O BRASIL E A ESPANHA - A LISONJA E A CAUTELA
“A
Presidente salvou a cúpula de Cádiz do malogro, mas o Brasil, como
nação e seus interesses com relação à interação continental, foi
golpeado, com uma conferência, dentro do evento, patrocinada pela
Espanha, da Aliança do Pacífico, organização fomentada pelo
México com a intenção de “rachar” diplomaticamente a América do Sul, e
que reúne a Colômbia, o Chile e o Peru, na tentativa de contrapor-se ao
Mercosul, à UNASUL e ao Conselho de Defesa Sul-americano”.
(JB) - A visita de Estado que a Presidente da República faz à
Espanha, coincidindo com a Reunião Ibero Americana de Cádiz, reclama
algumas reflexões. A primeira delas leva à necessária cautela diante da
lisonja. É natural que os povos, como os indivíduos, sintam-se felizes,
quando lisonjeados. Os indivíduos sábios, como os povos sábios, aceitam
o respeito dos outros, mas desconfiam da lisonja. É como devemos nos
comportar com os elogios do governo, das elites econômicas e de parte da
imprensa espanhola, nestas horas.
De
início, entendamos que a crise mundial, que afeta particularmente os
países meridionais da Europa, é mais do que uma questão econômica. Ela
está no núcleo da razão ocidental, e na incapacidade de as estruturas
políticas conduzirem o processo do conhecimento científico, que
introduziu novos módulos de convívio entre as pessoas e os povos,
principalmente mediante os meios instantâneos de comunicação. O problema
crucial do homem continua sendo o da desigualdade no usufruto da vida, e
a ciência e a tecnologia, longe de resolvê-lo, o têm agravado.
O bom momento por que estamos passando, no Brasil, pensando bem, não é
tão bom assim, nem garantido: os horizontes do mundo são movediços,
movediças as placas tectônicas, movediça a crosta flamejante do sol –
que nos manda seus recados de perigo com as freqüentes e intensas
erupções – e, mais movediça ainda, a alma dos homens.
Essa
constatação nos inibe o exercício da soberba, ao mesmo tempo em que
convoca a razão humanística da solidariedade. Há, no entanto, que se
preservar a auto-estima.
Aos que nos
lisonjeiam, pensando que nos engambelam, devemos deixar claro que não
somos parvos, e entendemos bem os seus interesses, da mesma forma que
preservamos os nossos.
É assim que
vemos a presença da Presidente Dilma Rousseff em Cádiz – que salvou, in
extremis, o encontro, segundo a publicação El Confidencial de Madri. Mas
é necessário deixar claro que ali não fomos em busca de nada, porque a
Espanha nada nos pode ofercriecer, neste momento, senão suas mãos
vazias, em busca de algum apoio, quando as suas ruas se enchem de
desempregados e de famílias despejadas pela voracidade dos bancos
credores. Feito esse reparo, voltamos à necessidade de que nos
comportemos, nesta quadra, sem descabidos orgulhos, mas tampouco sem
sinais de que nos curvamos a uma superioridade que os espanhóis insistem
em proclamar. Somos solidários, sim, com o povo ibérico, mas nada nos
obriga a ser solidários com o Santander, a Telefónica, a Iberdrola, que
nos exploram, nem com uma monarquia que começa a divertir, com seus
escândalos e gafes, o jet-set internacional.
A
imprensa espanhola – a partir de El Pais, que se encontra em duras
dificuldades financeiras – procura dar a versão de que fomos a Madri em
busca de investimentos. A verdade, no entanto, é que a Espanha nunca
teve dinheiro
para investir no Brasil, nem mesmo os 90 bilhões de dólares que
apregoa, porque todo o dinheiro que eventualmente trouxe, tomou
emprestado de terceiros, e faz parte dos 3 trilhões de euros que o país e
suas empresas estão devendo, e que seu povo terá que pagar a partir de
agora.
A pretensa competência espanhola na
condução de sua economia, ou de seus líderes empresariais na direção de
seus negócios, é um mito que a realidade está demolindo. O país só
conseguiu sair do atraso e do obscurantismo a que esteve relegado
durante a maior parte do século XX, sob a peste do franquismo, porque
recebeu bilhões de euros de recursos da União Européia, a fundo
perdido, e fez empréstimos ainda maiores, aproveitando os juros
historicamente baixos, durante os primeiros anos do euro. Uma fortuna
imensa, muito acima da capacidade de produção do país, ou da renda real
de sua população, que a Espanha não soube utilizar para forjar
economia competitiva e sólida, mediante o desenvolvimento industrial
interno e autônomo.
Investiu-se muito em
obras de infraestrutura, muitas delas, hoje sub-utilizadas; os bancos
usaram os recursos fartos na especulação imobiliária. E se aplicou, mais
do que seria conveniente, no setor de serviços, como no mercado
financeiro e nas telecomunicações. Aqui, no Brasil, há quem pense que a
Telefónica é uma empresa de classe mundial, quando o grupo deve mais de
100 bilhões de dólares, dívida impagável, principalmente se
considerarmos a situação de crise que espera a Europa e os Estados
Unidos nos próximos anos.
