Eliane Brum: Pela ampliação da maioridade moral
“Hoje 200 milhões de crianças vão dormir nas ruas das grandes cidades do mundo. Nenhuma é cubana”.
Via Epoca
E pelo aumento do nosso
rigor ao exigir o cumprimento da lei de governantes que querem aumentar o
rigor da lei (e também dos que não querem)
Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista. Autora de um romance - Uma Duas (LeYa) - e de três livros de reportagem: Coluna Prestes – O avesso da lenda(Artes e Ofícios), A vida que ninguém vê (Arquipélago, Prêmio Jabuti 2007) e O olho da rua - uma repórter em busca da literatura da vida real (Globo).
(Foto: Lilo Clareto/ Divulgação)
Eu acredito na indignação. É dela e do espanto que vêm a vontade de
construir um mundo que faça mais sentido, um em que se possa viver sem
matar ou morrer. Por isso, diante de um assassinato consumado em São
Paulo por um adolescente a três dias de completar 18 anos, minha
proposta é de nos indignarmos bastante. Não para aumentar o rigor da lei
para adolescentes, mas para aumentar nosso rigor ao exigir que a lei
seja cumprida pelos governantes que querem aumentar o rigor da lei. Se
eu acreditasse por um segundo que aumentar os anos de internação ou
reduzir a maioridade penal diminuiria a violência, estaria fazendo
campanha neste momento. Mas a realidade mostra que a violência alcança
essa proporção porque o Estado falha – e a sociedade se indigna pouco.
Ou só se indigna aos espasmos, quando um crime acontece. Se vivemos com
essa violência é porque convivemos com pouco espanto e ainda menos
indignação com a violência sistemática e cotidiana cometida contra
crianças e adolescentes, no descumprimento da Constituição em seus
princípios mais básicos. Se tivessem voz, os adolescentes que queremos
encarcerar com ainda mais rigor e por mais tempo exigiriam – de nós,
como sociedade, e daqueles que nos governam pelo voto – maioridade
moral.
Se é de crime que se trata, vamos falar de crime. E para isso vale a pena citar um documento da Fundação Abrinq
bastante completo, que reúne os estudos mais recentes sobre o tema.
Mais de 8.600 crianças e adolescentes foram assassinados no Brasil em
2010, segundo o Mapa da Violência. Vou repetir: mais de 8.600. Esse
número coloca o Brasil na quarta posição entre os 99 países com as
maiores taxas de homicídio de crianças e adolescentes de 0 a 19 anos. Em
2012, mais de 120 mil crianças e adolescentes foram vítimas de maus
tratos e agressões segundo o relatório dos atendimentos no Disque 100.
Deste total de casos, 68% sofreram negligência, 49,20% violência
psicológica, 46,70% violência física, 29,20% violência sexual e 8,60%
exploração do trabalho infantil. Menos de 3% dos suspeitos de terem
cometido violência contra crianças e adolescentes tinham entre 12 e 18
anos incompletos, conforme levantamento feito entre janeiro e agosto de
2011. Quem comete violência contra crianças e adolescentes são os
adultos.
Será que o assassinato de mais de 8.600 crianças e adolescentes e os
maus tratos de mais de 120 mil não valem a nossa indignação?
Diante desse massacre persistente e cotidiano, talvez se pudesse esperar
um alto índice de violência por parte de crianças e adolescentes. E a
sensação da maioria da população, talvez os mesmos que clamam por
redução da maioridade penal, é que há muitos adolescentes assassinos
entre nós. É como se aquele que matou Victor Hugo Deppman
na noite de 9 de abril fosse legião. Não é. Do total de adolescentes em
conflito com a lei em 2011 no Brasil, 8,4% cometeram homicídios. A
maioria dos delitos é roubo, seguido por tráfico. Quase metade do total
de adolescentes infratores realizaram o primeiro ato infracional entre
os 15 e os 17 anos, conforme uma pesquisa do Conselho Nacional de
Justiça (CNJ). E, adivinhe: a maioria abandonou a escola (ou foi
abandonado por ela) aos 14 anos, entre a quinta e a sexta séries. E
quase 90% não completou o ensino fundamental.
Será que não há algo para pensar aí, uma relação explícita? Não são a
escola – como lugar concreto e simbólico – e a educação – como garantia
de acesso ao conhecimento, a um desejo que vá além do consumo e também a
formas não violentas de se relacionar com o outro – os principais
espaços de dignidade, desenvolvimento e inclusão na infância e na
adolescência?
É demagogia fazer relação entre educação e violência, como querem
alguns? Mas será que é aí que está a demagogia? É sério mesmo que a
maioria da população de São Paulo acredita que tenha mais efeito reduzir
a maioridade penal em vez de pressionar o Estado – em todos os níveis –
a cumprir com sua obrigação constitucional de garantir educação de
qualidade?
Não encontro argumentos que me convençam de que a redução da maioridade
penal vá reduzir a violência. E encontro muitos argumentos que me
convencem de que a violência está relacionada ao que acontece com a
escola no Brasil. A começar pelo recado que se dá a crianças e
adolescentes quando os professores são pagos com um salário indigno.
