Quem dera ser um peixe
no Brasil de Fato
Enquanto
o Ceará sofre um dos períodos mais crueis de seca de todos os tempos,
Governo do Estado investe R$ 285,7 milhões em aquário
Andrea Dip e Ciro Barros,
A Pública
Na praia
de Iracema, área tradicional de lazer dos moradores de Fortaleza e
antigo centro da boemia da cidade, tapumes tomam vários metros da rua
dos Tabajaras, bem pertinho do mar e da histórica Ponte Metálica,
chamando a atenção de quem passeia pelo calçadão. Lá dentro, guindastes,
britadeiras e tratores trabalham em ritmo acelerado. Na praia, quase
não se vê mais banhistas. Isso porque, segundo moradores locais, a areia
e o mar contém pedaços de ferro e concreto restantes da demolição do
antigo prédio do Departamento Nacional de Obras Contra a Seca (DNOCS),
que dará lugar a um projeto ambicioso – há quem diga megalômano – do
governo do estado do Ceará: o Acquário Ceará, orçado em mais de 260
milhões de reais (a previsão atualizada pelo TCE é de mais de 285,7
milhões).
Desse
total, 210 milhões de reais são provenientes de um empréstimo da agência
do governo estadunidense Ex-Im Bank ao governo estadual – o restante de
recursos próprios do Estado – para financiar a obra de 21,5 mil metros
quadrados de área construída com previsão de 38 tanques com capacidade
para 15 milhões de litros de água, quatro pavimentos de áreas de lazer,
dois cinemas 4D, simuladores de submarino e túneis submersos. A previsão
é que a obra fique pronta a tempo da Copa do Mundo de 2014.
Apresentado
em 2010 com pompas e uma bela maquete no espaço cultural Dragão do Mar –
outra obra grande e polêmica de Fortaleza – o projeto logo despertou a
indignação de artistas, professores, historiadores e, principalmente,
dos 2.400 moradores da comunidade centenária Poço da Draga, próxima ao
local, que até hoje não tem saneamento básico. O discurso da Secretaria
de Turismo, de que o Acquário (se escreve assim mesmo) “deve dobrar o
fluxo turístico do Ceará e inseri-lo tanto no circuito mundial de grande
ícones arquitetônicos, quanto no de turismo científico, sendo o
terceiro maior aquário do mundo”, não convenceu a população que se
organizou no movimento “Quem Dera Ser um Peixe”,
paródia da música do cantor e compositor cearense Fagner, para
contestar o investimento público em uma obra faraônica enquanto o estado
do Ceará convive com um dos períodos de seca mais devastadores dos
últimos tempos.
“É um
trocadilho mesmo para dizer que os peixes são mais bem tratados do que
as pessoas”, explica a historiadora Andrea Saraiva, integrante do
movimento. “A gente critica a falta dos ritos básicos para um
investimento e a obra desse porte: desde a falta de discussão pública,
até a falta de informações claras e da transparência com relação às
contas públicas, por exemplo”, explica a historiadora, acrescentando que
a primeira providência da organização popular foi buscar informações
sobre o projeto.
“Qualquer
um que olhe para aquele projeto e para este espaço na praia de Iracema
vai perceber que para começar aquilo não cabe aqui! O prédio ao lado já
enfrenta rachaduras e infiltrações [por causa da obra]”, diz a
coreógrafa Andrea Bardawil, também integrante do Quem Dera, que resume
as irregularidades encontradas até agora: a falta de um estudo de
impacto arqueológico, obrigatório em obras de grande porte, lacunas e
imprecisões no EIA-RIMA, de acordo com especialistas, falta de licitação
para a obra – o que também é questionado pelo TCE – e o futuro incerto
da comunidade do Poço da Draga.
Ao
entrar com esses questionamentos e o pedido de paralisação da obra na
Justiça, porém, foi o movimento popular que acabou sendo processado pelo
Governo do Estado por “litigância de má fé”, amparado no fato de o
Iphan já ter entrado com uma ação com o mesmo pedido. Procurado, o Iphan
não quis se pronunciar sobre o assunto.
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Foto de divulgação do projeto do Acquario Ceará, que será instalado na Praia de Iracema, em Fortaleza (CE) |
Cadê a licitação?
No dia
26 de maio de 2011, a Secretaria de Turismo do Estado (SETUR), através
de seu titular, Bismarck Maia, anunciava no Diário Oficial do Estado do
Ceará a inexigibilidade de licitação para a construção do Acquário –
anunciando a contratação direta da International Concept Management INC.
