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Misturar igreja com política partidária “extrapola a lei e o ideário republicano”
Misturar igreja com política partidária “extrapola a lei e o ideário republicano”
Um dos
principais estudiosos do neopentecostalismo no Brasil, o sociólogo
Ricardo Mariano, não vê novidade na aproximação entre a Igreja
Universal, o PRB e a candidatura de Celso Russomano, líder nas pesquisas
de intenção de voto em São Paulo. Na entrevista abaixo, ele observa que
a Universal está envolvida com a política desde o final da década de
1980, participando diretamente de campanhas majoritárias e também para
vereadores e deputados estaduais e federais, além de patrocinar a
formação de partidos.
A
principal novidade deste ano, segundo o especialista, é o acirramento da
disputa política, partidária e midiática entre evangélicos e
carismáticos, o que resulta na ocupação religiosa da área pública num
ritmo cada vez maior. Na avaliação dele, é um quadro que contraria o
ideario republicano, que pressupõe a separação entre igreja e Estado,
entre religião e política.
Mariano é doutor em sociologia pela USP e autor do livro Neopentecostais: Sociologia do Novo Pentecostalismo no Brasil. Ele coordena o o Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul.
A seguir, os principais trechos da conversa com o estudioso.
Como o senhor vê o enorme destaque dado às igrejas evangélicas nas eleições deste ano?
O
ingresso organizado dos evangélicos na política não é novo. Desde a
segunda metade da década de 1980 ficou evidente o interesse desses
religiosos pela política partidária, muito ávidos por recursos públicos,
emissoras de rádio e TV, barganhas e alianças com candidatos e partidos
e governantes. Eles participaram dos debates da Assembleia
Constituinte, ajudaram o José Sarney a ampliar o mandato de quatro
para cinco anos – em troca de concessões de emissoras e rádio e verbas
públicas. No segundo turno das eleições de 1989, Fernando Collor de
Mello conseguiu o apoio esmagador dos pentecostais contra a candidatura
lulopetista. De lá para cá, a instrumentalização recíproca entre esses
grupos, sobretudo pentecostais e neopentecostais, com candidatos,
partidos e governantes tem se intensificado.
Em 1989 eles fizeram campanha contra Luiz Inácio Lula da Silva.
No
segundo turno. No primeiro, como existiam vários candidatos, dentro de
um leque variado, que incluía Lula, Collor, Mário Covas, Ulisses
Guimarães, Leonel Brizola, o ativismo eleitoral dos evangélicos não
apareceu. Nenhum candidato conseguiu galvanizar seu apoio. No segundo
turno, porém, havia o temor, estimulado pela candidatura do PRN (extinto partido de Collor), de
que Lula, numa aliança diabólica com o setor progressista da Igreja
Católica, iria tolher a liberdade religiosa. Falava-se que os templos
seriam transformados em armazéns e que os evangélicos seriam perseguidos
e fuzilados em paredões.
Esses boatos tiveram repercussão nas outras vezes em que Lula se candidatou?
Sim. O
mesmo temor apareceu em 1994 e 1998. Foi só em 2002, no segundo turno da
eleição presidencial, que o PT conseguiu apoio evangélico pra valer
entre igrejas pentecostais. A Igreja Universal do Reino de Deus declarou
apoio a Lula, enquanto a Convenção Geral da Assembleia de Deus do
Brasil, do Belenzinho, em São Paulo, ficou ao lado de José Serra (PSDB).
O líder da Assembleia era malufista, mas, quando Paulo Maluf passou a
ter presença rarefeita nas disputas eleitorais, ele passou a apoiar os
candidatos do PSDB. Tem feito isso sistematicamente. Nunca apoiou o PT,
nem vai apoiar.
Qual a principal novidade que o senhor detecta em anos mais recentes?
A
novidade é que a ala carismática católica agora também está empenhada na
eleição de candidatos com identidade católica. Uma vez que o Vaticano
proíbe o lançamento de candidaturas de padres e bispos, leigos estão
sendo estimulados a se candidatar com plataformas baseadas na moral e na
doutrina social da igreja. O crescimento pentecostal – do ponto de
vista demográfico, institucional, partidário, político e midiático –
levou a Igreja Católica a uma contraofensiva, a uma concorrência tanto
religiosa, quanto midiática e política. Essa concorrência entre
pentecostais e católicos estimulou a ocupação religiosa da esfera
pública.
Em que momento o senhor detecta o início dessa concorrência?
Até o
início dos anos 90, a Igreja Católica não tinha emissoras de TV, muito
menos redes. Mas, a partir de 1993, com a criação da Rede Vida, o quadro
mudou: hoje os católicos têm três redes nacionais de TV e um número
crescente de emissoras. Vale notar que a Igreja Católica já tinha a
maior rede de rádios no País. Houve, portanto, um estímulo ao avanço na
mídia eletrônica, sobretudo na TV.
