Ideais Anarquistas
Anarquismo é erroneamente
identificado como caos ou “bagunça”, por ser uma doutrina política que
defende a abolição de qualquer tipo de governo formal; mas, na verdade
não é bem isso.
Etimologicamente esta palavra é formada
pelo sufixo de archon, que em grego significa governante, e an, que
significa sem. Ou seja, anarquismo significa ao pé da letra “sem
governante”.
A
principal ideia que rege o anarquismo é de que o governo é totalmente
desnecessário, violento e nocivo, tendo em vista que se toda a população
pode, voluntariamente, se organizar e sobreviver em paz e harmonia.
A proposta dos anarquistas é
contraditória ao sistema capitalista mas, não deve ser confundida com o
individualismo pois, como já foi dito, está fundamentada na cooperação e
aceitação da realidade por parte da comunidade.
De acordo com os principais pensadores
anarquistas, o homem é um ser que por natureza é capaz de viver em paz
com seus semelhantes mas órgãos governamentais acabam inibindo esta
tendência humana de cooperar com o resto da sociedade.
Com isso, podemos perceber que uma
sociedade anarquista não é algo totalmente descontrolado como todos
pensam, muito pelo contrário, esta é uma sociedade bem estruturada e
organizada, só que esta organização está baseada neste instinto natural
do homem. Ou seja, ela depende da autodisciplina e cooperação
voluntária, e não uma decisão hierárquica.
A sociedade cria uma construção
artificial, na qual a ordem é imposta de cima para baixo, como em uma
pirâmide. Já no anarquismo a sociedade não seria uma estrutura e sim um
organismo vivo que cresce em função da natureza.
Por isso, os anarquistas abominam a
formação de qualquer partido político pois estes acabam com a
espontaneidade de ação, burocratizando-se e exercendo alguma forma de
poder sobre o resto da população. Eles também temem as estruturas
teóricas na medida em que estas podem se tornar autoritárias ou
“sentenciosas”.
Daí o anarquismo ser conhecido como algo
vivo, e não uma simples doutrina, a ausência de poder e controle na mão
de alguns torna o movimento anarquista algo frágil e flexível.
A crítica ao poder do Estado leva à
tentativa de inverter a pirâmide hierárquica de poder, o que formaria um
sociedade descentralizada que procura estabelecer um relação de forma
mais direta possível. A responsabilidade começa nos núcleos vitais de
civilização, onde também são tomadas as decisões, local de trabalho,
bairros, etc..
Quando estas decisões não são possíveis
de ser tomadas, formam-se federações. O importante, porém, é manter a
participação e aprovação de todas as pessoas envolvidas.
Os anarquistas criticam a forma de
governar do parlamentarismo pois a representação corre o risco de
entregar o poder à um homem inescrupuloso e hábil, que use as paixões do
povo, para sua auto promoção. Quando as decisões abrangem áreas mais
amplas são convocadas assembleias, com intuito de nomear delegados que
estão sujeitos à revogação de seus cargos.
Apesar de o anarquismo ser diferente na Europa e Brasil, ele tinha uma mensagem comum nos dois: a liberdade e a igualdade só serão conquistadas com o fim do capitalismo e do Estado que o defende.
O anarquismo considerava, assim como o
socialismo, que a propriedade privada era o principal problema da
sociedade, argumentando que os “recursos naturais da terra” pertencem à
todos, ou seja, sua apropriação para uso pessoal é roubo.
O sistema capitalista causou o empobrecimento e exploração de muitos para a riqueza e avareza de poucos.
Os fortes obrigaram os fracos à servir e
em uma luta incessante pela riqueza as diversas nações entraram em
guerra. Assim, claramente, podemos perceber que o capitalismo foi criado
para atender à necessidade de uma classe dominadora e exploradora e não
ao resto da sociedade.
