Sistema educacional é um importante instrumento a perpetuar a desigualdade
Otaviano Helene no CORREIO DA CIDADANIA |
O Brasil chegou a ser, há não muito
tempo atrás, o país com a pior distribuição de renda em todo o mundo.
Embora essa situação tenha melhorado nos últimos anos, continuamos em
uma posição muito ruim – o nono pior índice de Gini (1) entre 107
países relacionados pelo Banco Mundial – e estamos evoluindo muito
lentamente. Em apenas cinco países os 10% mais pobres têm uma
participação na renda nacional menor do que os 10% mais pobres no
Brasil e em apenas dois países os 10% mais ricos abocanham uma fração
da renda nacional maior do que no Brasil.
A renda não se concentra por um
processo natural, como se nos quintais de alguns nascessem, por
natureza, frondosas árvores de dinheiro e nos quintais de outros,
raquíticos arbustos de moedinhas. A renda se concentra como
conseqüência de políticas explícitas que incluem o próprio sistema
econômico, a ausência ou não de reformas agrária e urbana democráticas,
a repressão dos ou o diálogo com os movimentos sociais organizados, as
alíquotas de impostos diretos e o combate ou não à sonegação, a
existência ou não de impostos sobre o patrimônio, entre várias outras.
Há dois processos relacionados à
educação que contribuem fortemente para a perenização da concentração
de renda: a renda das pessoas depende fortemente da educação formal que
receberam e a educação das crianças e jovens depende, também
fortemente, de suas rendas familiares. A combinação desses dois fatores
faz com que nossa política educacional seja um dos principais fatores
de concentração de renda e de reprodução das desigualdades.
Um dos principais fatores
responsáveis pela exclusão escolar é a renda. Por exemplo, a
participação dos estudantes provenientes dos segmentos mais pobres da
população cai significativamente ao longo das séries escolares e
praticamente a totalidade das cerca de 30% das crianças que abandonam a
escola antes do final do ensino fundamental tem origem nos segmentos
mais desfavorecidos da população. Como a enorme maioria dessas crianças
que deixam a escola prematuramente não freqüentou as classes de
educação infantil, a educação formal oferecida a elas restringe-se aos
poucos anos de escolaridade no ensino fundamental, em geral em escolas
precárias, com uma permanência diária abaixo das quatro horas e com
muitas “aulas vagas”. Resultado: os investimentos educacionais feitos
em favor dessa terça parte das crianças, cujos valores anuais são
próximos ao piso do Fundeb (2), não excederão, ao longo de toda a vida,
alguns poucos milhares de reais.
No outro extremo, entre os mais
ricos, a educação começa nos primeiros anos de vida e dura pelo menos
duas décadas, com valores mensais de investimento que superam os mil
reais, ou muito mais do que isso se forem incluídos investimentos com
educação extra-escolar (cursos de línguas, atividades esportivas, aulas
particulares etc.). Ao longo de toda a vida esses investimentos podem
superar centenas de milhares de reais.
Portanto, as desigualdades na
educação formal são enormes. E esses contingentes com enormes
diferenças educacionais, ao deixarem a escola, conviverão em uma mesma
sociedade. Ninguém pode ter dúvida do que acontecerá.
Em resumo, nossas terríveis
desigualdades econômicas e sociais entram nas escolas pela porta da
frente, com a conivência, apoio e subvenção explícita por parte das
autoridades municipais, estaduais e federais, fazendo com que nosso
sistema escolar trate de forma extremamente diferente os pobres e os
ricos. E, evidentemente, com o apoio total das elites econômicas, para
as quais as desigualdades não devem ser enfrentadas e superadas, mas,
sim, os desiguais devem ser combatidos quando ameaçam incomodar.
O círculo vicioso
renda‑educação‑renda se fecha uma vez que a renda de uma pessoa depende
fortemente de sua educação formal, tanto em termos quantitativos
quanto qualitativos, coisa que salta aos olhos (3). Cada ano adicional
de escolaridade de um trabalhador implica em um aumento de renda da
ordem de 15%, em média. Além dessa dependência da renda com relação ao
número de anos de estudo, há também uma dependência em face da
qualidade da educação recebida e, novamente, esta também depende
fortemente da renda familiar dos estudantes.
Portanto, nosso sistema
educacional é um importante instrumento a perpetuar a desigualdade,
garantindo que ainda permaneceremos por longo tempo entre os países
mais desiguais do mundo.
Outro aspecto perverso da
desigualdade do nosso sistema educacional é o “desperdício” de pessoas.
Como a desigualdade exclui das escolas enormes contingentes
populacionais e grande parte dos não excluídos apresenta graves
deficiências, nossas possibilidades de desenvolvimento social, cultural
e do sistema de produção de bens e serviços são gravemente
comprometidas, uma vez que não podemos contar com a contribuição
produtiva da maioria dos nossos jovens, por mais dedicados, brilhantes e
interessados que pudessem vir a ser: eles já foram descartados.
Para construirmos um país
realmente republicano, precisaríamos romper com essa situação e criar
um sistema educacional onde todos, independentemente da origem social e
econômica, sejam tratados de forma igualitária. Escolas com
infra-estruturas adequadas, professores e educadores que sejam
remunerados adequadamente e instrumentos de gratuidade ativa (4) que
compensem os custos induzidos pela freqüência à escola são
fundamentais.
E não há nenhuma limitação real e
objetiva que nos impeça de construir uma escola igualitária e
democrática: se excluímos crianças e jovens prematuramente das escolas e
as condenamos a uma vida adulta com más remunerações, é uma opção
política ditada pelas elites, que não abrirão mão, por bem, de nenhum
de seus privilégios, por mais que eles possam ser danosos para a
sociedade.
(1) O índice de Gini é um dos indicadores mais amplamente adotados para quantificar a distribuição de renda.
(2)
O Fundeb, Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e
de Valorização dos Profissionais da Educação, corresponde a um valor
mínimo de investimento educacional da ordem de R$ 200 reais por mês e
por estudante (valores de 2012). Estados cujos investimentos estão
abaixo desse valor recebem uma complementação da União.
(3)
Há exceções, obviamente, e algumas pessoas com pouca escolarização têm
sucesso profissional e mesmo altas rendas. Entretanto, a regra seguida
de forma majoritária é que a renda aumenta com o grau de
escolarização. Por causa das poucas exceções, muitos, desatentamente,
pensam que a regra inexiste ou é muito frágil; outros, às vezes por má
fé, reproduzem e dão força a esse engano.
(4)
Devemos lembrar que a renda per capita familiar de quase metade das
crianças e adolescentes entre 0 e 17 anos, segundo dados de vários
PNADs, é inferior a meio salário mínimo. Se considerarmos que grande
parte da renda familiar é gasta com moradia, alimentação, energia
elétrica e outras despesas inescapáveis, o que resta para as outras
despesas é extremamente baixo. Assim, uma simples passagem de ônibus
adicional por dia, um pequeno lanche ou qualquer outra despesa
associada à freqüência à escola podem estar totalmente fora do alcance
familiar. Nos segmentos mais favorecidos, muitas dessas despesas podem
passar despercebidas, mas, para os segmentos mais desfavorecidos, elas
são insuportavelmente altas.
*Turquinho
|