O papa e a utilidade do marxismo
Aceitar
que o marxismo conforme a ótica de Ratzinger é o mesmo marxismo
conforme a ótica de Marx seria como identificar catolicismo com
Inquisição
16/04/2012
Frei Betto
O
papa Bento XVI tem razão: o marxismo não é mais útil. Sim, o marxismo
conforme muitos na Igreja Católica o entendem: uma ideologia ateísta,
que justificou os crimes de Stalin e as barbaridades da Revolução
Cultural chinesa. Aceitar que o marxismo conforme a ótica de Ratzinger é
o mesmo marxismo conforme a ótica de Marx seria como identificar
catolicismo com Inquisição.
Poder-se-ia dizer hoje: o catolicismo
não é mais útil. Porque já não se justifica enviar mulheres tidas como
bruxas à fogueira nem torturar suspeitos de heresia. Ora, felizmente o
catolicismo não pode ser identificado com a Inquisição, nem com a
pedofilia de padres e bispos.
Do mesmo modo, o marxismo não se
confunde com os marxistas que o utilizaram para disseminar o medo, o
terror, e sufocar a liberdade religiosa. Há que voltar a Marx para saber
o que é marxismo; assim como há que retornar aos Evangelhos e a Jesus
para saber o que é cristianismo, e a Francisco de Assis para saber o que
é catolicismo.
Ao longo da história, em nome das mais belas
palavras foram cometidos os mais horrendos crimes. Em nome da
democracia, os EUA se apoderaram de Porto Rico e da base cubana de
Guantánamo. Em nome do progresso, países da Europa Ocidental colonizaram
povos africanos e deixaram ali um rastro de miséria. Em nome da
liberdade, a rainha Vitória, do Reino Unido, promoveu na China a
devastadora Guerra do Ópio. Em nome da paz, a Casa Branca cometeu o mais
ousado e genocida ato terrorista de toda a história: as bombas atômicas
sobre as populações de Hiroshima e Nagasaki. Em nome da liberdade, os
EUA implantaram, em quase toda a América Latina, ditaduras sanguinárias
ao longo de três décadas (1960-1980).
O marxismo é um método de
análise da realidade. E mais do que nunca útil para se compreender a
atual crise do capitalismo. O capitalismo, sim, já não é útil, pois
promoveu a mais acentuada desigualdade social entre a população do
mundo; apoderou-se de riquezas naturais de outros povos; desenvolveu sua
face imperialista e monopolista; centrou o equilíbrio do mundo em
arsenais nucleares; e disseminou a ideologia neoliberal, que reduz o ser
humano a mero consumista submisso aos encantos da mercadoria.
Hoje,
o capitalismo é hegemônico no mundo. E de 7 bilhões de pessoas que
habitam o planeta, 4 bilhões vivem abaixo da linha da pobreza, e 1,2
bilhão padecem fome crônica. O capitalismo fracassou para 2/3 da
humanidade que não têm acesso a uma vida digna. Onde o cristianismo e o
marxismo falam em solidariedade, o capitalismo introduziu a competição;
onde falam em cooperação, ele introduziu a concorrência; onde falam em
respeito à soberania dos povos, ele introduziu a globocolonização.
A
religião não é um método de análise da realidade. O marxismo não é uma
religião. A luz que a fé projeta sobre a realidade é, queira ou não o
Vaticano, sempre mediatizada por uma ideologia. A ideologia neoliberal,
que identifica capitalismo e democracia, hoje impera na consciência de
muitos cristãos e os impede de perceber que o capitalismo é
intrinsecamente perverso. A Igreja Católica, muitas vezes, é conivente
com o capitalismo porque este a cobre de privilégios e lhe franqueia uma
liberdade que é negada, pela pobreza, a milhões de seres humanos.
Ora,
já está provado que o capitalismo não assegura um futuro digno para a
humanidade. Bento XVI o admitiu ao afirmar que devemos buscar novos
modelos. O marxismo, ao analisar as contradições e insuficiências do
capitalismo, nos abre uma porta de esperança a uma sociedade que os
católicos, na celebração eucarística, caracterizam como o mundo em que
todos haverão de "partilhar os bens da Terra e os frutos do trabalho
humano". A isso Marx chamou de socialismo.
O arcebispo católico
de Munique, Reinhard Marx, lançou, em 2011, um livro intitulado O
Capital — um legado a favor da humanidade. A capa contém as mesmas cores
e fontes gráficas da primeira edição de O Capital, de Karl Marx,
publicada em Hamburgo, em 1867.
"Marx não está morto e é preciso
levá-lo a sério", disse o prelado por ocasião do lançamento da obra. "Há
que se confrontar com a obra de Karl Marx, que nos ajuda a entender as
teorias da acumulação capitalista e o mercantilismo. Isso não significa
deixar-se atrair pelas aberrações e atrocidades cometidas em seu nome no
século 20".
O autor do novo "O Capital", nomeado cardeal por
Bento XVI em novembro de 2010, qualifica de "sociais-éticos" os
princípios defendidos em seu livro, critica o capitalismo neoliberal,
qualifica a especulação de "selvagem" e "pecado", e advoga que a
economia precisa ser redesenhada segundo normas éticas de uma nova ordem
econômica e política.
"As regras do jogo devem ter qualidade
ética. Nesse sentido, a doutrina social da Igreja é crítica frente ao
capitalismo", afirma o arcebispo.
O livro se inicia com uma carta
de Reinhard Marx a Karl Marx, a quem chama de "querido homônimo",
falecido em 1883. Roga-lhe reconhecer agora seu equívoco quanto à
inexistência de Deus. O que sugere, nas entrelinhas, que o autor do
Manifesto Comunista se encontra entre os que, do outro lado da vida,
desfrutam da visão beatífica de Deus.
Frei Betto é autor do romance "Um homem chamado Jesus" (Rocco), entre outros livros.
*Brasildefato