A socialização da propriedade,
unicamente, não pode mudar nada, pois acabar com a propriedade privada
sem acabar com o governo burocrático só faria com que se criasse uma
classe privilegiada em sua própria preservação. Todas as formas de
governo acabam usando de determinada doutrina para “roubar” a liberdade
do homem e satisfazer a “casta governante”. Todas, usam da repressão
policial ou militar para impor a sua vontade diante do povo, e, as leis,
de um modo geral, são decretadas pelos poderosos para legitimar sua
tirania. Na sociedade capitalista quando os pobres protestam contra os
ricos, a polícia e o exército entram em ação; mais tarde estes pobres
reprimidos têm de pagar as despesas destes dois órgãos e ainda do
judiciário, que servem para dominar os trabalhadores.
Os anarquistas insistem que os meios de
propaganda e educação recebem o apoio e o controle do Estado, para
perpetuar os objetivos deste.
A religião, é uma importantíssima
ferramenta para os burgueses pois pacífica o trabalhador, levando- o a
aceitar a miséria sem protestos, induzindo-o a desistir de sua liberdade
e aceitar a dominação dos que “roubam” o fruto de seu trabalho.
As escolas são usadas para ensinar aos
homens a obediência às instituições já formadas; homens são treinados
para adorar o seu país, dispondo- se sempre a dar sua vida pelos
interesses de sus exploradores.
Então, somente eliminando o Estado e a
propriedade privada é que o homem será totalmente livre, de suas
carências, dominação, para desenvolver seu potencial ao máximo. Em uma
sociedade anarquista as leis e a violência serão desnecessárias pois os
homens livres serão capazes de cooperar para o bem da humanidade.
Nessa sociedade, a produção seria feita
de acordo com as necessidades da população e não para o enriquecimento
de alguns poucos; com o fim das propriedades privadas não haveriam mais
assaltos, ninguém iria cobiçar o que é dos outros (pois nada seria dos
outros); acabaria a exploração das mulheres, cada um poderia amar à quem
quisesse, independentemente de sua classe social e grau de riqueza, sem
ser necessário o casamento; não existiria mais a violência e nem as
guerras, ninguém mais lutaria por riquezas e não existiria mais o
nacionalismo, racismo, carência e competição.
Se há anarquistas que praticam atentados
políticos, não é em função desta sua posição, mas sim uma resposta aos
abusos, perseguições e à opressão sofrida por eles. Não são, portanto,
atos anarquistas e sim de revolta inevitável por parte dos explorados
contra a violência dos altos escalões.
LIBERDADE E ANARQUIA: SUAS MAIS ANTIGAS MANIFESTAÇÕES E AS CONCEPÇÕES LIBERTÁRIAS ATÉ 1798.
A história da idéia anarquista é
inseparável da história do desenvolvimento, do progresso e das
aspirações de melhoria dos povos, ambiente propício que deu origem a
esta compreensão de vida livre, própria dos anarquistas, que só é
possível mediante uma ruptura completa dos laços autoritários e, ao
mesmo tempo, quando os sentimentos sociais (solidariedade,
reciprocidade, generosidade, etc.) estejam bem desenvolvidos e tenham
livre expansão.
Esta compreensão manifesta-se por
inúmeras formas na vida pessoal e coletiva de indivíduos e grupos, a
começar pela família, visto que sem ela a convivência humana não seria
possível. Ao mesmo tempo, a autoridade, isto é, a tradição, o costume, a
lei, a arbitrariedade, etc., impôs, a partir da humanização dos animais
que formam a espécie humana, sua garra de ferro sobre um sem-número de
inter-relações, fato este que, sem dúvida, deriva de uma animalidade
mais antiga ainda. O caminho para o progresso que, indubitavelmente, é
feito através dos tempos, é uma luta de libertação dessas cadeias e
obstáculos autoritários. As peripécias dessa luta são tão variadas, a
luta é tão cruel e árida que relativamente poucos homens conseguiram
atingir aquela compreensão anarquista a que me referi acima. Aqueles,
inclusive, que lutaram por liberdades parciais não a compreenderam senão
rara e insuficientemente e, em troca, até procuraram conciliar as sua
novas liberdades com a conservação de antigas autoridades, quer se
mantivessem à margem desse autoritarismo, quer pensassem que este lhes
seria útil e capaz de defender e conservar as liberdades já adquiridas.
