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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quinta-feira, fevereiro 21, 2013

Dom Helder não era religioso. Mas é difícil achar um religioso tão religioso como ele.

DOM HELDER E A VIDA RELIGIOSA
José Comblin em 21/02/2013
Dom Helder não era religioso. Mas é difícil achar um religioso tão religioso como ele.
Muito mais do que muitos religiosos dom Helder vivia pobremente. Assimilou-se profundamente com os pobres e quis ser pobre como Jesus foi pobre. Deus fez-se pobre e por isso a pobreza de dom Helder tinha raízes místicas. Viveu pobre num apartamento muito pobre anexo à igreja colonial das Fronteiras. Viveu pobre na alimentação.
Almoçava na lanchonete da esquina com os pobres. Comia muito pouco Não tinha carro, nem motorista, nem empregada. Não tinha porteiro e abria a porta ele mesmo, ainda que de 9 pessoas que vinham bater na sua porta, 9 eram mendigos. Acolhia a todos com a mesma simpatia, o mesmo amor. Ele se levantava todas a noites às 2 da madrugada desde a sua ordenação sem nunca faltar. Ficava em oração até às 4 e dormia de novo um pouco.
Era bispo mas vivia como servidor. Dois verbos nunca foram usados por ele: mandar e exigir. Ele podia sugerir, pedir, mas nunca mandava nem exigia. Nunca invocava a sua autoridade e por isso sempre manteve um governo colegial. Não precisava mandar : muitos seguiam-no com fervor e ele nunca importunou os sacerdotes ou as pessoas que não o aceitavam. Nunca sentiu rancor de ninguém. Aceitava as orientações do governo colegial. Era o bispo, mas obedecia. Nunca quis impor a sua preferência pessoal. Ele abria os caminhos, mas não obrigava ninguém a segui-lo.
Era profundamente humilde, o que chamou particularmente a atenção de um grande jornalista francês, José de Broucker que o conheceu bastante bem e escreveu um livro sobre ele. Houve momentos em que dom Helder gozava de uma imensa popularidade fora do Brasil. Era aclamado por multidões. Mas nunca apareceu nele nenhum sinal de algo de vaidade. Sabia relacionar-se com os grandes sem nunca perder o sentimento de um pobre, sem nunca vangloriava-se da admiração que suscitava.. Manifestava a autoridade do evangelho e nunca procurou chamar a atenção sobre a sua própria pessoa.
Era sempre de uma perfeita naturalidade. Jamais manifestava gestos convencionais, formalismos nas palavras ou nas atitudes. Era natural, simples, alegre com todos. Nunca se podia ver que estivesse fazendo força, esconder sentimentos. Não queria fazer o papel de bispo, não queria brincar de bispo. Nunca queria mostrar-se mas se oferecia com naturalidade e sem vaidade às aclamações. Todas as suas palavras eram naturais e espontâneas nada que fosse artificial. Não queria aparecer como alguém que é bispo, mas simplesmente como o irmão de todos e sobretudo dos mais simples.Jamais quis mostrar que era bispo, salvo para enfrentar os generais da ditadura. Queria ser ele mesmo filho dos seus pais, feliz de ter nascido no Ceará, feliz de ser nordestino. Era ele mesmo, dom Helder, sem títulos, sem artifícios, com a simplicidade de um pobre. Era um homem totalmente livre, totalmente aberto a todos.
Tudo isso ainda não evoca a originalidade de dom Helder. Tudo isso foi vivido numa personalidade exuberante. Dom Helder tinha tantas facetas diferentes com plena espontaneidade. Era de grandes gestos, que não eram teatrais. Falava com uma variedade de tonalidades. Era profundamente artista, sensível a todas as artes, especialmente à música. Era poeta na alma, mas também tinha o talento para escrever e expressar a sua alma poética. Era orador. Falava com calor, convicção e eloqüência. Falava com o corpo todo mas nunca aparecia como comediante : tudo era natural, enraizado no seu ser nordestino.
Toda essa variedade de expressões era um fenômeno único : somente pode haver um dom Helder. É inimitável Alguns procuraram imita-lo mas sem resultado Era cheio de imaginação inventando sempre histórias novas. Cheio de humor, e de criatividade. Era de uma grande imaginação.
Dom Helder recebia dezenas de visitantes a cada dia. Atendia a todos com a mesma atenção e a mesma simpatia como se cada um fosse a única pessoa interessante do dia. A todos dava a impressão de que ele ou ela era a única pessoa importante.
Dom Helder tinha um dom de intuição extraordinário. Desde o primeiro contato sabia se a pessoa que encontrava era capaz de colaborar com ele, tinha capacidade e vontade de servir. Num instante descobria o que o seu interlocutor pensava. Por isso foi rodeado de colaboradores de grande valor. Jamais imaginou que houvesse alguém capaz de lhe dar sombra. Claro que erra impossível, mas há muitas pessoas que andam desconfiando de pessoas muito inteligentes ou muito capacitadas.
