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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

segunda-feira, janeiro 11, 2016

Bowie encenou a própria morte e enganou o mundo direitinho




por : Kiko Nogueira

Nada como más notícias para tirar alguém das férias. Logo pela manhã, um amigo escrevia um postem algum lugar dizendo que a Terra fica vazia sem um alienígena como Bowie.
Bowie morreu? Espera um pouco.


Grandes artistas têm esse estranho dom da proximidade, da empatia imediata, de entrar na sua casa, na sua alma e falar para você o que você não ousa falar. É hora de ouvir todos os lados Bs, aqueles que você desdenhou por não trazerem “nada de novo” (“o melhor do cara ficou nos anos 70” etc etc.)
 
Escuto agora “Valentine’s Day”, de 2013, pensando na frase do meu amigo, em como ficamos mais pobres e em como Bowie produziu e produziu até o final. Foda-se Ziggy Stardust, ao menos por ora.
Dane-se “Modern Love”.
(Viva Ziggy, viva Modern Love, viva Ashes to Ashes, viva tudo isso agora e até nunca mais cansar de novo).
Antena da raça. Bowie, no rock, não encontrou paralelo. Sempre algumas quadras adiante, mas nunca de modo deixar que isso prejudicasse sua carreira. Avant garde espetacularmente comercial.
Assumiu a bissexualidade num tempo em que ninguém era bissexual, ao contrário de hoje.
 

Incorporou personagens diferentes. O hippie de cabelo encaracolado do início. Posou de saia na capa de “The Man Who Sold The World”. Matou o extraterrestre Ziggy depois de estourar. Quem tem
coragem de mudar assim?
Virou cantor de soul, lançando uma obra prima chamada “Young Americans”. No álbum seguinte já tinha encerrado esse ciclo. Encarnou um estranho “Thin White Duke”. Exilou-se em Berlim para produzir a trilogia “Heroes”, “Lodger” e “Low”. Jamais parado no mesmo lugar.
Teve o estouro mundial merecido em 1980, com os hits de “Let’s Dance”.
Quando a fonte dos hits secou — porque ela seca para todos —, fez pelo menos um disco espetacular, “Reality”, com uma versão matadora de “Try Some, Buy Some”, o libelo religioso antidrogas de George Harrison.
Bonito, dono de uma voz de barítono única, gênio, capaz de ir do punk a Nina Simone com classe e propriedade, do eletrônico ao Queen, cantou sobre tudo.
O vício em cocaína, sexo, viagens espaciais, Berlim, nazistas, monstros, herois, amor, ódio, o irmão que se matou, deus e o diabo. Sua influência está aqui, ali, em todo lugar do pop.
Suas últimas canções falam, finalmente, da morte. David Bowie estava com câncer há dezoito meses.
“Look up here, I’m in heaven”, diz ele em “Lazarus”.
O vídeo é repleto de imagens alusivas à morte. Ele aparece preso a uma cama de hospital, seu corpo frágil tremendo, os olhos cobertos de bandagens.
Transformou sua despedida numa obra de arte, como se esperava. Seu velho produtor Toni Visconti chamou de “presente de despedida”. “Ele sempre fez o que quis”.
“Lazarus” — uma homenagem ao homem que Jesus ressuscita após quatro dias — foi programado para ser lançado agora. Um coup de grace de Bowie.
No vídeo, enquanto ele levita sobre o colchão, uma mão surge de debaixo da cama e outro Bowie surge: mais forte, livre, dançando no quarto.
Termina assim: “I’ve got scars that can’t be seen. I’ve got drama, can’t be stolen. Everybody knows me now.
This way or no way, you know, I’ll be free. Just like that bluebird, Oh I’ll be free.”
 


Numa tradução livre: “Eu tenho cicatrizes que não podem ser vistas. Eu tenho drama que não pode ser roubado. Todo o mundo me conhece agora. Desta maneira ou de maneira nenhuma, eu serei livre.
Como aquele pássaro azul, eu serei livre”.
 

Foda-se Ziggy Stardust. Fodam-se as férias. Bowie está livre. Morreram os medíocres. Vida longa a David Bowie..

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