Nos tempos modernos tais homens defendem
a liberdade constitucional ou democrática, mas sob a proteção ou
custódia do governismo. Da mesma forma, no terreno social, essa
ambiguidade produziu o estatismo social, um socialismo imposto
autoritariamente e, por isso mesmo, desprovido, segundo pensam os
anarquistas, de sua verdadeira vida que é a solidariedade, a
reciprocidade, a generosidade, que somente floresce num ambiente de
liberdade.
Antigamente, pois, o reino do
autoritarismo foi generalizado, os esforços ambíguos, mistos (liberdade
pela autoridade), foram raros, porém contínuos. Uma compreensão
anarquista pelo menos parcial e mais ainda integral, deve ter sido muito
rara, tanto porque exigia condições favoráveis para nascer, como porque
foi cruelmente perseguida e eliminada pela força ou desgastada,
desamparada, nivelada pela rotina. No entanto, se da promiscuidade
tribal chegou-se à vida privada relativamente respeitada dos indivíduos,
não foi só como resultado de causas econômicas, mas constituiu um
primeiro passo na passagem da tutela à emancipação. E de sentimentos
paralelos ao anti-estatismo dos homens modernos, passaram os homens
desses tempos antigos a estas concepções.
Desobediência, desconfiança da tirania e
rebelião, levaram muitos indivíduos enérgicos a lutarem por uma
independência que souberam defender ou por ela sucumbiram. Outros
puderam subtrair-se à autoridade devido à sua inteligência e capacidades
especiais e se, em dado momento, os homens passaram da não-propriedade
(acessibilidade geral) e da propriedade coletiva (da tribo ou dos
residentes locais) à propriedade privada, não foi somente devido à
ambição da posse, mas também a necessidade, à vontade de uma
independência assegurada que os deverá ter impulsionado.
Os pensadores anarquistas integrais
desses tempos antigos, se os houve, são desconhecidos. É, porém,
característico o fato de que todas as mitologias conservaram a memória
de rebeliões e, inclusive, de lutas nunca terminadas de uma raça de
rebeldes contra os deuses mais poderosos. São os Titãs que assaltam o
Olimpo, Prometeu desafiando Zeus, as forças sombrias que na mitologia
nórdica provocam o “Crepúsculo dos Deuses” e é o diabo que na mitologia
cristã nunca cede e luta a toda hora dentro de cada indivíduo contra o
bom Deus, e é esse Lúcifer rebelde que Bakunin tanto respeitava e muitos outros.
Se os sacerdotes que manipulavam esses
relatos tendenciosos com interesse conservador não eliminaram esses
atentados perigosos à onipotência dos seus deuses é porque as tradições
que lhes serviam de base deviam estar tão arraigadas na alma popular que
não se atreveram a fazê-lo e apenas se contentaram em desfigurar os
fatos insultando os rebelde ou imaginando, mais tarde, interpretações
fantásticas para intimidar os crentes. Tal fez, sobretudo a mitologia
cristã com seu pecado original; a queda do homem; sua redenção e o juízo
final. Essa consagração e apologia da escravidão dos homens, das
prerrogativas dos sacerdotes como mediadores e essa postergação das
reivindicações de justiça para o último limite imaginável, ou seja, o
fim do mundo. Por conseguinte, se não tivesse havido sempre rebeldes
atrevidos e cépticos inteligentes, os sacerdotes não se teriam dado
tanto trabalho.
A luta pela vida e o apoio mútuo
achavam-se talvez inseparavelmente entrelaçados nesses tempos antigos. O
que é o apoio mútuo senão a luta pela vida coletiva, protegendo-se
assim uma coletividade contra um perigo que esmagaria os isolados? O que
é a luta pela vida senão a de um indivíduo que reúne um número maior de
forças ou capacidades triunfando sobre aquele que reúne uma quantidade
menor?
O progresso é feito de independências e
individualizações fundadas num meio de sociabilidade relativamente
segura e elevada. Os grandes despotismos orientais não permitiram
verdadeiros progressos intelectuais, porém, se o ambiente do mundo
grego, composto de autonomias mais locais, e que produziu o primeiro
florescimento do pensamento livre que conhecemos foi à filosofia grega, a
qual pôde, no decorrer dos séculos, tomar conhecimento do que pensavam
na Índia e na China alguns pensadores. Porém antes de tudo, produziu uma
obra independente que os romanos, aos quais lhes interessava tanto se
instruir nas fontes gregas da civilização, não puderam compreender e
continuar e, menos ainda o mundo inculto do milênio da idade média.
