Dom Helder não era religioso. Mas é difícil achar um religioso tão religioso como ele.
DOM HELDER E A VIDA RELIGIOSA
José Comblin em 21/02/2013
Dom Helder não era religioso. Mas é difícil achar um religioso tão religioso como ele.
Muito
mais do que muitos religiosos dom Helder vivia pobremente. Assimilou-se
profundamente com os pobres e quis ser pobre como Jesus foi pobre. Deus
fez-se pobre e por isso a pobreza de dom Helder tinha raízes místicas.
Viveu pobre num apartamento muito pobre anexo à igreja colonial das
Fronteiras. Viveu pobre na alimentação.
Almoçava
na lanchonete da esquina com os pobres. Comia muito pouco Não tinha
carro, nem motorista, nem empregada. Não tinha porteiro e abria a porta
ele mesmo, ainda que de 9 pessoas que vinham bater na sua porta, 9 eram
mendigos. Acolhia a todos com a mesma simpatia, o mesmo amor. Ele se
levantava todas a noites às 2 da madrugada desde a sua ordenação sem
nunca faltar. Ficava em oração até às 4 e dormia de novo um pouco.
Era
bispo mas vivia como servidor. Dois verbos nunca foram usados por ele:
mandar e exigir. Ele podia sugerir, pedir, mas nunca mandava nem exigia.
Nunca invocava a sua autoridade e por isso sempre manteve um governo
colegial. Não precisava mandar : muitos seguiam-no com fervor e ele
nunca importunou os sacerdotes ou as pessoas que não o aceitavam. Nunca
sentiu rancor de ninguém. Aceitava as orientações do governo colegial.
Era o bispo, mas obedecia. Nunca quis impor a sua preferência pessoal.
Ele abria os caminhos, mas não obrigava ninguém a segui-lo.
Era
profundamente humilde, o que chamou particularmente a atenção de um
grande jornalista francês, José de Broucker que o conheceu bastante bem e
escreveu um livro sobre ele. Houve momentos em que dom Helder gozava de
uma imensa popularidade fora do Brasil. Era aclamado por multidões. Mas
nunca apareceu nele nenhum sinal de algo de vaidade. Sabia
relacionar-se com os grandes sem nunca perder o sentimento de um pobre,
sem nunca vangloriava-se da admiração que suscitava.. Manifestava a
autoridade do evangelho e nunca procurou chamar a atenção sobre a sua
própria pessoa.
Era sempre de uma perfeita
naturalidade. Jamais manifestava gestos convencionais, formalismos nas
palavras ou nas atitudes. Era natural, simples, alegre com todos. Nunca
se podia ver que estivesse fazendo força, esconder sentimentos. Não
queria fazer o papel de bispo, não queria brincar de bispo. Nunca queria
mostrar-se mas se oferecia com naturalidade e sem vaidade às
aclamações. Todas as suas palavras eram naturais e espontâneas nada que
fosse artificial. Não queria aparecer como alguém que é bispo, mas
simplesmente como o irmão de todos e sobretudo dos mais simples.Jamais
quis mostrar que era bispo, salvo para enfrentar os generais da
ditadura. Queria ser ele mesmo filho dos seus pais, feliz de ter nascido
no Ceará, feliz de ser nordestino. Era ele mesmo, dom Helder, sem
títulos, sem artifícios, com a simplicidade de um pobre. Era um homem
totalmente livre, totalmente aberto a todos.
Tudo
isso ainda não evoca a originalidade de dom Helder. Tudo isso foi
vivido numa personalidade exuberante. Dom Helder tinha tantas facetas
diferentes com plena espontaneidade. Era de grandes gestos, que não eram
teatrais. Falava com uma variedade de tonalidades. Era profundamente
artista, sensível a todas as artes, especialmente à música. Era poeta na
alma, mas também tinha o talento para escrever e expressar a sua alma
poética. Era orador. Falava com calor, convicção e eloqüência. Falava
com o corpo todo mas nunca aparecia como comediante : tudo era natural,
enraizado no seu ser nordestino.