(ICM-Reynolds) por R$ 244.335.000,00 (o equivalente, à época, a US$
150.000.000,00). Baseado no caput e no inciso II do artigo 25 da Lei de
Licitações, o governo cearense alegava que se tratava de uma contratação
de “serviços técnicos singulares” de uma empresa de “notória
especialização”.
Para
fundamentar essa argumentação, o governo cearense apresentou um Estudo
de Técnica, Qualidade e Preço feito por outra empresa, a Imagic!,
afirmando que a ICM-Reynolds havia construído 215 dos 250 “aquários de
grande porte” do mundo, segundo a Waza (World Association of Zoos and
Aquariums). A Imagic!, que realizou esse estudo, pertence ao arquiteto
Leonardo Fontenele – autor do projeto arquitetônico do Acquário Ceará
pelo qual diz ter recebido R$ 1,8 milhão.
Sete
dias depois do anúncio da SETUR, no dia 2 de junho de 2011, o governo
estadual enviou à Assembleia Legislativa do Estado do Ceará o pedido de
aprovação de um empréstimo de US$ 105 milhões junto ao Ex-Im Bank (sigla
para Export-Import Bank of the United States), uma agência
governamental que atua como intermediária entre bancos e tomadores de
empréstimos com o objetivo de fomentar exportações dos Estados Unidos:
ao menos 50% do dinheiro emprestado através dessa agência tem de ser
gasto na importação de produtos americanos.
O
empréstimo foi aprovado na Assembléia Legislativa cearense, apesar dos
protestos de algumas vozes da oposição contra o fato de a votação
ocorrer depois de já definida a contratação da ICM-Reynolds por
inexigibilidade. “Há de se perguntar, vamos votar o que se as coisas já
estão definidas antes da votação? Portanto eu acho lamentável esse
episódio”, disse na saída da votação o deputado estadual Heitor Ferrer
(PDT) à TV Jangadeiro. Mesmo na base aliada do governo estadual, a
deputada estadual Eliane Novais (PSB) se mostrou contrária à votação e à
construção do aquário: “Nós temos outras prioridades. Nós podemos
investir esse mesmo dinheiro, por exemplo, no sistema de esgotamento
sanitário de Fortaleza, que está obsoleto”, disse, também na saída do
pleito. A votação virou a lei 14.937, de 22 de junho de 2011, que
autorizou o poder executivo estadual a contrair o empréstimo através da
agência dos Estados Unidos.
TCE acata denúncia dos movimentos sobre irregularidades na licitação
Inconformados
com esse desfecho, os militantes do movimento Quem Dera Ser Um Peixe
reuniram tudo o que conseguiram obter de informações sobre o projeto e o
empréstimo para a construção do Acquário Ceará e, no dia 7 de abril de
2012, enviaram uma denúncia com as irregularidades encontradas ao
Tribunal de Contas do Estado do Ceará (TCE-CE). Oito meses depois, em
dezembro de 2012, a Comissão Especial de Acompanhamento e Fiscalização
de Obras de Grande Porte do TCE apresentou o Relatório de Inspeção Nº
0011/2012, confirmando e reforçando diversos pontos apresentados na
denúncia do movimento popular, principalmente em relação à contratação
da ICM-Reynolds por inexigibilidade, que não estaria de acordo com os
parâmetros estabelecidos na Lei de Licitações.
“O
próprio governo do estado admite que há outras empresas, além da
contratada, que constroem aquários (…). Verifica-se, portanto, que as
próprias fontes oficiais sobre o aquário admitem a possibilidade de
competição (…) Conclui-se que não é cabível a utilização do instituto da
inexigibilidade para a contratação da empresa ICM, pois a licitação
para a realização da obra é obrigatória tendo em vista a possibilidade
de competição”, afirmava a denúncia. O relatório do TCE concorda:
“Registre-se que a contratação da ICM-Reynolds não tem guarida normativa
na eleita hipótese de inexigibilidade de licitação (…), uma vez que
existem diversos fornecedores de materiais e equipamentos para
oceanários e aquários no mundo”.
O TCE
vai além: “É forçoso concluir que há indícios de irregularidades na
contratação da empresa ICM-Reynolds para fornecer todos os bens,
serviços e materiais para os equipamentos e a construção do
empreendimento ‘Acquário Ceará’. Essa contratação deveria ter sido
precedida de um processo licitatório, que permitisse à Administração
Pública a possibilidade de escolher a proposta mais vantajosa, não sendo
cabível, desta forma, a inexigibilidade (…)”. Para o TCE, a
“argumentação da natureza singular da ‘construção’ Acquário” – por parte
do governo – “igualmente, não se sustenta, haja vista ser apenas ‘mais
uma obra’ dentre as centenas de aquários do mundo.”