E isso extrapolou para a política?
Sim. Há
um ativismo crescente nas eleições e na política partidária, ainda que,
tradicionalmente a Igreja Católica se apoie mais em seu lobby para a
defesa de interesses institucionais e morais.
Como vê essa ocupação religiosa da esfera pública?
Olhando as
principais ideologias do século 19, o socialismo, o positivismo, o
liberalismo, o republicanismo e outras, observamos que todas propõem a
autonomia do Estado e da política em relação à religião. O socialismo e o
positivismo previam, inclusive, o fim da religião. O liberalismo e o
republicanismo sempre tiveram como meta o estabelecimento de uma
autonomia recíproca entre Estado e igreja, religião e política. Havia
um esforço para a criação de valores laicos, seculares, em torno da
cidadania, da república, das liberdades democráticas.
E o caso brasileiro?
Nossa
república também nasceu sob esse signo. O modelo que adotamos foi um mix
dos modelos francês e americano, com separação entre igreja e Estado.
Até o fim do Império, o catolicismo era a religião oficial do Estado e
também era tutelada por ele, o que significa que não tinha plena
liberdade de ação. Com a constituição republicana ela passa a ter
liberdade de ação e adquire um poder imenso, na Primeira República. Para
a Constituinte de 1934 foi criada a Liga Eleitoral Católica, que elegeu
muitos representantes da própria igreja. Em seguida, no texto
constitucional, ela conseguiu uma série de privilégios. Um dos mais
importantes foi o princípio de colaboração recíproca entre igreja e
Estado em benefício do chamado bem comum. Isso foi mantido na
Constituição de 1988, embora com outra formulação. No mesmo artigo em
que aparece a separação entre igreja e Estado, vedando a concessão de
subsídios e a realização de alianças com grupos religiosos, aparece esse
princípio da colaboração. Nos anos 30, 40, 50 e outros, esse princípio
de colaboração recíproca significou sobretudo uma série de subsídios
para escolas católicas, hospitais, obras assistenciais.
Não havia pluralismo religioso.
Nas
últimas décadas, sobretudo a partir dos anos 80, é que o pluralismo
religioso passa a vigorar de fato no Brasil e a Igreja Católica se vê
tendo que competir no mercado religioso. Com o avanço pentecostal, os
privilégios concedidos aos católicos começam a ser contestados.
Não há reação a esse avanço do religioso sobre o público?
Há uma
contestação crescente de setores laicos ou seculares da sociedade
brasileira, envolvendo parte da imprensa, educadores, cientistas e
ateus. Eles são minoritários mas estão se organizando. Os movimentos
feministas e homossexuais aparecem entre os principais rivais dessa
crescente ocupação religiosa da esfera pública, sobretudo no campo
político partidário. Não é um movimento articulado, que junte todos
esses grupos e movimentos, mas há uma grita crescente, defendendo
sobretudo a laicidade do Estado. O mote central de todos os
contestadores é a defesa da laicidade.
Em São Paulo, nos últimos dias, surgiram notícias de igrejas transformadas em comitês eleitorais.
Isso não
é de agora. Há algum tempo temos visto a transformação de templos em
comitês eleitorais e fundação de partido por igreja. O Celso Russomano,
em São Paulo, é filiado ao PRB, partido que foi criado pela Igreja
Universal. O presidente do partido é da Universal e toda a base de cabos
eleitorais dessa candidatura é de gente da Universal. São fiéis,
pastores, obreiros da Igreja. É um negócio impressionante: você tem um
igreja que criou um partido, que tem uma concessão pública, uma rede de
TV, a segunda mais importante do País, apoiando um candidato que tinha
um programa nessa TV e que foi lançado por esse partido.
Como vê isso?
Legalmente,
as igrejas estão proibidas de dar apoio eleitoral. Mas isso tem sido
feito. A Igreja Universal apoiou o Collor em 1989 e teve problemas com a
Justiça Eleitoral. Isso ocorreu também nas campanhas de Crivella (Marcelo Crivella, bispo da Universal, atual ministro da Pesca),
no Rio, para prefeito e governador. Não é de agora que a
Universal funciona como comitê, às vezes para candidaturas majoritárias,
como nos casos de Collor, Crivella, Russomano, mas, sobretudo, para
seus candidatos a vereador, deputado estadual e federal. A
Universal elege uma bancada própria, composta por representantes de seu
partido e de outras legendas. Quando se pensa na ideia de República, que
pressupõe a separação entre igreja e Estado, entre religião e política,
essa mistura que estamos vendo extrapola a lei e o ideario republicano.
*Mariadapenhaneles