Da mesma forma,
muita gente acredita que o Santander do Sr. Emilio Botin é uma
potência, quando na verdade teve uma queda de 60% do lucro na matriz
este ano, e perdeu quase 50% do seu valor de mercado no Brasil, desde
2009. Mal administradas, com o valor e o lucro em queda, que futuro as
empresas espanholas esperam na América Latina? A nacionalização por
capitais locais, com ou sem ajuda do governo, ou a transferência de seus
ativos e contratos para empresas chinesas, que contam com real
capacidade para investir, com o apoio do país que detêm as maiores
reservas internacionais e é o maior credor dos Estados Unidos no mundo.
Esse foi o caso, por exemplo, da Repsol espanhola, que passou a metade
do seu negócio no Brasil para a Sinopec, chinesa.
Mas,
em vez de deixar que as coisas se desenrolem normalmente, o Governo
Federal vem financiando, direta e indiretamente as multinacionais
espanholas no Brasil, enquanto elas continuam a enviar bilhões de
dólares em remessa de lucros para as suas matrizes todos os anos.
Em setembro de 2011, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais
eximiu o Santander de pagar cerca de 4 bilhões de reais em impostos. No
mesmo ano, a Vivo, leia-se Telefónica, que tem entre seus
“conselheiros”, o genro do rei da Espanha - um ex-jogador de handebol,
agora processado por corrupção em seu país - obteve, de uma só vez, 3
bilhões de reais em empréstimos do BNDES para “expansão de
infraestrutura”. O BNDES tem financiado a instalação e expansão de
empresas espanholas em outras áreas, como as de transmissão de energia e
geração eólica, quando deveria, no mínimo, fazer o mesmo, para
assegurar com a mesma generosidade a criação e a presença de empresas
100% brasileiras nessas áreas.
Outro mito
que se propagou no Brasil, durante a tragédia neoliberal dos anos 90, é o
da excelência técnica da engenharia espanhola, e dos técnicos espanhóis
de modo geral. A imprensa espanhola não se cansa de dizer que
precisamos de suas construtoras para reformar estádios de futebol e as
instalações para as Olimpíadas, e para a construção de estradas. É
risível. Como se não tivéssemos nós, brasileiros, construído Brasília, a
cidade que surpreendeu o mundo por seu projeto urbanístico e
arquitetônico; pontes como a Rio-Niterói, estradas como a
Transmauritaniana, em pleno Saara, aproveitando conchas encontradas na
areia para fazer cimento, ou Itaipu, a maior hidrelétrica do mundo, com
uso de uma linha de resfriamento contínuo de concreto, quando a Espanha,
ainda na agonia do franquismo, nem mesmo sequer dispunha de uma rodovia
duplicada. Na construção de navios também não nos é dado o direito de
ter memória curta. Não custa nada lembrar que a nossa indústria naval
era a primeira do mundo nos anos 70. O mesmo erro se comete com relação
às universidades. A possibilidade de, talvez, a média das universidades
espanholas ser de boa qualidade, e de estarmos enviando estudantes para
lá, pelo Programa Ciência sem Fronteiras, não nega o fato de, no ranking
das melhores universidades do mundo, a USP estar à frente de qualquer
universidade ibérica (segundo a The Times Higher Education World
University Rankings, 2012/2013).
Ora, se a
Espanha não tem capitais próprios para investir no Brasil, nem
excelência em engenharia de grandes obras, qual a vantagem de continuar
estreitando os laços com as elites espanholas e os seus representantes?
A
Presidente salvou a cúpula de Cádiz do malogro, mas o Brasil, como
nação e seus interesses com relação à interação continental, foi
golpeado, com uma conferência, dentro do evento, patrocinada pela
Espanha, da Aliança do Pacífico, organização fomentada pelo
México com a intenção de “rachar” diplomaticamente a América do Sul, e
que reúne a Colômbia, o Chile e o Peru, na tentativa de contrapor-se ao
Mercosul, à UNASUL e ao Conselho de Defesa Sul-americano. Aproveitando a
presença de Dilma, a imprensa espanhola voltou a anunciar, como faz
regularmente, que o Brasil estaria mudando a legislação para permitir a
entrada de trabalhadores espanhóis em nosso país.
Em respeito aos 11.000 brasileiros expulsos da Espanha nos últimos
anos, seria conveniente que nenhuma medida nesse sentido fosse tomada
sem o critério de reciprocidade, de forma que se os cidadãos
brasileiros quisessem – embora, nesse momento, seja improvável –
pudessem usar do mesmo direito, o de entrar na Espanha e ali trabalhar,
em iguais condições.
Uma última observação: o
governo espanhol anunciou ontem que pretende dar visto de residência
automática aos nacionais de certos paises que ali adquirirem moradias
(da qual estão sendo despejadas as famílias espanholas) pelo valor
mínimo de 400.000 reais. A medida não favorece os espanhóis, mas, sim,
reduz o buraco em que se meteram os bancos. Ora, como um país que se
encontra nesta situação, pode se apresentar - sem dinheiro do BNDES -
como “investidor” nas grandes obras brasileiras?
Ao aceitar tais “investimentos” o Brasil poderá estar salvando as
elites empresariais claudicantes da Espanha, mas não estará ajudando seu
povo, nem o nosso. E há mais, quando perguntaram quem seriam os
compradores dos imóveis, o funcionário responsável pela declaração citou
russos e chineses, pertencentes ao BRICS. O Brasil é parte dos BRICS.
Ao que parece, os brasileiros, mesmo com dinheiro, continuam sendo
indesejáveis ali.
*Gilsonsampaio