 1.356 denúncias de tortura,
agressão física e lesão corporal praticadas por policiais e agentes
penitenciários em 14 estados entre 2010 e 2011
“Zero Um” é o
mais nervoso dos quatro policiais militares que revistam a casa de
Marlene. Depois de encontrar um cigarro de maconha, além de um relógio,
munição e um computador roubados, os PMs a levam para o quarto algemada,
fazem com que ajoelhe e desferem uma rodada de tapas no seu rosto,
coronhadas na cabeça e chutes pelo corpo. É de “Zero Um” a ideia de
pegar um saco plástico: “Não vai falar, vagabunda?”. Ele coloca o saco
preto ao redor da cabeça de Marlene. Ela desmaia.
Policiais torturam para forçar confissões, agentes penitenciários
torturam para castigar os presos. Há centenas de denúncias todos os anos
mas poucos agentes do Estado são punidos.
O nome da vítima foi trocado, para
preservar sua identidade, mas o apelido “Zero Um” é verídico, escolhido
pelos PMs entre os codinomes usados pelos personagens de Tropa de Elite – filme que retrata a ação do grupo de elite da polícia militar do Rio de Janeiro.
Eram
dez horas da noite do primeiro dia de 2012 quando a camareira de 28
anos autorizou a entrada dos policiais em sua casa, que fica em um
bairro pobre de Manaus. Ela estava grávida de 5 meses, perdeu a criança
dois dias depois. A “técnica” do saco no rosto para extrair informação
também aparece nas cenas de Tropa de Elite.
Na vida real, era o início de uma sessão
de mais de duas horas de tortura – relatados por Marlene à reportagem
da Pública que a visitou na Cadeia Pública Feminina “Desembargador
Raimundo Vidal Pessoa”, onde está presa desde então por posse de objetos
roubados.
Marlene acordou do desmaio provocado
pela falta de ar dentro do saco preto com um jato de spray de pimenta no
rosto e foi arrastada para a cozinha. Mais uma vez, foi de “Zero Um” a
ideia: esquentar objetos metálicos no fogão. Os policiais usaram suas próprias ferramentas de trabalho para queimá-la:
primeiro, a algema, pressionada em brasa contra sua perna esquerda com a
ajuda de um alicate. Depois, a ponta do cano do revólver, dentro da
pele queimada pela algema – formando dois círculos circunscritos.
As marcas deixadas pela polícia no corpo
da camareira são inconfundíveis. São a prova de que eles não temiam
punição. Embora amplamente conhecida pela população, a tortura cometida
por agentes da lei é um tabu para a Justiça. Raramente condena-se um
policial ou um agente carcerário pelo crime.
Uma enraizada cultura de resistência da
própria corporação dificulta o julgamento, a investigação e produção de
provas. Isso quando a vítima consegue registrar a denúncia, vencendo
outra série de obstáculos antes da abertura do inquérito. O silêncio
realimenta o crime ao dar a segurança da impunidade aos policiais
violentos.
Comissão da verdade: tortura ontem e hoje
A recente criação da Comissão da
Verdade, em maio desse ano, foi considerada um passo importante para
quebrar o ciclo histórico da violência praticada por agentes do Estado
no país. A cerimônia de lançamento do grupo, que deve trazer à tona os
relatos sobre tortura e homicídio cometidos pelo regime militar, contou
com um discurso emocionado da presidenta Dilma Rousseff, ela mesmo uma
vítima da tortura em 1970. O mesmo governo que lança luz sobre os crimes
do passado, porém, faz pouco sobre a tortura que acontece no presente.
É isso que diz um duro relatório da Organização das Nações Unidas (ONU),
que o governo manteve sob sigilo por quatro meses. Quando o documento
foi divulgado, em 15 de junho, não foi difícil entender o porquê: o documento aponta diversas brechas e falhas no combate ao crime dentro das instituições brasileiras.
Com base em visitas a presídios e
entrevistas no Brasil, o Subcomitê de Prevenção à Tortura (SPT) faz
recomendações concretas sobre como os governos podem – e devem –
combater o crime. E destaca que pouco mudou desde a última visita do
grupo, em 2001. “O SPT recorda que muitas das recomendações feitas no
presente relatório não estão sendo apresentadas ao Brasil pela primeira
vez”, diz o documento. “Infelizmente, o SPT detectou muitos problemas
semelhantes aos identificados nas visitas anteriores”.
