Os dias 5 e 9 de julho condensam
caminhos pelos quais a história paulista poderia seguir. São dois tabus
no estado. Um é esquecido, o outro é exaltado.
A primeira data marca uma
violenta reação ao poder do atraso, tendo por base setores médios e
populares. E a segunda representa a exaltação do atraso, capitaneada
pela elite regional.
Dia 5 de julho, há 88 anos, uma
intrincada teia de tensões históricas desaguou no episódio que ficaria
conhecido como Revolução de 1924. Suas raízes estão no agravamento de
problemas sociais, no autoritarismo dos governos da República Velha e em
descontentamentos nos meios militares, que já haviam gerado o movimento
tenentista, dois anos antes.
Naquele duro inverno, em meio a
uma crise econômica, eclodiu uma nova sublevação. Tropas do Exército e
da Força Pública tomaram quartéis, estações de trem e edifícios públicos
e expulsaram da cidade o governador Carlos de Campos. No comando, em
sua maioria, camadas da média oficialidade. Quatro dias depois, era
instalado um governo provisório, que se manteria até 27 de julho. O país
vivia sob o estado de sítio do governo Arthur Bernardes (1922-1926).
Entre as reivindicações dos
revoltosos estavam: “1º Voto secreto; 2º Justiça gratuita e reforma
radical no sistema de nomeação e recrutamento dos magistrados (...) e 3º
Reforma não nos programas, mas nos métodos de instrução pública”. No
plano político, destaca-se ainda “A proibição de reeleição do Presidente
da República (...) e dos governadores dos estados”.
Várias guarnições de cidades
próximas aderiram ao movimento. Apesar da falta de um programa claro,
setores do operariado organizado apoiaram os revolucionários e exortaram
a população a auxiliá-los no que fosse possível.
Bombas, tiros e mortes
As ruas da capital foram palco de
intensos combates, com direito a fuzilaria, granadas e tiros de
morteiros. Cerca de trezentas trincheiras e barricadas foram abertas em
diversos bairros.
A partir do dia 11, o governador
deposto, instalado nas colinas da Penha, seguindo determinações do
presidente da República, decidiu lançar uma carga de canhões em direção
ao centro. O objetivo era aterrorizar a população e forçá-la a se
insurgir contra os rebelados.
De forma intermitente, os bairros
operários da Mooca, Ipiranga, Belenzinho, Brás e Centro sofreram
bombardeio por vários dias. Casas modestas e fábricas foram reduzidas a
escombros e cadáveres multiplicavam-se pelas ruas.
Sem conseguir dobrar a resistência, o governo federal decidiu bombardear a cidade com aviões de combate.
O fim da rebelião
Três semanas depois de iniciada, a
rebelião foi acuada. Dos 700 mil habitantes da cidade, cerca de 200 mil
fugiram para o interior, acotovelando-se nos trens que saiam da estação
da Luz. O saldo dos 23 dias de revolta foi 503 mortos e 4.846 feridos. O
número de desabrigados passou de vinte mil. No final da noite do dia
28, cerca de 3,5 mil insurgentes retiraram-se da cidade com pesado
armamento em três composições ferroviárias. O destino imediato era
Bauru, no centro do estado.
Deixaram um manifesto,
agradecendo o apoio da população: “No desejo de poupar São Paulo de uma
destruição desoladora, grosseira e infame, vamos mudar a nossa frente de
trabalho e a sede governamental. (...) Deus vos pague o conforto e o
ânimo que nos transmitistes”.
As tensões não cessariam. No ano
seguinte, parte dos revolucionários engrossaria a Coluna Prestes
(1925-1927). Mais tarde, outros tantos protagonizariam – e venceriam - a
Revolução de 30.
Promovida pelas camadas médias do
meio militar, o levante ganhou apoio de parcelas pobres da população.
Talvez por isso seja chamada de “a revolução esquecida”.
A revolução que não foi
A segunda data, 9 de julho, é
marcada pelo estopim de uma revolução que não faz jus ao nome. É
exaltada e cultuada como uma manifestação de defesa intransigente da
democracia, ela faz parte da criação de certa mitologia gloriosa para
São Paulo.