Aquilo que se chama filosofia,
foi, no seu princípio, um conjunto de reflexões, o mais independente
possível da tradição religiosa, feita por indivíduos que dependiam do
seu ambiente e advinda de observações mais diretas, sendo algumas o
resultado de sua experiência, por exemplo: reflexões sobre a
origem e a essência do mundo e das coisas (cosmogonia), sobre a conduta
individual e melhorias desejáveis (moral), sobre a conduta cívica e
social (política social) e sobre um conjunto mais perfeito no futuro e
nos meios de o atingir (o ideal filosófico que é uma utopia, derivada
das opiniões que esses pensadores formaram sobre o passado, o presente e
o rumo da evolução que, acreditam, ter observado ou que consideram útil
e desejável). Originariamente, formaram-se as religiões aproximadamente
da mesma forma, só que em condições mais primitivas, e a teocracia dos
sacerdotes e o despotismo dos reis e dos chefes corresponde a esse
estágio. Essa população dos territórios gregos, continentes e ilhas, que
se mantinha contra os despotismos vizinhos, fundando uma vida cívica,
autonomias, federações e rivalizando em pequenos centros de cultura,
produz também esses filósofos que se sobressaíram no passado, procurando
ser úteis às suas pequenas repúblicas pátrias, e concebiam sonhos de
progresso e de felicidade geral (sem atrever-se ou sem querer tocar na
escravidão, claro está, demonstrando o quanto é difícil elevar-se
verdadeiramente acima do meio ambiente).
Datam daqueles tempos o governismo de
formas em aparências mais modernas e a política, que vieram substituir o
despotismo asiático e a arbitrariedade pura, sem, contudo substituí-los
totalmente.
Foi um progresso semelhante ao da
Revolução Francesa e ao do século XIX, comparados com o absolutismo do
século XVIII que, tal qual este último progresso, deu um grande impulso
ao socialismo integral e à concepção anarquista. Assim, ao lado da massa
dos filósofos e dos homens de Estado gregos, moderados e conservadores
houve pensadores intrépidos que chegaram, já então, as idéias
socialistas estatais alguns e às idéias anarquistas outros – uma pequena
minoria, sem dúvida, porém homens que deixaram sua marca que não pode
ser riscada da história, ainda que rivalidades de escolas, perseguições
ou a incúria de eras ignorantes, tenham feito desaparecer todos os seus
escritos. O que deles subsiste foi preservado, sobretudo como sínteses
em textos de autores reconhecidos que se conservaram.
Havia nessas pequenas repúblicas sempre
ameaçadas e, por sua vez, ambiciosas e agressivas, um culto extremo ao
civismo e ao patriotismo, havendo também rixas entre partidos, demagogia
e ânsia de poder. Sobre esta base se desenvolveu um comunismo muito
cru, daí a aversão de outros contra a democracia e a ideia de um governo
dos mais prudentes, dos sábios e dos homens de idade, como sonhava
Platão. Porém, também, a aversão ao Estado, do qual havia que afastar-se
professada por Aristipo; as idéias libertárias de Antifon e, sobretudo,
a grande obra de Zenon (342-270 a.C.), o fundador da escola estóica que
elimina toda coação exterior e que proclama o impulso moral próprio do
indivíduo como único e suficiente regulador das ações do indivíduo e da
comunidade.
Foi este um primeiro grito claro da
liberdade humana que se sentia adulta e se despojava dos seus laços
autoritários. Não é surpresa o fato de que todo esse trabalho fosse,
antes de tudo, deturpado por gerações futuras e depois completamente
posto à margem para se perder.
Entretanto, como as religiões
transportam as aspirações de justiça e igualdade a um céu fictício,
também os filósofos e alguns jurisconsultos transmitiram-nos o ideal de
um direito verdadeiramente justo e equitativo fundamentado nos
postulados formulados por Zenon e pelos estóicos; foi o chamado direito
natural que tal qual uma concepção ideal da religião, a religião
natural, iluminou debilmente numerosos séculos de crueldade e
ignorância, mas foi sob o seu resplendor que, enfim, se refizeram os
espíritos e se começou a querer concretizar essas abstrações idealistas.