Um dos compromissos mais simples
assumidos pelo governo brasileiro com a ONU era o de criar, até 2008, um
mecanismo nacional para combater a tortura, que teria um comitê
responsável por organizar os dados estatísticos, promover medidas de
prevenção ao crime e fazer visitas sistemáticas a presídios e
delegacias.
Nem isso foi feito. O Projeto de Lei que
criava o mecanismo só foi enviado ao Congresso em setembro de 2011, o
mesmo mês em que o subcomitê voltava a visitar o país. Hoje, aguarda
votação.
Caixa preta
É difícil ter uma dimensão da prática da
tortura no Brasil, pois não há um órgão que centralize as denúncias
contra policiais civis e militares e agentes carcerários. Cada polícia
estadual tem sua ouvidoria (civil) e corregedoria (militar), e o sistema
penitenciário tem sua própria corregedoria. A Pública solicitou os
dados de denúncia de violência em cada uma dessas instituições, em todos
os estados. Foram 57 ouvidorias contatadas (em alguns estados, a
ouvidoria da polícia é unificada) e 18 responderam. Ou seja, menos de um
terço dos órgãos em que a informação foi solicitada.
Embora restritos, os dados dão uma ideia da dimensão do crime. Foram 1.356 denúncias de tortura, agressão física e lesão corporal praticadas por policiais e agentes penitenciários em 14 estados entre 2010 e 2011.
A Lei de Acesso à Informação, aprovada
junto com a instituição da Comissão da Verdade, diz que os órgãos do
Estado têm o dever de passar informações públicas quando solicitados.
“Por essa lei, os dados de direitos humanos nunca mais poderão ser
reservados, secretos ou ultra secretos”, disse Dilma no discurso que
saudou a aprovação da lei.
Na prática, os órgãos públicos ainda
encontram avariadas maneiras de negar o acesso à informação. Dados
solicitados com até 3 semanas de antecedência não foram fornecidos a
pretexto de “falta de tempo”, e algumas ouvidorias simplesmente se
recusaram a prestar a informação. “Não passo porque o tratamento que o
jornalista dá é de servir essa máquina do capitalismo, é para vender”,
disse o coronel Lourival Camargo, corregedor da polícia militar de
Goiás.
A falta de preparo das instituições para
entender a função dos órgãos em que atuam também ficou evidente
diversas vezes. Um exemplo: questionado sobre denúncias de violência
contra agentes penitenciários, o funcionário de uma ouvidoria do sistema
penitenciário (que tem como principal função receber denúncias contra
os agentes do sistema), não escondeu seu estranhamento: “Agressão ao
preso? Você não quer dizer ao agente? Você quer saber quantos presos
bateram nos agentes, né?”.
Submarino e microondas
Segundo levantamento da Pastoral Carcerária em 2010, organização que visita presídios em todos os estados, a prática de tortura por parte de agentes públicos foi documentada em 20 dos 26 estados acompanhados.
Os relatos coletados entre as vítimas vão de espancamentos pela polícia
civil e militar no momento da prisão a agressões dentro das unidades de
detenção (veja alguns relatos no vídeo acima). As mais comuns são
feitas com porrete, cano da arma e com o uso das mãos e botas.
José Dias de Jesus Filho, assessor
jurídico da pastoral, que acompanha todos os casos que passam pela
entidade, descreve outras “técnicas” relatadas: “Além do saco plástico,
tem o microondas, que é
quando deixa o preso por horas dentro do carro no sol, ou quando coloca
ele algemado no camburão e corre, fazendo ziguezague”, ele explica. “O submarino é quando enfia a cabeça da pessoa na água. E tem muito choque nos testículos com o teaser”.
Há ainda as técnicas específicas para as mulheres, que são variações da
violência sexual. “Eles passam a mão no corpo, deixam a mulher nua na
frente do batalhão ou levam para um lugar ermo onde ela acha que vai ser
violentada”.
