Por Luiz Fernando Leal Padulla*
Logo na introdução do livro “A História e suas epidemias — A convivência do homem com os micro-organismos”, o autor Stefan Cunha Ujvari traz alguns dados interessantes sobre algumas epidemias e sua função no processo de desenvolvimento da humanidade.
No final do período Medieval (1347-1348), a peste bubônica foi responsável pela morte de um terço da população da Europa. Doenças também foram trazidas pelos colonizadores, dizimando populações nativas e indígenas. desde o século do “descobrimento” até o fim da escravidão, estima-se que três milhões de índios tenham sido exterminados pelas doenças infecciosas que os europeus trouxeram ao Brasil, o que abriu espaço para o tráfico de escravos africanos. Doenças como varíola, rubéola, varicela e sarampo foram algumas dessas doenças letais. Com a ascensão da escravidão, os negros africanos traziam mais do que a mão de obra barata: febre amarela e malária.
Antigamente as doenças, epidemias e até pandemias, ocorriam por falta de conhecimento e extrema pobreza. Hoje a miséria é ainda um entrave, mas a busca pela riqueza e a degradante ganância do capitalismo são fatores preponderantes para elas.
Atualmente, versões conspiratórias, têm culpado a China por toda desgraça mundial da pandemia – incluindo o chanceler (sic) brasileiro Ernesto Araújo, que insiste na falaciosa ideia do “comunavírus”, aumentando ainda mais a vergonha de nosso país. Mesmo que estudo científicos já tenham provado que o vírus não foi criado em laboratório, parte da população ainda acredita nisso e tende a disseminar falsas acusações, refletindo diretamente no comportamento agressivo e preconceituoso contra chineses – a chamada sinofobia. Por outro lado, devemos sim alertar para um aspecto comum em algumas províncias deste país, como em Guangdong, no sudeste da China, e que pode ter sido o local inicial da doença: o consumo de carnes exóticas de animais silvestres.
No entanto, conforme já escrevi em um primeiro artigo sobre o coronavírus, esse tipo de mercado tem perdido espaço para os supermercados, e os que sobrevivem estão restritos a pequenas províncias.
Mas antes que digam “eu sabia! Culpa dos chineses”, lembrem-se que esse tipo de comércio, chamado wet Market, não é exclusivo da China, ok? Em vários países ele é adotado apesar dos protestos e mobilizações para acabarem – seja pelo sofrimento causado aos animais, acondicionados em situações inóspitas e degradantes, seja pelo risco de contaminação alimentar e transmissão de zoonoses.
Em Nova Iorque, por exemplo, estão presentes 80 desses mercados - que vendem animais vivos ao público e os abatem no local. Para isso, ficam confinados em gaiolas, todas empilhadas, próximos ao público. Piorando a situação, os dejetos, penas, sangue presentes são transportados indiretamente pelos frequentadores do local através de seus sapatos, por exemplo, para outras localidades. Assim, se algum agente patogênico estiver presente, a dispersão é muito rápida e eficiente.
Em um trecho do livro “Pandemias: a humanidade em risco”, a situação descrita é impressionante e mostra o que acontecem nesses locais:
“Em novembro de 2002, os restaurantes de Guangdong acomodavam gaiolas e mantinham cercas nos fundos. Animais separados por espécies aguardavam o momento do sacrifício para suprir o paladar dos chineses. Os empregados dos restaurantes acolhiam os pedidos dos clientes. Os cozinheiros caminhavam aos bastidores das cozinhas e apanhavam as espécies animais dos pedidos. Com habilidade, pegavam cobras, patos, gansos, pangolins, lagartos, ratos e tartarugas. Para segurar os civetas estressados e agressivos, necessitavam de luvas apropriadas para proteção contra mordidas e arranhões. O animal era então sacrificado, destrinchado e cozido. (...) É fácil imaginar como ocorreram os primeiros casos da infecção humana pelo novo vírus em meados de novembro de 2002. As cozinhas desses restaurantes ficavam atapetadas de fezes, urina, sangue e secreções dos civetas abatidos. Os vírus repousavam nesses líquidos dispersos no solo. A pele dos trabalhadores, principalmente a das mãos, eram envernizadas com líquidos e secreções animais portadoras do novo vírus. Levar as mãos contaminadas aos olhos, nariz ou boca era o suficiente para a infecção. A limpeza do piso com vassouras dispersava uma poeira venenosa, inalada pelos funcionários. O vírus alcançava as mucosas respiratórias e o pulmão”.
