A disputa pelos restos da Líbia: “A Líbia é a próxima Somália?”
do redecastorphoto
Thomas C. Mountain, Counterpunch
Traduzido pelo pessoal da
Vila Vudu
Thomas C. Mountain
é o jornalista independente mais credenciado da África. Vive e
trabalha na Eritreia desde 2006. Suas entrevistas podem ser assistidas
no jornal Russia Today TV e PressTV (Irã).
Recebe e-mails em: thomascmountain@yahoo.com .
A
Líbia dá sinais de estar-se convertendo na próxima Somália, com grande
parte do país já controlado por milícias armadas de clãs ou tribos. Como
se viu acontecer na Somália, a Líbia está no processo de dividir-se,
criando-se a leste a Cirenaica, rica em petróleo, que já lançou sua
proclamação de independência de facto.
Trípoli,
a capital da Líbia, parece estar andando na direção de converter-se no
que foi Mogadishu, capital da Somália há 20 anos, com incontáveis
milícias bem armadas, de áreas das periferias urbanas, que se instalam
nas cidades e envolvem-se em infindáveis confrontos por território,
disputando os restos de poder.
O
único governo nacional real e modernizante que a Líbia jamais conheceu
foi o governo de Gaddafi, assim como o único governo modernizante que
houve na Somália foi o governo de Siad Barre.
Os
dois países foram criados pelo colonialismo italiano e passaram a
integrar o Império Colonial Italiano na África. Nenhum dos dois jamais
teve qualquer unidade histórica. Antes do colonialismo italiano, a Líbia
era algumas cidades-estado e as tribos, a maioria das quais
absolutamente nômades.
Antes
do colonialismo italiano, jamais existiu nem algum Rei da Somália nem
alguma Terra da Somália governada por conselho tribal ou clânico, chefes
ou conselhos de grandes chefes.
Nem
num país nem no outro jamais se constituiu nação, antes exatamente o
contrário. Mesmo assim, durante algum tempo, os dois países viveram bem –
por difícil que seja acreditar, no caso da Somália.
A Líbia antes e depois do"Bombardeio Humanitário" da OTAN
(Clique na imagem para aumentar)
Em 2011, a
Líbia foi destruída por bombardeio aéreo quase sem precedentes, com
mais de 10 mil ataques aéreos, que despejaram sobre os líbios cerca de
40 mil peças explosivas de alto poder de destruição, durante cerca de
oito meses. 40 mil bombas, matando cada uma duas pessoas em média, e, só
até aí, já seriam 80 mil líbios mortos pela OTAN em 2011. De uma
população muito pequena, de cerca de 6 milhões.
A
destruição que a OTAN provocou na Líbia equivale a cerca de 100 mil
ataques aéreos sobre a Grã-Bretanha, com cerca de 400 mil bombas que
matassem 800 mil britânicos em oito meses. Assim, afinal, se pode ter ideal realista da escala da desgraça que a OTAN levou à Líbia.
A
Líbia hoje exporta mais de 90% de sua produção de petróleo e gás de
antes da guerra, quase 2 milhões de barris/dia, de um dos melhores tipos
de petróleo que há no planeta. Para onde vão os quase 200 milhões de
dólares diários, 6 bilhões por mês, mais de 70 bilhões de dólares ao
final de 2012, permanece mistério quase absoluto.
Abdelhakim Belhadj
O
chefão da Al-Qaeda e dos rebeldes líbios que fez o serviço mais sujo
depois do bombardeio pela OTAN é o muitas vezes infame Abdelhakim
Belhadj, ex-comandante da Al-Queda no Iraque e capo da Al-Queda
no Norte da África. Hoje, comanda a maior, a mais militarmente bem
organizada e a mais eficiente milícia que opera em Trípoli. Sob seu
comando, operam milícias tribais de diferentes tamanhos e competências,
entre as quais as milícias de Zintan que mantêm preso Saif al Islam
Gaddafi.
Em
relações de uma paz difícil com essas milícias, está o Conselho
Nacional de Transição, chefiado, pelo menos em parte, por vários dos
ex-comandantes de Gaddafi.
Eleições
comandadas por um “governo” lá implantado pela OTAN não passam de
artifício para encobrir a ilegitimidade do atual regime, cujo único
projeto de governo é receber os 70 bilhões anuais da renda do petróleo e
os dividendos dos $100 bilhões do fundo soberano líbio depositado em
bancos ocidentais.
No
campo oposto, contra, ao mesmo tempo, Belhaj e o Conselho Nacional de
Transição, está o que se conhece como “Resistência Verde”, que a
imprensa-empresa ocidental chama de “militantes pró-Gaddafi”. São grande
parte da maior tribo que há na Líbia, os Warfalla, tribo da mãe de Saif
al Islam, e dos quais se diz que, aos poucos, começam a organizar
forças de autodefesa, para proteger suas comunidades contra ataques de
senhores-da-guerra e respectivas milícias.
Saif al Islam Gaddafi
Belhaj esteve preso na Líbia, onde foi torturado por gente que, hoje, circula entre os capi
do Conselho Nacional de Transição, entregue a eles como prisioneiro,
pela CIA-EUA, num dos programas pelos quais prisioneiros da CIA eram
entregues a outros países para serem interrogados. A tortura de Belhaj
só acabou quando Saif al Islam Gaddafi convenceu seu pai a perdoar
Belhaj e seus chefes, em troca de uma promessa de coexistência pacífica
que Belhaj imediatamente traiu.
O que se sabe é que Belhaj tem manifestado alguma espécie de benevolência em relação a Saif
al Islam, o que pode explicar por que o filho de Gaddafi continua vivo,
mantido a salvo, longe do alcance, ao mesmo tempo, da Corte
Internacional de Justiça e do Conselho Nacional de Transição, entregue à
proteção de aliados de Belhaj em Zintan.
É
altamente provável que Belhaj esteja operando para assumir o controle
sobre os bilhões do petróleo, mantendo-os fora do alcance do governo
imposto pela OTAN, ao mesmo tempo em que trabalha para vingar-se de seus
ex-torturadores, hoje no Conselho Nacional de Transição confinados em
Benghazi (quando não estão fora do país).
Para
conseguir o que almeja, Belhaj pode bem se interessar por aceitar um
acordo de cessar-fogo com a Resistência Verde, a qual também quer o fim
do governo do Conselho Nacional de Transição fantoche da OTAN.
Descartado o Conselho Nacional de Transição, poder-se-á talvez cogitar
de um acordo de paz entre Belhaj e Saif al Islam, para tentar pôr fim ao
fogo e ao sangue que ainda pinga dos sabres, na Líbia.
Mas
isso também pode não passar de delírio desejante, e depende de a OTAN
não intervir militarmente para defender “seu” Conselho Nacional de
Transição – ameaça presente que, por sua vez, pode explicar a paciência
de que Belhaj e seus aliados têm dado várias provas.
Quem
sabe? A verdade muitas vezes é mais estranha que qualquer ficção. E o
que hoje parece delírio desejante pode converter-se em realidade, amanhã
ou depois de amanhã. Mas, no que tenha a ver com a Líbia estar
caminhando na direção de converter-se numa nova Somália, sim, a história
indica precisamente esse rumo.
*GilsonSampaio