Marcia Honorato, colaboradora do Comitê para Prevenção à Tortura no Rio de Janeiro,
acrescenta: a violência não é só contra pessoas que estão presas. Em
contato com mais de 15 comunidades carentes do Rio, ela recebe relatos
de violência sistemática de policiais contra os moradores dos morros
cariocas, inclusive aqueles que foram “pacificados”.
“Eles espancam e torturam sob a
justificativa do desacato. Qualquer coisa é desacato, uma festa com som
mais alto, uma resposta que eles não gostam”, afirma. “A pessoa fica
arrebentada e ainda vira réu”. Segundo ela, as agressões mais comuns são com escopeta na cabeça, socos no rosto e chute na boca do estômago e nas costas.
“Isso é o que as pessoas veem a céu aberto e nos contam. Outras
violências, que acontecem dentro das casas, nós nem ficamos sabendo”.
Por que se tortura
E por que se tortura? Com base nas
denúncias que colheram nos presídios de 1997 a 2009, a Pastoral concluiu
no Relatório Sobre Tortura de 2010 que a Polícia Civil tortura para
obter informação ou forçar a confissão de um crime; a PM tem o castigo
como primeiro motivo e, em segundo lugar, obter uma confissão; e os
agentes penitenciários agridem para castigar.
O relatório da entidade também aponta a
relutância das autoridades responsáveis por receber e apurar as
denúncias como o principal motivo para a impunidade, ou seja, as
ouvidorias ou corregedorias.
Luiz Gonzaga Dantas, ouvidor da polícia
do estado de São Paulo, reconhece que as corregedorias e ouvidorias
ainda não têm a autonomia necessária para exercer o papel de
fiscalização que deveriam desempenhar. E defende uma das recomendações
feitas pelo relatório da ONU: um plano de carreira independente para os
funcionários desses órgãos. “Ocorre de policiais que trabalham na
ouvidoria irem trabalhar com as equipes que puniram. E aí, como ele
fica?”, questiona Dantas.
Os corregedores lidam com outra
limitação grave: depois de receber a denúncia contra um policial, eles
entram com um procedimento inicial e pedem a abertura de um inquérito.
Esse inquérito volta para a polícia, que é quem conduz a investigação.
No caso de denúncia contra policiais civis, por exemplo, oresponsável pelo inquérito que vai investigar crimes cometidos pelos colegas é da mesma corporação.
Quando tentam quebrar o ciclo de
silêncio, mentira e impunidade, presos e seus familiares chegam a ser
ameaçados pelos agentes, como aconteceu com a Associação de Amigos e Familiares de Presos,
a Amparar, que trabalha com mães de adolescentes internados na Fundação
Casa, em São Paulo, para incentivar as denúncias de tortura. “Famílias
que denunciam são humilhadas e expostas. Eles chamam a mãe numa sala com
vários funcionários e perguntam por que ela tomou aquela atitude. Se
sabe que isso pode fazer com que seu filho fique lá ainda mais tempo”,
diz o representante da Amparar que pede para não ser identificado por
temer – ele próprio – retaliações.
Ele conta que, na segunda semana de
junho, diversos pais procuraram a Amparar para relatar violências
cometidas contra seus filhos na unidade Raposo Tavares da Fundação Casa.
Os agentes foram especialmente cruéis com os internos: “Um dos adolescentes estava com a mão machucada, os agentes bateram sistematicamente nessa mesma mão. Outro
estava ferido na cabeça, ele tinha apanhado com o cassetete até rasgar.
De novo bateram na cabeça dele”, afirma. “É importante ressaltar que
essas não são violências isoladas, isso acontece com frequência. É a
pedagogia do cassetete”.
Morte na Polinter e a manipulação de perícias
A história de Indaiá Mendes Moreira
mostra a gravidade e a urgência de se obter controle sobre as forças
policiais. Em menos de dois meses, seu filho foi preso por tentativa de
assalto, torturado e morto dentro da carceragem da Polinter de São
Gonçalo, Rio de Janeiro.
Em fevereiro de 2009, ao receber a
notícia sobre a prisão de Vinícius Moreira, então com 20 anos, Indaiá
foi a duas carceragens verificar onde ele estava. Mas os agentes se
recusaram a dar informação. Ela teve que ameaçar chamar a imprensa para
ter a confirmação de onde o filho estava preso. Depois de um mês de
visitas, Indaiá já estava assustada com as histórias que ouvia na fila:
casos de detentos sendo agredidos, extorquidos e ameaçados pelos
policiais. “Teve um dia que um agente falou bem alto pra uma mãe na
fila: “A senhora quer seu filho? Vai procurar no IML [Instituto Médico
Legal]’”.