O seu relacionamento com o bispo auxiliar dom José Lamartine foi algo excepcional. Claro que dom Lamartine era um santo. Mas há autoridades que não sabem descobrir que têm um santo ao lado. Dom Helder entregava-lhe todo o governo da diocese. Tudo conversava com ele. A qualquer problema relativo à marcha da diocese, dom Helder dizia : Fale com dom José. Dom Lamartine se podia ver sempre feliz, o que não é tão comum entre os bispos auxiliares.
Tudo isso ainda seria pouca coisa. Dom Helder era ao mesmo tempo um místico excepcional. Fez de modo excepcional a unidade entre a mística e a ação, tantas vezes apresentada como o grande desafio da vida cristã.
Era um místico. Vivia toda a sua vida super-ativa dentro de um visão de fé : como presença do amor do Pai, como presença física de Jesus reconhecido em todos e como abertura para a inspiração do Espírito Santo. Todos os acontecimentos, todas as pessoas, todas as palavras ouvidas eram reconhecidas como palavras de Deus. Tudo isso com a maior simplicidade de tal modo que ninguém teria podido suspeitar. Os ateus estavam à vontade com ele sem desconfiar que conversavam com um místico. Ou seja, muitos têm uma visão convencional e artificial de uma vida mística. Em dom Helder, tudo era tão natural porque tudo procedia da sua espontaneidade. Não queria brincar de místico.
Essa mística aparece nos milhares de poesias que escreveu e conservou. Escrevia as suas intuições místicas em forma de poesia durante as horas da noite, dedicadas à oração. Estava revendo os acontecimentos do dia anterior, os encontros, as pessoas, tudo iluminado à luz de Jesus.
A profundeza da sua vida religiosa aparecia durante a missa de cada dia. Então ele dava a impressão de estar no céu. Não manifestava nenhum esforço, mas era como se tivesse sido raptado por forças espirituais. Estava mergulhado no mistério. Isso manifestava com uma intensidade excepcional a fé e a devoção do povo nordestino. Dom Helder não era teólogo e não tinha nada que pudesse atrapalhar a sua devoção Era simples na religião como os camponeses e sobretudo as camponesas do seu Ceará. Estava impressionado pela força da presença de Deus. Assim são os romeiros que vão a Juazeiro do Norte ou a Canindé.
A missa era realmente o momento culminante de cada dia. Assim ele o sentia e dizia. Não era fórmula piedosa, não era uma expressão convencional. Era algo real profundamente vivido. Tinha grande devoção a Maria, sua mãe. Sempre tinha presente o seu anjo que tinha o nome de José. Tudo tinha a autenticidade da fé do povo dos pobres.
Dom Helder descobriu os pobres bastante tarde na vida. Foi na sua grande conversão de 1955 no final do congresso eucarística que foi o seu grande triunfo como membro do governo da Igreja. Durante 5 anos em Fortaledza e quase 20 anos no Rio de Janeiro dom Helder tinha servido a Igreja, ou seja, a instituição eclesiástica com entusiasmo, ardor, felicidade e os mais brilhantes resultados : Responsável pela educação católica, assessor nacional da Ação católica, fundador e secretário geral da CNBB, fundador do CELAM com dom Manuel Larraín de Talca (Chile). Uma atividade exuberante com os mais brilhantes resultados. Mas ainda não tinha descoberto mundo dos pobres. Vivia de maneira muito austera, pobre, mas não tinha encontrado os pobres face a face na sua realidade de pobres. Então veio a conversão. Converteu-se aos 46 anos.
Isto suscita inevitavelmente uma pergunta: não será que o serviço entusiasmado, total, incondicional à instituição da Igreja católica não lhe impedia de ver o mundo na sua realidade ? Não aconteceria isso também às vezes com os religiosos? A instituição não esconderia o mundo para o qual tinha sido enviada?
Quando dom Helder descobriu a pobreza nas favelas do Rio, a sua vida mudou completamente. Começou a orientar toda a sua ação pastoral para os pobres de Rio de Janeiro. Quando chegou ao Recife, logo deu a a entender que os pobres seriam a sua prioridade e imediatamente promoveu obras e atividades no mundo dos pobres, por exemplo o Encontro de irmãos que foi a expressão recifense da comunidades eclesiais de base.Escolheu um modo de vida mais pobre e deixou as portas mais abertas para os verdadeiros pobres. Não se contentou com frases bonitas.
No dia em que tomou posse no Recife, abriu as portas do chamado palácio dos Manguinhos que era a residência oficial dos arcebispos e que ele logo abandonou, para todos os pobres da cidade. Multidões invadiram a casa, até o ponto de um velho se sentar no trono pontifício, esse trono que ele naturalmente nunca usou., Era um sinal.
Dom Helder chegou ao Recife e tomou posse poucos dias depois do golpe. A repressão foi muito forte no Recife considerado pelos militares como o centro comunista mais perigoso do país com a proteção do governador Miguel Arraes. Logo o dom teve que enfrentar o problema da repressão e teve que assumir a defesa das vítimas do golpe. Não fez de conta que não sabia de nada, mas assumiu a denuncia das violências cometidas pelo governo militar. Naquele momento os pobres eram também as vítimas da repressão e dom Helder no dia da posse declarou que seria o bispo de todos, isto é, também dos chamados subversivos.