“É bom
destacar que as informações, que subsidiaram a escolha e contratação
direta da empresa ICM-Reynolds, não restaram devidamente comprovadas”,
continua o documento produzido pelo Tribunal de Contas a respeito do
estudo da Imagic!, do arquiteto Leonardo Fontenele, que fundamentou a
argumentação do governo. O que, segundo o movimento Quem Dera Ser Um
Peixe, deve-se a um “conflito de interesses”: “É um absurdo que o mesmo
cara responsável pelo projeto arquitetônico do aquário, o Sr. Fontenele,
tenha também ficado responsável pela qualificação técnica dele. É óbvio
que há conflito de interesses. Fora que a empresa dele não tem a menor
experiência na construção de aquários, é só olhar o portfólio da
Imagic!”, argumenta a historiadora Andrea Saraiva, integrante do Quem
Dera Ser Um Peixe.
No
relatório, o TCE desmontou a argumentação principal do estudo da
Imagic!, de que dos 250 grandes aquários do mundo 215 foram feitos pela
ICM-Reynolds: “A Comissão de Fiscalização não conseguiu aferir a
participação da ICM-Reynolds na construção das obras citadas pela SETUR,
já que essas informações não estão em seu portfólio, no sítio da
internet, nem anexas no processo de inexigibilidade”. Após a análise do
site da World Association of Zoos and Aquariums (Waza), o relatório
aponta que não há referência sobre a participação da ICM, ou de qualquer
outra empresa, na concepção, projetos ou construção dos aquários no seu
sítio eletrônico”. O TCE vai além, afirmando que o Georgia Aquarium, na
cidade de Atlanta (EUA), citado pelo estudo da Imagic! como obra da
ICM-Reynolds foi, na verdade, feito pela empresa Brasfield & Gorrie
of Kennesaw. Por fim, conclui que “a manifestação de inviabilidade da
competição é dubitável, uma vez que, a princípio, não há comprovações
que fundamentem que a ICM-Reynolds seja a mais apta para a construção do
Acquário Ceará. Pelo contrário, (…) os maiores e mais modernos aquários
do mundo foram construídos por outras empresas (…)”.
O empréstimo questionado
Quanto
ao empréstimo contraído pelo governo cearense junto ao Ex-Im Bank, o
movimento Quem Dera Ser um Peixe acusa: o contrato com a ICM foi feito
por inexigibilidade para que o governo pudesse tomar o empréstimo com a
agência americana. Segundo a denúncia, as condições do empréstimo
contrariam a Lei de Licitações brasileira ao estabelecer que 50% dos
recursos sejam gastos em produtos dos Estados Unidos, pois o inciso I,
do primeiro parágrafo da Lei estabelece: “é vedado aos agentes públicos
admitir, prever, incluir ou tolerar, nos atos de convocação, cláusulas
ou condições que comprometam, restrinjam ou frustrem o seu caráter
competitivo, inclusive nos casos de sociedades cooperativas, e
estabeleçam preferências ou distinções em razão da naturalidade, da sede
ou domicílio dos licitantes”. Ou seja, caso ocorresse a licitação ela
estaria em conflito com as condições estabelecidas pelo Ex-Im Bank.
O
movimento Quem Dera Ser Um Peixe também acusa o governo cearense de ter
infringido o artigo 7º da Lei de Licitações, que estabelece que os
órgãos públicos têm que ter definidos todos os recursos para pagamento
de obras e serviços antes da realização de licitações e contratações por
inexigibilidade – o empréstimo com o Ex-Im Bank foi firmado depois da
contratação da ICM-Reynolds. Mas, segundo o promotor Gleydson Alexandre,
do Ministério Público de Contas do Ceará, que pediu para realçar que
falava “em tese”, sem os autos do processo na mão, “isso ainda carece de
uma investigação e de uma avaliação por parte do Tribunal”.
Após o
relatório do TCE, a 7ª Inspetoria de Controle Externo (ICE) do TCE-CE
ficou encarregada de fazer uma análise das questões que envolvem a obra
do Acquário Ceará. No dia 7 de maio passado, a 7ª ICE determinou um
prazo de 30 dias para a manifestação do governo cearense acerca do
relatório do TCE.
Cadê o estudo arqueológico?