Ela lembrou da frase ao acordar com um
mau pressentimento na manhã de visita e ligou para o advogado para que a
acompanhasse até a carceragem. Lá, foi informada que seu filho estava
doente e tinha saído há poucas horas para o hospital. Correu para lá e
os médicos disseram que Vinícius
havia sido levado para o hospital na noite anterior, mas nem chegou a
sair do carro da Polícia Civil. “Na porta já mandamos levar ao IML”, ela ouviu do médico.
No IML, a família notou diversas marcas
de agressão no corpo de Vinicius, que não estavam no laudo entregue pelo
instituto. Proibidos de fotografar o corpo, os familiares tiveram que
despi-lo no dia seguinte, pouco antes do enterro, para registrar os
machucados.
Mesmo com a repercussão na imprensa, o
inquérito foi arquivado em abril desse ano. Um dos argumentos do
promotor é que não seria possível determinar quem matou Vinícius.
Peritos coniventes com a tortura
Como a ouvidoria, a perícia médica
também padece do vício de ser ligada à corporação policial. “Há muitos
estados em que a perícia é diretamente subordinada à administração da
polícia civil, como o Rio de Janeiro e Minas Gerais”, afirma a médica
legista Débora Vargas, membro do Grupo de Peritos Independentes para a
Prevenção da Tortura e da Violência Institucional, ligado à Secretaria
dos Direitos Humanos. “Nossa visão é aproximar a perícia de um serviço
técnico, distanciar dos órgão de repressão”. Ela cita o exemplo de
Portugal, onde os grupos de perícia são ligados às universidades.
A autonomia da perícia é outra
recomendação feita pelo relatório da ONU, e sua importância já foi
aferida na prática pela Pastoral Carcerária: muitos detentos agredidos
no momento da prisão, portanto, antes do exame médico obrigatório ao
ingressar no presídio, não têm as marcas das sevícias registradas nos
laudos. Segundo algumas denúncias feitas à entidade, alguns policiais
esperam de 15 a 20 dias para levar o preso ao médico – período em que as
marcas cicatrizam. Também é muito comum que o mesmo policial que comete a agressão leve o preso ao médico e, em muitos casos, acompanha o exame.
“Isso acontece no Brasil inteiro”, afirma Débora. “Temos dificuldade de
fazer com que PM e polícia civil aceitem que o preso deve ficar na sala
sozinho com o médico legista”, diz.
Há casos extremos em que os médicos nem
olham para as vítimas, como ocorreu segundo denúncia na cidade de Tefé
(650 quilômetros de Manaus), feita por quatro detentos à equipe da
Pastoral. Suspeitos de tráfico de drogas, eles contam que ficaram quatro
dias amarrados dentro de um barco antes de serem conduzidos à prisão:
“Presos em correntes, esmurrados e sufocados com o saco plástico na
cabeça. Ameaçados com armas de fogo apontadas para suas cabeças,”
descreve o relatório da Pastoral.
Ao final desses dias, os quatros presos
foram levados para o exame de corpo de delito. “Ao chegarem na clínica,
permaneceram na viatura e o comandante trouxe o laudo já assinado pelo
médico”, descreve o relatório. Segundo testemunha que viu o exame, mas
prefere não se identificar, o único registro no documento é de marca da
algema.
O relatório cita nominalmente um major
da Polícia Militar como autor das diversas torturas relatadas por esse e
outros presos da cidade. O documento foi encaminhado à Defensoria e
Ministério Público.
A tortura psicológica e a carta de suicídio
Se
sociedade e governo não reagirem, a violência policial, especialmente
contra os detentos, ela tende a se agravar com a superlotação dos
presídios, alerta o padre Valdir João Silveira, coordenador nacional da
Pastoral Carcerária. Entre 2005 e 2011, o número de presos cresceu 42%,
aponta o padre. Só em São Paulo, que tem a maior população carcerária do
país, 2011 terminou com 9.417 presos a mais que 2010 – o que dá uma
média de 25 presos novos por dia no estado. Para o padre Valdir, a
necessidade de contenção aumenta com a superlotação, gerando mais
violência.
