Decisão de obrigar estudantes de medicina a servir ao SUS não é só correta e necessária - é fundamental para o processo civilizatório brasileiro
por Leandro Fortes —
Em meio às atabalhoadas reações do governo às manifestações de rua, da
constituinte exclusiva ao plebiscito natimortos, a presidenta Dilma
Rousseff se saiu muito bem ao mexer na estrutura de dominação social
brasileira com essa história de botar os formandos em medicina para
trabalhar no Sistema Único de Saúde, a partir de 2015. Trata-se de uma
discussão antiga e necessária, mas que, até agora, ninguém tinha tido
coragem de levar adiante. Pela reação das corporações de médicos e da
nação de coxinhas de jaleco que se manifesta nas redes sociais, sem
falar nos suspeitos de sempre da mídia, tudo leva a crer que Dilma
mandou muito bem nesse assunto.
Todo mundo sabe que, no Brasil, as universidades públicas sempre foram
um privilégio da classe média e dos ricos, quadro que só foi levemente
modificado na última década graças às políticas de cotas raciais e
sociais implementadas, sobretudo, no governo Lula. Lembro que, durante
os governos do professor, sociólogo, intelectual, PhD e, agora, imortal
da Academia de Letras Fernando Henrique Cardoso, a criminosa expansão do
ensino superior privado levou essa distorção ao paroxismo.
Na
Era FHC, nenhuma universidade federal foi criada, mas, em
contrapartida, milhares de fábricas de diplomas se espalharam pelo
território nacional para, paradoxalmente, abrigar os estudantes pobres e
trabalhadores. Pior, com um sistema de crédito estudantil bolado por
uma tecnocracia cruel, neoliberal, que comprometia a renda do infeliz
até pelo menos quatro anos depois da formatura. Nos anos 1990, chegou-se
ao cúmulo de que, em certo momento, nas universidades federais, a
grande discussão dos estudantes não era sobre a qualidade do ensino, mas
a falta de vagas nos estacionamentos das faculdades!
Na contramão de muita gente, sou favorável ao serviço militar
obrigatório, pois se todos usufruem da pátria, é também dever de todos
defendê-la. Li e vivi o suficiente, em quase meio século de vida, para
saber que a paz é um muro de cristal e o preço da liberdade, como diz o
velho axioma, é a eterna vigilância. Acho, apenas, que a doutrina
militar brasileira, encapsulada ainda na Guerra Fria, tem que ser
revista e refeita para que o conceito de defesa nacional não esteja
arraigado apenas ao uso da farda. No mais, não é justo que a massa de
recrutas brasileiros continue formada quase que exclusivamente por
meninos pobres e negros.
Também gosto de lembrar que o voto não é obrigatório no Brasil, mas,
sim, o comparecimento às urnas. O cidadão pode ir lá, no local de
votação, e não votar em ninguém, simples assim. As restrições a essa
obrigatoriedade de deslocamento se parecem muito com a banalização da
crítica aos parlamentos, baseada em palavras de ordem que escamoteiam o
efeito manada embutido nesse tipo de manifestação. Isso porque não há um
único parlamento brasileiro (municipal, estadual e federal) que não
seja composto por políticos escolhidos em eleições livres. Se são todos
corruptos e ladrões, o são, também, aqueles que os elegeram.
Não sei se a presidenta foi correta ao estender a obrigatoriedade de
serviço ao SUS para os estudantes de medicina das faculdades privadas,
embora não veja nisso nenhum bicho-de-sete-cabeças. Talvez fosse o caso
de impor a regra somente àqueles que estudaram com bolsa do Estado, como
os beneficiários do Prouni.
De qualquer maneira, o fato é que esse poderá ser o primeiro passo para a
construção de uma nova e essencial cultura de solidariedade cidadã com
resultados óbvios para o processo civilizatório nacional. Mais à frente,
espero, será possível estabelecer regras para que todo formando de
universidade pública seja obrigado, em algum momento de seu curso, ou
mesmo depois de receber o diploma, a prestar algum serviço para a
sociedade que financiou seus estudos.
Ah, e que venham, também, os seis mil médicos cubanos.