No entanto, a relação das doenças não se restringe apenas aos animais exóticos. Vale lembrar que outras pandemias mortais como a gripe aviária, gripe suína, SARS, HIV, febre aftosa surgiram exatamente da captura e/ou criação de animais como alimento, através do sistema de produção do agronegócio industrializado e sua extensão territorial. Assim, a comercialização e alimentação de animais silvestres, associadas com a predação dos latifúndios, acarretando avanço sobre seus habitats naturais, têm sido apontados como um dos responsáveis pelo surgimento dessas pandemias.
Culpa da agropecuária também foi o surgimento da “doença da vaca louca” – encefalopatia espongiforme bovina – em 1986. Alterando totalmente a dinâmica alimentar, visando maior produção e crescimento, o homem passa a introduzir na alimentação do gado (totalmente herbívoro), proteína de origem animal, o que permitiu a transferência do príon – pedaço de proteína que infecta o tecido nervoso do animal. Posteriormente, por conta de uma possível mutação nessa proteína, novo príon surgiu, sendo patogênico e letal também ao ser humano. Com essa descoberta, rebanhos inteiros foram sacrificados ao redor do mundo, e o mercado de carne apresentou restrições comerciais severas. Curiosamente, pouco se sabe se tais medidas deram certo, o que levará certo tempo para que tenhamos uma resposta positiva ou não.
Paralelamente, a saúde das pessoas é debilitada pelo uso cada vez maior de transgênicos e os agrotóxicos desse tipo de produção. Sem falar também do uso constante de antibióticos nos animais, o que pode promover a contaminação não apenas do alimento, mas do ambiente e de bactérias presentes neste, favorecendo o surgimento das chamadas “superbactérias”. A miséria e a fome, proporcionadas pela desigualdade gerada pelo capitalismo, são outros fatores que colocam a grande maioria da população mundial em alerta, pois debilitam o organismo, tornando-o incapaz de responder às doenças.
(Em tempo 1: sugiro a leitura dos artigos “A Monsanto não mata. Deixa doente para a Bayer tentar te salvar!” e “Os casos envolvendo a Monsanto e outras corporações”)
Isso sem falar, é claro, nas epidemias como a dengue, febre amarela, zyka, chikungunya, transmitidas por insetos que passaram a ter relação sinantrópica devido ao avanço das cidades e consequente destruição das áreas verdes.
Em 1999, para citar um exemplo, Nova Iorque sofreu uma epidemia da então inédita “doença do oeste do Nilo”, cujo vírus foi encontrado em milhares de aves – principalmente em corvos – que eram hospedeiras do patógeno e muito provavelmente chegou até o país pelo tráfico de animais, assim como o tráfego legal de alguns (segundo levantamento de Ujvari, “Em 1999, 2.770 aves entraram nos Estados Unidos pelo Aeroporto John F. Kennedy, em Nova York; além disso, mais 12.931 desses animais estiveram em trânsito pelo mesmo aeroporto, seguindo destinos variados. Não se sabe em quanto pode aumentar o número total de aves introduzidas no país ao se considerar a quantidade das que foram comercializadas ilegalmente”). Até o final do século XX, dezoito estados norte-americanos já haviam registrado a ocorrência da doença.
(Em tempo 2: Com o avanço do aquecimento global, doenças transmitidas por insetos serão cada vez mais frequentes inclusive em locais onde não existiam, uma vez que o calor e a ocorrência de chuvas favorecem o ciclo reprodutor desses animais).
Sendo assim, o problema vai muito além do simples fato de achar um único culpado e assim, atentar de forma preconceituosa contra uma potência que confronta o imperialismo capitalista estadunidense. Mais do que um bode expiatório, a culpa é do sistema capitalista e seu mecanismo predatório, incluindo principalmente o agronegócio.
*Professor, Biólogo, Doutor em Etologia, Mestre em Ciências, Especialista em Bioecologia e Conservação
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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista
quarta-feira, abril 22, 2020
COVID19: das colônias, aos feudos, à escravidão até ao agronegócio
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