“A tortura acontece como castigo para
que os presos não se amotinem, não reivindiquem, não peçam para ser
lembrados de que estão vivos”, afirma Luciano Mariz Maia, Procurador da
República em Recife e membro do Comitê Nacional Contra a Tortura.
Nem sempre a violência cruel que define a tortura se expressa em pancadas e sufocamentos. Nos relatos colhidos pela pastoral, há
casos de presos que dormem no chão sujo da cela e até no chão do
banheiro, presos que disputam espaço com ratos durante a noite,
celas que ficam constantemente molhadas devido a vazamentos e presos
que têm constantes infecções alimentares e alergias na pele devido à
comida inadequada.Tudo isso, segundo o procurador, é tortura.
José Carlos Brasileiro, presidente e
fundador do Instituto Nelson Mandela, organização civil que nasceu
dentro do sistema carcerário, alerta para a tortura psicológica que
essas situações provocam: “A força do terror psicológico é dos maiores:
ele condiciona a pessoa à inferioridade, humilhação, ao medo constante. A
pessoa vai pro isolamento, leva porrada, fica com a mão para trás e
cabeça curvada. Imagina quais são as consequências desse tratamento no
longo prazo?”
Foi esse cenário que levou o detento Célio Rodrigues a pensar em suicídio e manifestar essa intenção em uma carta manuscrita em
junho do ano passado. A carta foi entregue à Pastoral Carcerária por um
colega de cela depois que Célio morreu, após deixar a prisão de São
Gabriel da Cachoeira, Amazonas. Preso há “6 longos anos”, Célio
escreveu: “Já passei por tantas humilhações nesse lugar principalmente
agressões verbais e agora físicas também. Tô sofrendo muito e pra
completar, (…) dois cabos entraram na cela e tiraram os materiais de uso
pessoal e higiênico (…) ainda me agrediram fisicamente”. E continua:
“Por eu ser o detento mais antigo, sei de muitas coisas, coisas que eles
fazem de errado aqui nesse lugar, (…) como a entrada de celulares,
entorpecentes e algumas outras facilitações, e também agressões da parte
deles com outros detentos e isso acontece sempre. Eles sabem que eu sei
de tudo isso, tenho muito medo deles fazerem alguma coisa comigo, é por
isso e outras coisas, abandono da família, que tento me matar. Embora
eu saiba que quando sair daqui eles vão querer me matar”.
Vexame e tortura também entre familiares dos presos
“Existe um preconceito arraigado entre
os que operam no sistema de Justiça de que a pessoa com uma condenação –
ou suspeita de um crime – está desprovida de um atributo inerente ao
ser humano: a dignidade”, afirma Kenarik Boujikian, desembargadora do
Tribunal de Justiça de São Paulo e co-fundadora da associação Juízes para a Democracia.
Em muitos casos, essa visão se estende à
família dos presos, ela observa, principalmente em relação às mulheres
que vão visitar seus maridos ou parentes na cadeia. O procedimento
padrão de revista em muitas penitenciárias do país é fazer a mulher
tirar toda a roupa e abaixar seis vezes (três de frente, três de costas)
na frente da agente penitenciária.
Um procedimento que pode ser considerado
tortura pela imposição de sofrimento psicológico contínuo como explica
Cristina Rauter, psicóloga da Universidade Federal Fluminense e membro
da equipe clínica do Grupo Tortura Nunca Mais.
“É uma situação delicada que conjuga estereótipos da sexualidade,
proibições e vergonhas. Você ser obrigado a se desnudar na frente dos
outros e mostrar as partes sexuais já mexe com muitos tabus, proibições,
valores. Fazer isso associado à suspeita de um crime é muito cruel.
Eles sabem que o familiar já tem vergonha por estar ali e exploram
isso”.
A costureira Patrícia Okorie, que entre
2010 e 2011 visitava mensalmente o marido na penitenciária Franco da
Rocha 2, na grande São Paulo, já estava acostumada com esse
procedimento. “Eu só não gostava quando mandavam abrir a vagina com as
mãos”, lembra. “Mas a gente evita reclamar”.