Este é o primeiro grande serviço que a ideia libertária prestou à
humanidade; o seu ideal, tão completamente oposto ao ideal do reino
supremo e definitivo da autoridade é absorvido, após, em mais de dois
mil anos e fica implantado em cada homem honesto que sente perfeitamente
que é isto o que faria falta, por mais céptico, ignorante ou desviado
que esteja por interesses particulares, em relação à possibilidade e,
sobretudo à próxima possibilidade de realizações.
Porém, compreende-se, também, que a
autoridade – o Estado, a Propriedade, a Igreja – maquinou contra a
popularização dessas idéias e sabe-se que a República, o Império Romano e
a Roma dos Papas, até o século XV, impunham ao mundo ocidental um
fascismo intelectual absoluto, misturado com o despotismo oriental que
renascia entre bizantinos, turcos e o tzarismo russo (continuado
virtualmente pelo bolchevismo) como complemento. Então, até o século XV e
ainda mais tarde (Servet, Bruno, Vanini), o pensamento livre foi
impedido com o perigo da pena de morte, e não pôde transmitir-se a não
ser secretamente por meio de alguns sábios e seus discípulos, talvez no
núcleo mais íntimo de algumas sociedades secretas. Daí que tal
pensamento não se mostrasse à luz do dia senão quando, entremeado com o
fanatismo ou o misticismo das seitas religiosas, já nada tinha a temer
sentindo-se impulsionado ao sacrifício sabendo-se consagrado ou
consagrando-se alegremente à morte. Aqui, as fontes originais foram
cuidadosamente destruídas e não conhecemos mais que as vozes dos
denunciantes, dos injuriadores e, freqüentemente, dos carrascos.
Assim, Karpokrates, da escola
gnóstica do Egito, preconizou uma vida em comunismo livre, no século II
da nossa Era e, também, esta ideia emitida no Novo Testamento (Epístola
de Paulo aos Gálatas): “se vos manda o espírito, não estais sem lei”, o que parece indicar uma vida fora do Estado, sem lei nem amo.
Os últimos seis séculos da Idade Média
foram épocas de lutas das autonomias locais (cidade e pequenos
territórios), dispostas a federar-se e de grandes territórios que foram
unificados para formar os grandes Estados modernos, unidades políticas e
econômicas. Se as pequenas unidades eram centros de civilizações e
conseguiram prosperar pelo seu próprio trabalho produtivo, por
federações úteis a seus interesses e pela superioridade que as suas
riquezas lhes deu sobre os territórios agrícolas pobres e sobre as
cidades menos afortunadas, o seu completo êxito não foi mais que a
consagração dessas vantagens às expensas da inferioridade continua dos
menos favorecidos. Porventura, importa mais que algumas cidades livres,
como Florença, Veneza, Gênova, Augsburg, Nurenberg, Bremen, Gante,
Bruges e outras, se enriqueçam ou que todos os países em que se acham
situadas tenham um melhor nível em conforto, em educação, etc.? A
história, até 1919, pelo menos, decidiu pelas grandes unidades
econômicas, reduzindo-se ou desaparecendo as autonomias. A autoridade, o
desejo de expandir-se, de dominar, estava verdadeiramente em ambos os
lados, tanto nos microcosmos como nos macrocosmos.
A liberdade foi um termo explorado por uns e outros:
uns derrubaram o poder das cidades e de suas conjurações (ligas), os
outros, o poder dos reis e de seus Estados. No entanto, nesta situação,
as cidades favoreciam por vezes o pensamento independente, a
investigação científica, e permitiam aos dissidentes e heréticos,
proscritos em outras partes, encontrar nelas um asilo temporário.