Toda essa
variedade de expressões era um fenômeno único : somente pode haver um
dom Helder. É inimitável Alguns procuraram imita-lo mas sem resultado
Era cheio de imaginação inventando sempre histórias novas. Cheio de
humor, e de criatividade. Era de uma grande imaginação.
Dom
Helder recebia dezenas de visitantes a cada dia. Atendia a todos com a
mesma atenção e a mesma simpatia como se cada um fosse a única pessoa
interessante do dia. A todos dava a impressão de que ele ou ela era a
única pessoa importante.
Dom Helder tinha um dom
de intuição extraordinário. Desde o primeiro contato sabia se a pessoa
que encontrava era capaz de colaborar com ele, tinha capacidade e
vontade de servir. Num instante descobria o que o seu interlocutor
pensava. Por isso foi rodeado de colaboradores de grande valor. Jamais
imaginou que houvesse alguém capaz de lhe dar sombra. Claro que erra
impossível, mas há muitas pessoas que andam desconfiando de pessoas
muito inteligentes ou muito capacitadas.
O seu
relacionamento com o bispo auxiliar dom José Lamartine foi algo
excepcional. Claro que dom Lamartine era um santo. Mas há autoridades
que não sabem descobrir que têm um santo ao lado. Dom Helder
entregava-lhe todo o governo da diocese. Tudo conversava com ele. A
qualquer problema relativo à marcha da diocese, dom Helder dizia : Fale
com dom José. Dom Lamartine se podia ver sempre feliz, o que não é tão
comum entre os bispos auxiliares.
Tudo isso
ainda seria pouca coisa. Dom Helder era ao mesmo tempo um místico
excepcional. Fez de modo excepcional a unidade entre a mística e a ação,
tantas vezes apresentada como o grande desafio da vida cristã.
Era
um místico. Vivia toda a sua vida super-ativa dentro de um visão de fé :
como presença do amor do Pai, como presença física de Jesus reconhecido
em todos e como abertura para a inspiração do Espírito Santo. Todos os
acontecimentos, todas as pessoas, todas as palavras ouvidas eram
reconhecidas como palavras de Deus. Tudo isso com a maior simplicidade
de tal modo que ninguém teria podido suspeitar. Os ateus estavam à
vontade com ele sem desconfiar que conversavam com um místico. Ou seja,
muitos têm uma visão convencional e artificial de uma vida mística. Em
dom Helder, tudo era tão natural porque tudo procedia da sua
espontaneidade. Não queria brincar de místico.
Essa
mística aparece nos milhares de poesias que escreveu e conservou.
Escrevia as suas intuições místicas em forma de poesia durante as horas
da noite, dedicadas à oração. Estava revendo os acontecimentos do dia
anterior, os encontros, as pessoas, tudo iluminado à luz de Jesus.
A
profundeza da sua vida religiosa aparecia durante a missa de cada dia.
Então ele dava a impressão de estar no céu. Não manifestava nenhum
esforço, mas era como se tivesse sido raptado por forças espirituais.
Estava mergulhado no mistério. Isso manifestava com uma intensidade
excepcional a fé e a devoção do povo nordestino. Dom Helder não era
teólogo e não tinha nada que pudesse atrapalhar a sua devoção Era
simples na religião como os camponeses e sobretudo as camponesas do seu
Ceará. Estava impressionado pela força da presença de Deus. Assim são os
romeiros que vão a Juazeiro do Norte ou a Canindé.
A
missa era realmente o momento culminante de cada dia. Assim ele o
sentia e dizia. Não era fórmula piedosa, não era uma expressão
convencional. Era algo real profundamente vivido. Tinha grande devoção a
Maria, sua mãe. Sempre tinha presente o seu anjo que tinha o nome de
José. Tudo tinha a autenticidade da fé do povo dos pobres.