Os largos limites de sua tolerância
foram testados numa manhã de setembro de 2011. Patrícia chegou cedo, era
a quarta da fila. Quando abaixou pela primeira vez na sala de revista, a
agente colocou as mãos em seus joelhos, forçando para que ela abrisse
as pernas. “Eu disse que não permitia aquilo, ela se irritou e chamou
uma PM”. Enquanto esperava, Patrícia era humilhada pela agente, que
insistia que ela escondia drogas na vagina. Ao final da segunda revista
(dessa vez segurando a respiração enquanto abaixava na frente de duas
agentes e da PM), Patrícia chorou e desabafou: “Você me acusou
injustamente, vou procurar os meus direitos”.
Por mencionar seus “direitos”, Patrícia foi acusada
de desacato à autoridade com suspensão de direito de visita por 30
dias, e obrigada a ir a um hospital fazer uma revista “ginecológica” –
exame feito por um ginecologista para buscar drogas dentro da vagina.
“Tive que assinar um papel dizendo que estava indo de livre e espontânea
vontade. Eu disse que não era verdade e me mandaram calar a boca”.
No hospital, Patrícia conta que esperou a
médica, que estava em cirurgia, por horas. Quando entrou no
consultório, a médica pediu que ela deitasse na maca com os pés para o
alto. “Achei que iam fazer ultrassom, quando vi que era exame com as
mãos fiquei com muito medo”. A médica introduziu então um “aparelho que
girava”, provavelmente um espéculo vaginal, ferramenta que abre o canal
vaginal em direção ao útero, utilizada em exames de rotina. Assustada e
sem entender o que ia acontecer, ela contraiu os músculos abdominais,
fazendo força para resistir ao movimento do espéculo. “A cada vez que
ela rodava aquela máquina por baixo, doía. Teve uma hora que ouvi um
estalo e senti muita dor, segurei o braço da médica e pedi pra ela
parar”, afirma. “No final do exame, fiquei em pé e vi um fio de sangue escorrer pela minha perna”.
A médica não encontrou nenhum substância ilícita no interior do corpo de Patrícia.
Atormentada pela humilhação, sem conseguir dormir, Patrícia pesquisou seus direitos na Internet e achou a Ação dos Cristãos para a Abolição da Tortura (ACAT),
que dá assistência psicológica e jurídica às vítimas. Resolveu entrar
com um processo de tortura contra a agente, mas conta que foi chamada
pela direção do presídio e recebeu uma ameaça: se continuasse, o marido
seria transferido “para bem longe”.
Logo depois de ser chamada pelo diretor,
ela foi visitar o marido. “Eles foram bem educados, nunca fui tão bem
tratada ali dentro”, ela lembra. “Foi tudo direitinho: três de frente,
três de costas”.
Só quando o marido saiu da cadeia, Patrícia pode entrar com uma ação contra as agentes do presídio.
Impunidade
Mesmo quando conseguem denunciar os
crimes de tortura e entrar com ações judiciais, ainda é preciso
conseguir um julgamento justo, o que é bastante difícil. Os problemas
começam com a própria lei contra tortura, de 1997, que estabelece que o
crime pode ser praticado por qualquer pessoa – não apenas agentes do
Estado. Isso significa que a mesma lei que enquadra as violências
praticadas por “Zero Um”, de Manaus, também vale para babás que batem em
crianças. “A lei é genérica, deixa frouxa a interpretação para os
tribunais, quase não tem sido utilizada para reprimir”, afirma o
procurador Luciano Maia, do Comitê Nacional Contra a Tortura.
“O principal propósito da criação dessa
lei é evitar que policiais, agentes penitenciários ou autoridades
públicas deliberadamente inflijam violência física e mental a pessoas
submetidas a sua autoridade”, argumenta. “Mas quase não tem sido
utilizada para isso”.
A tendência da Justiça é condenar mais civis do que agentes do estado por tortura revela uma pesquisado
Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo, que
analisou o desfecho de 57 julgamentos de acusados de tortura que
passaram pelo Tribunal de Justiça de São Paulo entre 2000 e 2008. A
pesquisadora Maria Gorete Marques mapeou os resultados em primeira
instância que envolviam 203 réus, dos quais 181 eram policiais ou
agentes penitenciários e 22 eram civis. A pesquisadora chegou à
conclusão que a proporção que se inverte na hora da condenação: apenas 18% dos agentes julgados foram condenados por tortura, contra 59% dos civis. Ou seja, a taxa de condenação dos agentes do estado foi três vezes inferior à condenação de civis.