Sobretudo ali onde os municípios romanos, situados nos caminhos do
comércio ou de outras cidades prósperas, eram mais numerosos, existiam
focos dessa independência intelectual; de Valência e Barcelona até a
Alta Itália e Toscana, até a Alsácia, Suíça, Alemanha Meridional e
Boêmia, por Paris até às nascentes do Reno, no Flandres e Países Baixos e
até o Litoral germânico (cidades Hanseáticas), amplas regiões semeadas
de focos de liberdades locais. E foram as guerras dos imperadores na
Itália; a cruzada contra os albigenses e a centralização da França pelos
reis, sobretudo por Luiz XI; a supremacia castelhana na Espanha, as
lutas dos Estados contra as Cidades na região do Meio-Dia e no norte
alemão, pelos duques de Borgonha, etc., que vieram produzir a supremacia
dos grandes Estados.
Entre as seitas cristãs se nomeiam,
sobretudo a esses Irmãos e Irmãs de Espírito Livre, como praticantes de
um comunismo ilimitado entre si. Partindo provavelmente da França,
destruídos pelas perseguições, a sua tradição sobreviveu sobre tudo na
Holanda e na Flandres assim como os Klompdraggers do século XIV e os
partidários de Eligius Praystinck, os libertinos de Anvers no século XVI
(os loistas), parecem derivar daqueles irmãos. Na Boêmia, depois dos
Hussitas, Peter Chelchicky preconizou uma conduta moral e social que
lembra os ensinamentos de Tolstoi. Havia ali também seitas de práticos,
chamados libertinos diretos, os Adamitas, sobretudo. São conhecidos
alguns escritos, principalmente de Chelchicky (cujos partidários
moderados foram conhecidos mais tarde como Irmãos Moravos); porém,
enquanto às seitas mais avançadas, se reduziram aos piores libelos de
seus devotos perseguidores e é difícil, senão impossível distinguir em
que grau seu desafio aos Estados e às Leis era um ato antiautoritário
consciente visto que se diziam autorizados pela palavra de Deus, que é
assim seu amo supremo.
Em suma, a Idade Média não pôde produzir
um libertarismo racional e integral. Apenas os redescobrimentos do
paganismo gregos e romanos, o humanismo da Renascença, deram a muitos
homens, instruídos meios de comparação e de crítica. Descobriram-se
várias mitologias tão perfeitas como a mitologia cristã, onde, entre a
fé em tudo isso e a fé em nada disso, alguns se emanciparam de toda
espécie de crença.
O título de um pequeno escrito de origem
desconhecida – De tribus Impostoribus – sobre os três impostores
(Moisés, Cristo e Maomé) marca bem essa tendência e, enfim, um frade
francês, Francisco Rabelais,
escreve as palavras libertadoras – Faz o que quiseres – e um jovem
jurista, também francês, Etienne de La Boetie (1530-1563) publica o
famoso “Discurso sobre a Servidão Voluntária”.
Estas investigações históricas nos
ensinam sermos modestos nas nossas expectativas. Não seria difícil achar
os mais belos elogios da liberdade, do heroísmo dos tiranicidas e
outros rebeldes, das revoltas sociais de caráter popular, etc; porém, a
compreensão do mal imanente que existe na autoridade e a completa
confiança na liberdade são raríssimas, e as manifestações aqui
mencionadas são as primeiras tentativas intelectuais e morais dos homens
para conseguirem caminhar pelos seus próprios pés sem auxiliares
tutelares e sem cadeias coercitivas. Parece pouco, mas é alguma coisa e
não foi esquecido. Frente aos três impostores ergue-se enfim a Ciência, a
Razão Livre, a Investigação profunda, a experimentação e uma verdadeira
experiência. A Abadia de Théléme, que se não foi a primeira das ilhas
felizes imaginadas, não foi também à última, e junto às utopias
autoritárias, estatistas, que refletem os novos grandes Estados
centralizadores, houve aspirações de vida idílica, inofensiva, graciosa,
cheia de respeito, afirmações da necessidade da liberdade e da
convivência, nesses séculos XVI, XVII e XVIII das guerras de conquista,
de religião, de comércio, de diplomacia e das cruéis colonizações de
ultramar – em resumo, a subjugação dos novos continentes.
E a servidão voluntária tomava, por
vezes, impulso para pôr fim a si mesma como na luta dos Países Baixos e
na Luta contra a realeza dos Stuart dos séculos XVI e XVII, e a luta nas
colônias norte-americanas contra a Inglaterra, no século XVIII, até a
emancipação da América Latina em princípios do século XIX.