Dom
Helder descobriu os pobres bastante tarde na vida. Foi na sua grande
conversão de 1955 no final do congresso eucarística que foi o seu grande
triunfo como membro do governo da Igreja. Durante 5 anos em Fortaledza e
quase 20 anos no Rio de Janeiro dom Helder tinha servido a Igreja, ou
seja, a instituição eclesiástica com entusiasmo, ardor, felicidade e os
mais brilhantes resultados : Responsável pela educação católica,
assessor nacional da Ação católica, fundador e secretário geral da CNBB,
fundador do CELAM com dom Manuel Larraín de Talca (Chile). Uma
atividade exuberante com os mais brilhantes resultados. Mas ainda não
tinha descoberto mundo dos pobres. Vivia de maneira muito austera,
pobre, mas não tinha encontrado os pobres face a face na sua realidade
de pobres. Então veio a conversão. Converteu-se aos 46 anos.
Isto
suscita inevitavelmente uma pergunta: não será que o serviço
entusiasmado, total, incondicional à instituição da Igreja católica não
lhe impedia de ver o mundo na sua realidade ? Não aconteceria isso
também às vezes com os religiosos? A instituição não esconderia o mundo
para o qual tinha sido enviada?
Quando dom
Helder descobriu a pobreza nas favelas do Rio, a sua vida mudou
completamente. Começou a orientar toda a sua ação pastoral para os
pobres de Rio de Janeiro. Quando chegou ao Recife, logo deu a a entender
que os pobres seriam a sua prioridade e imediatamente promoveu obras e
atividades no mundo dos pobres, por exemplo o Encontro de irmãos que foi
a expressão recifense da comunidades eclesiais de base.Escolheu um modo
de vida mais pobre e deixou as portas mais abertas para os verdadeiros
pobres. Não se contentou com frases bonitas.
No
dia em que tomou posse no Recife, abriu as portas do chamado palácio dos
Manguinhos que era a residência oficial dos arcebispos e que ele logo
abandonou, para todos os pobres da cidade. Multidões invadiram a casa,
até o ponto de um velho se sentar no trono pontifício, esse trono que
ele naturalmente nunca usou., Era um sinal.
Dom
Helder chegou ao Recife e tomou posse poucos dias depois do golpe. A
repressão foi muito forte no Recife considerado pelos militares como o
centro comunista mais perigoso do país com a proteção do governador
Miguel Arraes. Logo o dom teve que enfrentar o problema da repressão e
teve que assumir a defesa das vítimas do golpe. Não fez de conta que não
sabia de nada, mas assumiu a denuncia das violências cometidas pelo
governo militar. Naquele momento os pobres eram também as vítimas da
repressão e dom Helder no dia da posse declarou que seria o bispo de
todos, isto é, também dos chamados subversivos.
Quando
dom Helder começou a estar ao lado dos pobres, começaram as
perseguições. Uma Igreja que se preocupa com as classes dirigentes nunca
será perseguida. Quando faz opção pelos pobres a perseguição é
inevitável. De acordo com os evangelhos, a perseguição é parte da missão
dos discípulos. Jesus foi muito claro.
Na
perseguição, dom Helder sofreu muito, sobretudo quando as vítimas dessa
perseguição eram colaboradores seus. Sofreu muito com o assassinato de
padre Henrique morto aos 28 anos de idade. Sabia que era um recado para
ele. Prenderam sacerdotes e leigos. Sofreu mas não se deixou intimidar.
Foi ameaçado muitas vezes, mas nada mudou o seu comportamento.
Por
natureza era homem de paz e de conciliação. Fundou movimentos pela paz.
Mas foi atacado, denunciado, perseguido como homem defensor da
violência política. Não ficou calado. Suportou o peso das mentiras, das
falsas acusações. Sofreu tudo sem rancor, sem amargura. Mas era de
caráter muito sensível , como verdadeiro nordestino e não deixava de
sofrer.