O evento, em realidade,
representa a sublevação da oligarquia cafeeira contra a Revolução de 30,
que a retirou do governo e se constituiu no marco definidor do Brasil
moderno.
Aquele processo não pode ser
visto apenas como uma tomada de poder por um punhado de descontentes.
Suas causas envolvem as contrariedades nos meios militares e tensões do
próprio desenvolvimento do país. A crise de 1929 acabara de chegar,
colocando em xeque o liberalismo reinante.
A Revolução consolidou a expansão
das relações capitalistas, que trouxe em seu bojo a integração ao
mercado – via Estado – de largos contingentes da população. O mecanismo
utilizado foi a formalização do trabalho.
As novas relações sociais e a
intervenção do Estado na economia – decisiva para a superação da crise e
para o avanço da industrialização - implicaram uma reconfiguração e uma
modernização institucional do país. A conseqüência imediata foi a perda
da hegemonia da economia cafeeira, centrada principalmente em São Paulo
e parte de Minas Gerais. Percebendo as mudanças no horizonte, as
classes dominantes locais foram à luta em 1932.
A locomotiva e os vagões
Explodiu então a rebelião armada
das forças insepultas da República Velha e da elite paulista, querendo
recuperar seu domínio sobre o país.
Tendo na linha de frente a
Associação Comercial e a Federação das Indústrias (FIESP), o levante
tinha entre seus líderes sobrenomes importantes do Estado, como
Simonsen, Mesquita, Silva Prado, Pacheco e Chaves, Alves de Lima e
outros. O movimento contou com expressivo apoio popular, uma vez que os
meios de comunicação (rádio, jornais e revistas) reverberaram as
demandas das classes altas.
A campanha que precedeu a
sublevação exacerbou uma espécie de nacionalismo paulista, incentivado
por grupos separatistas. Entre esses, notabilizava-se o escritor
Monteiro Lobato. A síntese da aversão local ao restante do país
expressava-se na difundida frase, que classificava o estado como “a
locomotiva que puxa 21 vagões vazios”, em referência às demais unidades
da federação.
Contradição em termos
O objetivo do movimento,
derrotado militarmente em 4 de outubro, era derrubar o governo
provisório de Getulio Vargas e aprovar uma nova Constituição. Daí a
criação do nome “revolução constitucionalista”, uma contradição em
termos. Revolução é uma ação decidida a destruir uma ordem estabelecida.
A expressão “constitucionalista” expressava uma tentativa recuperação
do status quo, regido pela Carta de 1891. Se é “constitucionalista”, não
poderia ser “revolução”.
Os sempre proclamados “ideais de
1932” são vagas referências à constitucionalidade e à democracia. Mas
não existia, por parte da elite, nenhuma formulação que fosse muito além
da recuperação da hegemonia paulista (leia-se, dos cafeicultores).
Exatos oitenta anos depois, o 9
de julho segue comemorado como a data magna do estado, uma espécie de 7
de setembro local. E os acontecimentos de 5 de julho de 1924 continuam
como páginas obscuras de um passado distante.
A elite paulista voltaria ao
poder em 1994, pelas mãos de Fernando Henrique Cardoso e do PSDB. Seu
mote foi dado no discurso de despedida do senado, em 1994: “Um pedaço do
nosso passado político ainda atravanca o presente e retarda o avanço da
sociedade. Refiro-me ao legado da Era Vargas, ao seu modelo de
desenvolvimento autárquico e ao seu Estado intervencionista”.
Os objetivos desse setor continuaram os mesmos, décadas depois: realizar a contra-Revolução de 30.
As tensões entre as datas – 5 e 9
de julho – expressam duas vias colocadas até hoje nos embates políticos
paulistas: a saída conservadora e a saída antielitista.
*Gilberto Maringoni,
jornalista e cartunista, é doutor em História pela Universidade de São
Paulo (USP) e autor de “A Venezuela que se inventa – poder, petróleo e
intriga nos tempos de Chávez” (Editora Fundação Perseu Abramo).