A desobediência entrou assim na vida
política e social. De igual modo, o espírito da associação voluntária,
dos projetos e tentativas de cooperação industrial na Europa, já em
pleno século XVII, da vida prática por meio de organizações mais ou
menos autônomas e autogovernadas na América do Norte, antes e depois da
separação da Inglaterra. Já nos últimos séculos da Idade Média existiu o
desafio da Suíça Central ao Império alemão e o seu triunfo; as grandes
revoltas dos camponeses; as afirmações violentas de independência local
em várias regiões da Península Ibérica; não esquecendo Paris, que se
manteve firme contra a realeza em diversas ocasiões, até o século XVII e
novamente em 1789.
O fermento libertário, bem o sabemos,
era ainda demasiado pequeno e os rebeldes de ontem prendem-se a uma nova
autoridade no dia seguinte.
No entanto, pode-se mandar matar os
povos em nome de tal ou qual religião e, mais ainda, se lhes inculcou as
religiões intensificadas da Reforma e, por outro lado, submetem-os à
tutela e férula dos jesuítas. Além disso, a Europa foi submetida à
burocracia, à polícia, aos exércitos permanentes, à aristocracia e às
cortes dos príncipes, sendo ainda sutilmente dirigida pelos poderosos do
comércio e das finanças. Poucos homens entreviam, às vezes, soluções
libertárias, e aludiam a elas em algumas passagens das suas utopias,
como por exemplo, Gabriel Faigny, em As Aventuras de Jacques Sadeur no
descobrimento e Viagem da Terra Austral (1676); ou servindo-se da ficção
dos selvagens que não conheciam a vida refinada dos Estados policiais
como, por exemplo, Nicolau Gueudeville em Conversas entre um Selvagem e o
Barão de Hontan (1704); ou ainda Diderot no seu famoso Suplemento à
Viagem de Bougainville.
Houve um esforço de ação direta, pela
recuperação da liberdade após a queda da monarquia na Inglaterra, em
1649, feito por Gerard Winstanley (The Digger); os projetos de
socialismo voluntário por associação, de P. C. Plockboy (1658), um
holandês, John Bellers (1695), o escocês Robert Wallace (1761), na
França de Rétif de la Brettone (da teimosia da Bretã).
Pensadores inteligentes dissecavam o
Estatismo como – não importa ter sido uma extravagância – Edmund Burke
em A Vindication of Natural Society (1756) e em Diderot foi familiar uma
argumentação verdadeiramente anarquista. Houveram isolados que
impugnavam a lei e a autoridade como William Harris no território de
Rhode Island (Estados Unidos), no século XVII; Mathias Knutsen, no mesmo
século, no Holstein; o beneditino Dom Deschamps, no século XVIII, com
um manuscrito deixado por ele, na França (conhecido desde 1865); e
também A. F. Doni, Montesquieu (Os Trogloditas), G. F. Rebmann (1794),
Dulaurens (1766, em alguns trechos de Compère Matthieu), esboçavam
pequenos países e refúgios felizes sem propriedades nem leis.
Nas décadas anteriores à revolução
francesa, Sylvain Maréchal (1750-1803), um parisiense, propôs um
anarquismo muito claro, na velada forma da vida feliz de uma idade
pastoral arcádica; assim o é em L’Age d’Or, Seleta de Contos Pastorais
por Berger Sylvain (1782) e em Livre Echappé Au Déluge ou Pseaumes
Nouvellemert Découverts (1784). O mesmo fez uma propaganda ateísta das
mais decididas e em seus Apologues Modernes à L’Usage D’Un Dauphin
(1788), esboça já as visões de todos os reis deportados a uma ilha
deserta em que acabam por destruírem-se uns aos outros, e da greve geral
pela qual os produtores, que constituem a três quartas partes da
população, estabelecem a sociedade livre.
Durante a revolução francesa,
Marechal foi impressionado e seduzido pelo terrorismo revolucionário,
não resistiu, no entanto, a pôr no Manifesto dos Iguais dos babouvistas,
estas palavras famosas: “Desaparecei repulsivas diferenças de
governantes e governados”, que foram radicalmente reprovadas durante seu
processo pelos acusados socialistas autoritários e pelo próprio
Buonarroti.