Também o
EIA-RIMA (Estudo e Relatório de Impacto Ambiental) do Acquário feito
pela Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace) é inconsistente
e impreciso, segundo o biólogo Daniel Santos da Silva. A começar pelo
fato de o estudo ter sido feito depois da demolição do prédio do DNOCS
para dar lugar ao empreendimento: “O EIA já deveria ser elaborado para a
demolição do prédio do DNOCS seguida da construção do “Acquário”, ou
seja, não poderia ser permitida a demolição – pelos órgãos ambientais –
antes da apresentação de um estudo que contivesse não só os impactos da
demolição, como também, da construção e utilização do aparelho em
citado”.
Outro
ponto preocupante, na avaliação do especialista, é o risco de mistura
acidental das águas, no caso de a maré atingir o calçadão que margeia a
estrutura. Ele explica que a análise da série de marés que consta do EIA
não é confiável porque se refere apenas a maio e junho de 1995: “Os
dados refletem um restrito espectro de tempo e podem estar completamente
defasados, tendo em vista que se referem a medições feitas há mais de
15 anos”, diz o biológo. No caso de haver entrada de água do mar no
Acquário, isso aumentaria o risco de bioinvasão, o que seria devastador
para os ecossistemas nativos. Aliás, segundo um comunicado obtido pelo
Quem Dera Ser um Peixe através da Lei de Acesso à Informação, a fonte de
abastecimento hídrico do empreendimento ainda não havia nem sido
decidida. Quanto ao descarte de animais mortos e das águas do Acquário,
não há nada previsto no EIA, que se limita a pedir atenção para o
assunto. O Copa Pública pediu essas informações à Setur , mas não obteve
resposta.
A falha
mais grave do EIA-Rima porém, que inclusive fez com o Ministério Público
Federal recomendasse a paralisação da obra em 2012, foi a falta de
estudo arqueológico, necessário a qualquer obra deste porte de acordo
com a resolução 001/86 do CONAMA. A obra chegou a ser paralisada durante
83 dias por causa da recomendação do MPF mas o Governo do Estado
conseguiu reverter a determinação. “Eles justificaram dizendo que lá já
era uma área ocupada e portanto não havia necessidade de um estudo
arqueológico. Assim conseguiram uma autorização judicial para dar
andamento” explica a procuradora do Ministério Público Federal no Ceará,
Nilce Cunha Rodrigues.
Em
fevereiro de 2013, o MPF entrou com outra ação civil pública, alegando
que deveria ser o Ibama e não a Semace o responsável pelo licenciamento
ambiental. “Nós consideramos que o impacto da coleta e dispêndio da água
utilizada é muito grande na biota marinha, algo difícil de mensurar, e
indicamos que quem deve fazer este licenciamento é o Ibama. Mas o juiz
não concedeu a liminar para paralisar a obra até que esse licenciamento
fosse revisto” explica Nilce. “Houve um agravo para o Tribunal da 5a
região e estamos aguardando. Não tendo a liminar, a obra continua. O
problema é que se ficar decidido que o licenciamento é nulo, o prejuízo
já foi causado!”, observa a procuradora.
E o Poço da Draga, como fica?
“Desde
que me lembro, a gente sofre ameaças de remoção por estar em uma área
nobre, perto da praia. O medo agora aumentou com esse Acquário. Você
acha que eles vão querer uma coisa chique dessas ao lado de uma
comunidade carente?”, questiona Ivoneide Gois, 48 anos de idade, todos
vividos na comunidade do Poço da Draga, que acaba de completar 107 anos
de existência. Apesar de não haver comunicação oficial sobre uma
possível remoção da comunidade de 2400 moradores da praia de Iracema,
eles temem uma investida surpresa.
E há
motivos mais concretos para esse receio do que as especulações
levantadas pela localização da comunidade carente. Segundo o geólogo e
morador do Poço, Francisco Sérgio, a regulamentação da comunidade como
Zona Especial de Interesse Social (Zeis) já deveria ter sido
oficializada mas foi cancelada há pouco tempo: “É claro que isso aumenta
nosso medo! Mas a comunidade, assim como o Acquário, estão em área de
União e o Poço é parte da cultura e história de Fortaleza. Não vai ser
tão fácil tirar a gente daqui”.
Ivoneide
faz a comparação irônica e inevitável: “Enquanto o governo vai gastar
esse dinheiro e mais de 15 milhões de litros de água com o Acquário, o
Poço da Draga não tem saneamento básico. Quem dera ser um peixe, né?”
Fotos: reprodução
*Mariadapenhaneles