Aqueles que escolhem (e eles são cada vez menos) uma das profissões mais
importantes e estratégicas para o país se tornam, de imediato,
desvalorizados ensinando (ou não ensinando) outros desvalorizados. Será
que essa violência – brutal de várias maneiras – não tem nenhuma relação
com a outra que tanto nos indigna?
Teríamos mais esperança de mudança real se, diante de um crime bárbaro,
praticado por um adolescente a três dias de completar 18 anos, o povo
fosse às ruas exigir que crianças e jovens sejam educados – em vez de
bradar que sejam enjaulados mais cedo ou com mais rigor nas prisões que
tão bem conhecemos. Vale a pena pensar, e com bastante atenção: a quem
isso serve?
É uma mentira dizer que os adolescentes não são responsabilizados pelos
atos que cometem. O tão atacado Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA) prevê a responsabilização, sim. Inclusive com privação de
liberdade, algo tremendo nessa faixa etária. Mas, de novo, o Estado não
cumpre a lei. Numa pesquisa realizada pelo CNJ, apenas em 5% de quase 15
mil processos de adolescentes infratores havia informações sobre o
Plano Individual de Atendimento (PIA), que permitiria que a medida
socioeducativa funcionasse como possibilidade de mudança e
desenvolvimento.
Alguém pensa em se indignar contra isso?
Se você se alinha àqueles que querem que os adolescentes sejam
encarcerados, torturados e sexualmente violados para pagar pelos seus
crimes, pode se alegrar. É o que acontece na prática numa parcela
significativa das instituições que deveriam dar exemplo de cumprimento
da lei e oferecer as condições para que esses adolescentes mudassem o
curso da sua história, como mostrou uma reportagem do Fantástico
feita por Marcelo Canellas, Wálter Nunes e Luiz Quilião. Segundo a
pesquisa do CNJ já citada, em 34 instituições brasileiras, pelo menos um
adolescente foi abusado sexualmente nos últimos 12 meses, em 19 há
registros de mortes de jovens sob a tutela do Estado, e 28% dos
entrevistados disseram ter sofrido agressões físicas dos funcionários.
Sem contar que, em 11 estados, as instituições operam acima da sua
capacidade.
Será que a perpetuação da violência juvenil decorre da falta de rigor da
lei ou do fato de que parte das instituições de adolescentes funciona
na prática como um campo de concentração? Antes de tentar mudar a lei,
não seria mais racional cumpri-la?
É o que o bom senso parece apontar. Mas é previsível que, num ano
pré-eleitoral e com 93% dos paulistanos a favor da redução da maioridade
penal, segundo pesquisa do Datafolha, o governador Geraldo Alckmin
(PSDB) prefira enviar ao Congresso um projeto para alterar o ECA,
passando o período máximo de internação dos atuais 3 anos para 8 anos em
casos de crimes hediondos. Uma medida tida como enérgica e rápida, num
momento em que o Estado de São Paulo sofre com o que o próprio
vice-governador, Afif Domingos (PSD), definiu como “epidemia de
insegurança” – situação que não tem colaborado para aumentar a
popularidade do atual governo.
Vale a pena registrar ainda que o número de crimes contra a pessoa
cometidos por adolescentes diminuiu – e não aumentou, como alguns querem
fazer parecer. Segundo dados da Secretaria Nacional de Direitos
Humanos, entre 2002 e 2011 os casos de homicídio apresentaram uma
redução de 14,9% para 8,4%; os de latrocínio (roubo seguido de morte),
de 5,5% para 1,9%; e os de estupro, de 3,3% para 1%. Vale a pena também
dar a dimensão real do problema: da população total dos adolescentes
brasileiros, apenas 0,09% cumprem medidas socioeducativas como
infratores. Vou repetir: 0,09%. E a maioria deles cometeram crimes
contra o patrimônio.
É claro que, se alguém acredita que os crimes cometidos pelos
adolescentes não têm nenhuma relação com as condições concretas em que
vivem esses adolescentes, assim como nenhuma relação com as condições
concretas em que cumprem as medidas socioeducativas, faz sentido
acreditar que se trata apenas de “vocação para o mal”. Entre os muitos
problemas desse raciocínio que parece afetar o senso comum está o fato
de que a maioria dos adolescentes infratores é formada por pretos,
pardos e pobres. (São também os que mais morrem e sofrem todo o tipo de
violência no Brasil.) Essa espécie de “marca da maldade” teria então cor
e estrato social? Nesse caso, em vez de melhorar a educação e as
condições concretas de vida, a única medida preventiva possível para
quem defende tal crença seria enjaular ao nascer – ou nem deixar nascer.
Alguém se lembra de ter visto esse tipo de tese em algum momento
histórico? Percebe para onde isso leva?
Há que ter muito cuidado com o que se deseja – e com o que se defende.
Assim como muito cuidado em não permitir que manipulem nossa indignação e
nossa aspiração por um mundo em que se possa viver sem matar ou
morrer.
Se eu estivesse no lugar dos pais de Victor Hugo Deppman, talvez, neste
momento de dor impossível, eu defendesse o aumento do número de anos de
internação, assim como a redução da maioridade penal. Não há como
alcançar a dor de perder um filho – e de perdê-lo com tal brutalidade.