Quando dom Helder começou a estar ao lado dos pobres, começaram as perseguições. Uma Igreja que se preocupa com as classes dirigentes nunca será perseguida. Quando faz opção pelos pobres a perseguição é inevitável. De acordo com os evangelhos, a perseguição é parte da missão dos discípulos. Jesus foi muito claro.
Na perseguição, dom Helder sofreu muito, sobretudo quando as vítimas dessa perseguição eram colaboradores seus. Sofreu muito com o assassinato de padre Henrique morto aos 28 anos de idade. Sabia que era um recado para ele. Prenderam sacerdotes e leigos. Sofreu mas não se deixou intimidar. Foi ameaçado muitas vezes, mas nada mudou o seu comportamento.
Por natureza era homem de paz e de conciliação. Fundou movimentos pela paz. Mas foi atacado, denunciado, perseguido como homem defensor da violência política. Não ficou calado. Suportou o peso das mentiras, das falsas acusações. Sofreu tudo sem rancor, sem amargura. Mas era de caráter muito sensível , como verdadeiro nordestino e não deixava de sofrer.
O maior sofrimento veio da perseguição dentro da própria Igreja. Ele teve que sair de Rio porque foi expulso pelo cardeal. Quando começou a defender a reforma agrária, foi acusado de comunista por bispos do Brasil. Quando se deu o golpe, a CNBB agradeceu oficialmente o exército golpista por ter libertado o Brasil do perigo comunista. Dom Helder foi afastado. Como era ativo, sempre cheio de esperança e de ilusões, resolveu abrir os olhos dos seus colegas e logrou depois de 7 anos colocar na presidência dom Aloísio Lorscheider e com ele começou a época gloriosa da CNBB que durou 24 anos. A CNBB foi centro da resistência à ditadura militar.
A atuação de dom Helder foi muito importante e chamou a atenção de bispos que se sentiam mais abertos para aplicar as reformas conciliares. Chamou também muito a atenção na Conferência de Medellín e quando começaram as lutas contra a ditadura militar no Brasil. Depois do Concílio começou a receber muitas visitas de personalidades eclesiásticas ilustres e recebeu muitos convites para falar em todos os países católicos e também não católicos. Como porta-voz da resistência à ditadura militar, foi cada vez mais convidado e homenageado fora do Brasil. Era inevitável que essa situação criasse ciúme e oposições secretas dentro do episcopado e sobretudo dentro da Cúria romana.
Da Cúria vieram pressões para proibir suas viagens ao exterior. Essas viagens foram limitadas e nem a amizade do Paulo VI o salvou da raiva da Cúria. Paulo VI não mandava em Roma.
No Brasil os militares proibiram que o seu nome fosse pronunciado. Muitos pensaram que tinha morrido porque nunca se falava dele.
Finalmente quando foi obrigado a renunciar por causa da idade, deram-lhe o sucessor que todo mundo conhece. Sem comentários! Quem o conheceu durante esses 15 anos, sabe o que foi a velhice dele. Soube da santidade de vida que se manifesta no sofrimento.
Dom Helder nunca fez muitos comentários sobre as instituições eclesiásticas. Tinha idéias muito claras sobre as reformas indispensáveis na Igreja católica e expressou claramente o seu pensamento a Paulo VI, sem ter muitas ilusões Não tinha muito interesse em mostrar aos sacerdotes quais eram os seus deveres, nem aos religiosos qual era a sua missão. Não gostava de dar lições aos outros. As instituições da vida religiosa não tinham interesse para ele. Ele praticava os votos religiosos mas não estava interessado pela sua instituição canônica. Tinha admiradores e seguidores entre os religiosos e tinha também inimigos entre eles. Tudo isso era sem importância. A sua palavra, a sua vida, o seu comportamento eram uma exortação permanente para todos.
Tudo em dom Helder era espontâneo e tudo era controlado. Nunca criticava outra pessoa, sem dar a impressão de se reprimir. Tinha adquirido uma espontaneidade orientada de tal modo que sempre se expressasse o amor e nunca um sentimento de rejeição.
Todo esse conjunto de qualidades surpreende. Por que surpreende? Esse modo de ser se encontra ainda com freqüência no povo pobre do Nordeste. Acontece que não é tão comum entre os membros do clero e daí a surpresa. Surpresa que um bispo seja semelhante a um simples camponês nordestino!.
Dom Helder mostrou que era possível ser humano dentro das estruturas do sistema eclesiástico. Mas é preciso cultivar muitas virtudes. Talvez seja também necessário ter tido os pais que teve dom Helder. Os religiosos não precisam preocupar-se pelo que é ser religioso. Há exemplos disponíveis. Há modelos realmente vividos. Oxalá todos os religiosos tenham a oportunidade de encontrar no seu caminho algumas dessas pessoas. Dom Helder nunca se preocupou por ser “um bom bispo”. Era “Helder” simplesmente, o “dom”para os amigos. Um religioso não precisa se preocupar por ser “um bom religioso”. Seja simples, simplesmente homem ou mulher sem pretensão, sem importância, como um simples camponês.
*GilsonSampaio

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