Encontram-se idéias anarquistas
claramente expressas por Lessing, o Diderot alemão do século XVIII;
pelos filósofos Fichte e Krause, Wilhelm Von Humboldt (1792, irmão de
Alexander) se inclinam, em alguns de seus escritos para o lado
libertário. Da mesma forma, os jovens poetas ingleses S. T. Coleridge e
seus amigos do tempo de seu Pantisocracy. Uma primeira aplicação desses
sentimentos encontra-se na reforma da pedagogia entrevista no século
XVII por Amos Comenius, que por sua vez recebeu seu impulso de J. J.
Rousseau, sob a influência de todas as idéias humanitárias e
igualitárias do século XVIII e particularmente abraçadas na Suíça
(Pestalozzi) e na Alemanha, onde também Goethe deu a sua contribuição
com entusiasmo. No núcleo mais íntimo dos Iluminados alemães
(Weishaupt), a sociedade sem autoridade foi reconhecida como objetivo
final. Franz Baader (na Baviera) ficou muito impressionado pelo Enquiry
on Political Justice, de Godwin, que apareceu em alemão (somente a
primeira parte em 1803, em Würzburg, Baviera) e também Georg Forster,
homem de ciência e revolucionário alemão que leu esse livro em Paris, em
1793, mas morreu poucos meses depois, em janeiro de 1794, sem ter
podido dar a sua opinião pública sobre esse livro que tanto o fascinara
(Carta de 23 de julho de 1793).
Estas são referências rápidas dos
principais materiais que analisei no livro Der Vorfrühling der Anarchie,
1925, p. 5 a 66. É provável que alguns meses de investigações especiais
no British Museun as completasse um pouco mais, e são, sobretudo livros
espanhóis, italianos, holandeses e escandinavos, que pouco pude
consultar. Nos livros franceses, ingleses e alemães pesquisei muito. Em
suma, o que falta pode ser numeroso e interessante, mas provavelmente
não será de crucial importância ou a repercussão sobre os materiais já
conhecidos nos teria advertido de sua existência.
Esses materiais não são, pois muito
numerosos mas são bastante notáveis. Rabelais é bem conhecido. Através
de Montaigne chegou-se a La Boetie. A Utopia de Gabriel Foigny tornou-se
muito conhecida, traduzida e várias vezes reimpressa. A ideia juvenil
ou fugaz de Burke teve grande voga, e Sylvain Marechal foi muito
comentado. Diderot e Lessing tornaram-se clássicos. Assim, essas
concepções profundamente antiautoritárias, essa crítica e repúdio à
ideia governamental, os esforços sérios para reduzir e até negar o lugar
da autoridade na educação, nas relações entre sexos, na vida religiosa,
nos assuntos públicos, tudo isso não passou desapercebido para o mundo
avançado do século XVIII, e pode-se dizer que, como ideal supremo,
somente os reacionários o combatiam, e apenas os moderados, ponderados, o
tomavam como irrealizável para sempre. Pelo direito natural, a religião
natural ou a concepção materialista do tipo de Holbach (Sistema da
Natureza, 1770) e de Lamettrie, pelo encaminhamento de uma menor a uma
maior perfeição das sociedades secretas, todos os cosmopolitas
humanitários do século estavam intelectualmente no rumo de um mínimo de
governo quando não até à sua ausência total para os homens livres. Os
Herder e os Condorcet, Mary Wollstonecraft e, não muito depois, o jovem
Shelley, todos compreenderam que o futuro caminha para uma humanização
dos homens, o que reduziria a nada, inevitavelmente, o governismo.
Tal era a situação nas vésperas da
revolução francesa, quando ainda não se conheciam todas as forças que um
golpe decisivo dado contra o antigo regime, iam pôr em movimento tanto
para o bem como para o mal. Estava-se rodeado de insolentes
aproveitadores da autoridade e de todas suas vítimas seculares, mas os
amantes do progresso aspiravam a um máximo de liberdade e tinham disso
boa consciência e boa esperança. A larga noite da era da autoridade
aproximava-se do seu fim.*http://www.anarquista.net/ideais-anarquistas/
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