Diante de um crime bárbaro, qualquer crime bárbaro e não apenas o que
motivou o atual debate, os parentes da vítima podem até desejar
vingança. É uma prerrogativa do indivíduo, daqueles que sofrem o
martírio e estão sob impacto dele. Mas o Estado não tem essa
prerrogativa.
O indivíduo pode desejar vingança em seu íntimo, o Estado não pode ser
vingativo em seus atos. Do Estado se espera que leve adiante o processo
civilizatório, as conquistas de direitos humanos tão duramente
conquistadas. E, como sociedade, nossa maturidade se mostra pelo
conteúdo que damos à nossa indignação. É nas horas críticas que
mostramos se estamos ou não à altura da nossa época – e de nossas
melhores aspirações.
De minha parte, sempre me surpreendi não com a violência cometida por
adolescentes – mas que não seja maior do que é, dado o nível de
violência em que vive uma parcela da juventude brasileira, a parcela que
morre bem mais do que mata. E só testemunhei a sociedade brasileira
olhar de verdade – olhar para ver essa realidade – uma única vez: quando
o Brasil assistiu, em horário nobre do domingo, ao documentário Falcão - Meninos do tráfico. É um bom momento para revê-lo.
Sabe por que a violência praticada por adolescentes não é maior do que
é? Por causa de seus pais – e especialmente de suas mães. A maioria
delas trabalha dura e honestamente, muitas como empregadas domésticas,
cuidando da casa e dos filhos das outras. Contra tudo e contra todos,
numa luta solitária e sem apoio, elas se viram do avesso para garantir
um futuro para seus filhos. O extraordinário é que, apesar de sua enorme
solidão, sem amparo e com falta de tudo, a maioria consegue. Àquelas
que fracassam cabe a dor que não tem nome, a mesma dor impossível que
vive a mãe de Victor Hugo Deppman: enterrar um filho.
Em 2006, espantada com uma geração de brasileiros, a maioria negros e
pobres, cuja expectativa de vida era 20 anos, andei pelo país atrás
dessas mulheres. Elas respiravam, mas não sei se estavam vivas. Lembro
especialmente uma, a lavadeira Enilda, de Fortaleza. Quando o primeiro
filho foi assassinado pela polícia, ela estava com as prestações do
caixão atrasada. O pai do menino tinha ganhado um dinheiro fazendo pão
e, em meio à enormidade da sua dor, eles correram para regularizar o
pagamento. Quando conversei com ela, Enilda pagava as prestações do
caixão do segundo filho. O garoto ainda estava vivo, mas em absoluta
impotência, essa mãe tinha certeza de que o filho morreria em breve.
Diante da minha perplexidade, Enilda me explicou que se precavia porque
testemunhava muitas mães nas redondezas pedindo esmola para enterrar os
filhos – e ela não queria essa humilhação. Enilda dizia: “Meu filho vai
morrer honestamente”.
Nunca alcancei essa dor, que era não apenas de enterrar um filho, mas
também de comprar caixão para filho vivo, o único ato de potência de uma
mulher que perdera tudo. Enilda vivia numa situação de precariedade
quase absoluta, tentando trancar nas peças apertadas da casa os filhos
que restavam, num calor infernal, para que não fossem às ruas e se
viciassem em crack. É claro que perdia todas as suas batalhas. A certeza
de ser honesta era, para ela, toda a sanidade possível. (leia aqui).
O que podemos dizer a mulheres como Enilda? Que agora podem ficar
tranquilas porque o país voltou a discutir a redução da maioridade penal
e o aumento do período de internação? Que é por falta de cadeia logo
cedo que seus filhos vendiam e consumiam drogas, roubavam e foram
assassinados? Que, ao saber que podem ir presos aos 16 em vez dos 18
anos, seus filhos ainda vivos aceitarão as péssimas condições de vida e
levarão uma existência em que não trafiquem, roubem nem sejam mortos?
Que é disso que se trata? Quando o primeiro filho de Enilda foi
executado, ele tinha 20 anos – e já tinha passado por instituições para
adolescentes e pela prisão.
Antes de tornar-se algoz, a maioria das crianças e adolescentes que infringiram a lei foi vítima. E ninguém responde por isso.
Não há educação sem responsabilização. É por compreender isso que o ECA
prevê medidas socioeducativas. Mas, quando a solução apresentada é
aumentar o rigor da lei – e/ou reduzir a maioridade penal –, pretende-se
dar a impressão à sociedade que os adolescentes não são
responsabilizados ao cometer um crime. Essa, me parece, é a falsa
questão, que só empurra o problema para a frente. A questão, de fato, é
que nem o Estado, nem a sociedade, se responsabilizam o suficiente pela
nova geração de brasileiros.
Educa-se também pelo exemplo. Neste caso, governantes e parlamentares
poderiam demonstrar que têm maioridade moral cumprindo e fazendo cumprir
a lei cujo rigor (alguns) querem aumentar.
(Eliane Brum escreve às segundas-feiras.)
*GilsonSampaio