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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

quinta-feira, maio 19, 2011

Um país pouco cordial

Preconceito descortina país pouco cordial 
Marcelo Semer
De São Paulo

Homofobia, xenofobia, sexismo. Ojeriza ao pobre e um renascido antissemitismo.

Houve de tudo um pouco no cardápio tétrico dessa última semana de nenhum orgulho e muito preconceito.

Onde foi parar, afinal, aquele Brasil, um país de todos?

O deputado Jair Bolsonaro acusa seus colegas de querer transformar crianças em gays - como se uma campanha contra a intolerância pudesse controlar orientações sexuais.

Pelo sim, pelo não, a bancada religiosa impede a aprovação da lei que criminaliza a homofobia, para que os portadores das palavras de fé e esperança possam gozar da liberdade de disseminar preconceitos.

Parece piada, mas não é.

E o que é piada nem parece.

Rafinha Bastos tenta em vão fazer rir ao dizer que "toda mulher que se diz vítima de estupro é feia". O estuprador, então, não merece pena, mas um abraço. Ria-se com um barulho desses.

Rafinha, o homem mais influente do Twitter, segundo o nada desprezível New York Times, não está sozinho nesse novo humor bolsonaro, que busca agredir e chocar, custe o que custar.

Seu colega Danilo Gentili tuíta a um milhão e meio de seguidores grotesca piada com o Holocausto, para justificar uma imaginária aversão de judeus a vagões, sem compreender o que havia de preconceito de classe no repúdio ao Metrô em Higienópolis.

Moradores do bairro fizeram um abaixo-assinado contra a estação Angélica, e uma psicóloga descortinou em entrevista o principal motivo da rejeição: a chegada ao bairro de uma "gente diferenciada" que acompanha estações de Metrô - drogados, mendigos e, enfim, faltou acrescentar: pobres de todo o gênero.

A reação positiva e bem-humorada ao preconceito se deu com um churrasco-manifesto diante do luxuoso shopping Higienópolis, sábado último, em uma mobilização espontânea e sem líderes, provocada a partir de um convite que se alastrou no Facebook.

Mas nem o próprio Facebook escapou incólume da semana trágica.

O site de relacionamentos censurou a foto de perfil de uma mulher amamentando.

A imagem era justamente o ponto de partida para a campanha contra a proibição de amamentar em público, tomada pelo instituto Itaú Cultural. A campanha acabou resultado em um "mamaço" diante da própria instituição.

Curioso como o sexismo convive bem com a exposição erótica, mas não com o ato de saúde e carinho que é mais pura expressão do amor materno. Corpo nu da mulher só como objeto, jamais como sujeito.

Infelizmente, porém, nem todos os atos de preconceito ganharam a mesma indignação na rede social.

O jornal O Estado de S. Paulo publicou reportagem mostrando que com o crescimento de roubos no bairro do Morumbi, a Polícia Militar decidiu isolar a favela de Paraisópolis com uma operação chamada Saturação.

Os detalhes do tratamento daquela "gente diferenciada" são simplesmente impactantes: bloqueios da entrada da favela das 7h às 23h, três incursões diárias por suas vielas e ladeiras e soldados armados com potentes metralhadoras revistando as pessoas que entram ou saem da comunidade.

Os desabafos dos moradores não repercutiram no Facebook, mas merecem destaque: "Isso só serve para marcar todos como bandidos"; "Fui levar meu filho à escola com um monte de soldados e cavalos cercando minha rua".

Já imaginou se isso acontecesse em Higienópolis?

Se todas as pessoas da cidade são revistadas quando saem de suas casas, vivemos em um Estado Policial. Mas se apenas os favelados o são, vivemos um Estado ainda pior. Naquele que discrimina a suspeita, e em decorrência da maior vigilância, criminaliza a pobreza.

Alguém duvida que uma Operação Saturação, próxima a badaladas casas noturnas, não resultaria também em inúmeros crimes vinculados a entorpecentes?

Ou uma revista casa a casa em ruas dos Jardins não levaria à apreensão de armas ilegais, como muitas vezes se faz nas comunidades com mandados de busca coletivos?

A presunção de culpa não está distribuída igualmente pela sociedade.

E não está, porque, afinal de contas, a presunção de culpa é nada mais nada menos do que a mais fiel tradução do preconceito.


Marcelo Semer é Juiz de Direito em São Paulo. Foi presidente da Associação Juízes para a Democracia. Coordenador de "Direitos Humanos: essência do Direito do Trabalho" (LTr) e autor de "Crime Impossível" (Malheiros) e do romance "Certas Canções" (7 Letras). Responsável pelo Blog Sem Juízo.
* O Esquerdopata

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