O procurador Luciano, que em sua tese de doutorado analisou
sentenças de casos de tortura praticada por agentes do Estado diz que o
policial já entra em vantagem no sistema que vai julgá-los: “O sistema
jurídico evoca o tempo todo a credibilidade do cargo, a presunção de que
ele aja corretamente”, diz.
Em uma sentença de Brasília, Luciano
encontrou a seguinte afirmação: “A polícia não tem necessidade de
recorrer a qualquer espécie de constrangimento para apurar a autoria do
delito”. Já em São Paulo, o mesmo desembargador usou o mesmo argumento
em oito casos diferentes:“ [os policiais] Jamais iriam correr o risco de
responder pelo crime de abuso de autoridade ou de denunciação caluniosa
para incriminar alguém que sequer conheciam e com quem não tiveram
qualquer desentendimento”.
Todos os policiais dos casos citados
foram absolvidos, prolongando o sofrimento das vítimas. Como observa a
psicóloga Cristina Hauter, que atende vítimas de tortura da ditadura
militar e atuais, a impunidade atrapalha o processo de recuperação,
especialmente quando a fala da vítima não é considerada como prova e o
processo é arquivado: “Vem um sentimento de desacreditar na justiça, no
Estado. As relações de confiança são quebradas e eles se sentem
profundamente injustiçados. Esse é o quadro mais complicado de
trabalhar”, explica.
Dilma e o legado da ditadura
A visão distorcida da justiça para os
casos de tortura policial está ancorada na opinião de um grupo crescente
da população – atualmente, quase a metade dos brasileiros. De acordo
com pesquisa do Núcleo de Estudos da Violência,
feita em 12 capitais, apenas 52% das pessoas ouvidas em 2010
“discordavam totalmente” da ideia de que os tribunais devem aceitar
provas obtidas através de tortura. Porcentagem bem menor daquela de
1999, quando respondendo à mesma pergunta, 71% dos entrevistados
declararam “discordar totalmente” da prática.
Ainda é difícil prever qual será a
influência da Comissão da Verdade no combate à tortura de hoje ao trazer
de volta os crimes cometidos no passado. Também é difícil determinar
quanto da “tradição” do período militar é responsável pelas práticas
policiais dos dias de hoje. Para a desembargadora Kenarik, porém, esse
legado de violência foi incorporado à cultura das instituições.
“Naqueles anos, havia certos grupos tidos como ‘inimigos do estado’,
eles podiam ser torturados. Hoje, apenas mudou o ‘inimigo’”, ela diz.
Tim Cahill, pesquisador da Anistia
Internacional para o Brasil, que também faz visitas aos presídios,
considera evidente a ligação entre o crime nos dias de hoje e os
cometidos no passado, mas ressalta que isso não torna mais difícil
enfrentá-lo. “Algumas pessoas dizem que o problema de tortura no Brasil é
cultural, como se fosse uma herança inevitável, mas não é verdade”,
afirma. “Cada ato é um crime e ele só persiste porque não há uma ação do
estado para coibir”.
Cahill se recorda do estrago causado
pela fala da presidenta Dilma, ela mesma vítima de torturas durante a
ditadura, sobre o tema na Universidade de Harvard em abril desse ano.
Depois de palestra,
a presidenta foi indagada por um aluno sobre o caso de uma prisioneira
política na Venezuela. Em sua resposta, ao justificar porque não se
meteria na política do outro país, Dilma mandou uma mensagem perigosa:
“Eu sei o que acontece, não tenho como impedir que em todas as
delegacias do Brasil de haver tortura”.
Em resposta, 15 organizações que
trabalham com o combate à tortura no Brasil, entre elas a Conectas, a
ACAT e a Pastoral, soltaram uma nota de repúdio:
“É muito grave que a autoridade máxima do País se declare incapaz de
coibir o crime de tortura nas delegacias. E é ainda mais grave que tenha
escolhido um momento de enorme visibilidade para fazer tal declaração”.
*Cappacete