O maior sofrimento veio da perseguição
dentro da própria Igreja. Ele teve que sair de Rio porque foi expulso
pelo cardeal. Quando começou a defender a reforma agrária, foi acusado
de comunista por bispos do Brasil. Quando se deu o golpe, a CNBB
agradeceu oficialmente o exército golpista por ter libertado o Brasil do
perigo comunista. Dom Helder foi afastado. Como era ativo, sempre cheio
de esperança e de ilusões, resolveu abrir os olhos dos seus colegas e
logrou depois de 7 anos colocar na presidência dom Aloísio Lorscheider e
com ele começou a época gloriosa da CNBB que durou 24 anos. A CNBB foi
centro da resistência à ditadura militar.
A
atuação de dom Helder foi muito importante e chamou a atenção de bispos
que se sentiam mais abertos para aplicar as reformas conciliares. Chamou
também muito a atenção na Conferência de Medellín e quando começaram as
lutas contra a ditadura militar no Brasil. Depois do Concílio começou a
receber muitas visitas de personalidades eclesiásticas ilustres e
recebeu muitos convites para falar em todos os países católicos e também
não católicos. Como porta-voz da resistência à ditadura militar, foi
cada vez mais convidado e homenageado fora do Brasil. Era inevitável que
essa situação criasse ciúme e oposições secretas dentro do episcopado e
sobretudo dentro da Cúria romana.
Da Cúria
vieram pressões para proibir suas viagens ao exterior. Essas viagens
foram limitadas e nem a amizade do Paulo VI o salvou da raiva da Cúria.
Paulo VI não mandava em Roma.
No Brasil os
militares proibiram que o seu nome fosse pronunciado. Muitos pensaram
que tinha morrido porque nunca se falava dele.
Finalmente
quando foi obrigado a renunciar por causa da idade, deram-lhe o
sucessor que todo mundo conhece. Sem comentários! Quem o conheceu
durante esses 15 anos, sabe o que foi a velhice dele. Soube da santidade
de vida que se manifesta no sofrimento.
Dom
Helder nunca fez muitos comentários sobre as instituições eclesiásticas.
Tinha idéias muito claras sobre as reformas indispensáveis na Igreja
católica e expressou claramente o seu pensamento a Paulo VI, sem ter
muitas ilusões Não tinha muito interesse em mostrar aos sacerdotes quais
eram os seus deveres, nem aos religiosos qual era a sua missão. Não
gostava de dar lições aos outros. As instituições da vida religiosa não
tinham interesse para ele. Ele praticava os votos religiosos mas não
estava interessado pela sua instituição canônica. Tinha admiradores e
seguidores entre os religiosos e tinha também inimigos entre eles. Tudo
isso era sem importância. A sua palavra, a sua vida, o seu comportamento
eram uma exortação permanente para todos.
Tudo
em dom Helder era espontâneo e tudo era controlado. Nunca criticava
outra pessoa, sem dar a impressão de se reprimir. Tinha adquirido uma
espontaneidade orientada de tal modo que sempre se expressasse o amor e
nunca um sentimento de rejeição.
Todo esse
conjunto de qualidades surpreende. Por que surpreende? Esse modo de ser
se encontra ainda com freqüência no povo pobre do Nordeste. Acontece que
não é tão comum entre os membros do clero e daí a surpresa. Surpresa
que um bispo seja semelhante a um simples camponês nordestino!.
Dom
Helder mostrou que era possível ser humano dentro das estruturas do
sistema eclesiástico. Mas é preciso cultivar muitas virtudes. Talvez
seja também necessário ter tido os pais que teve dom Helder. Os
religiosos não precisam preocupar-se pelo que é ser religioso. Há
exemplos disponíveis. Há modelos realmente vividos. Oxalá todos os
religiosos tenham a oportunidade de encontrar no seu caminho algumas
dessas pessoas. Dom Helder nunca se preocupou por ser “um bom bispo”.
Era “Helder” simplesmente, o “dom”para os amigos. Um religioso não
precisa se preocupar por ser “um bom religioso”. Seja simples,
simplesmente homem ou mulher sem pretensão, sem importância, como um
simples camponês.
*GilsonSampaio