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Ser de esquerda é não aceitar as injustiças, sejam elas quais forem, como um fato natural. É não calar diante da violação dos Direitos Humanos, em qualquer país e em qualquer momento. É questionar determinadas leis – porque a Justiça, muitas vezes, não anda de mãos dadas com o Direito; e entre um e outro, o homem de esquerda escolhe a justiça.
É ser guiado por uma permanente capacidade de se estarrecer e, com ela e por causa dela, não se acomodar, não se vender, não se deixar manipular ou seduzir pelo poder. É escolher o caminho mais justo, mesmo que seja cansativo demais, arriscado demais, distante demais. O homem de esquerda acredita que a vida pode e deve ser melhor e é isso, no fundo, que o move. Porque o homem de esquerda sabe que não é culpa do destino ou da vontade divina que um bilhão de pessoas, segundo dados da ONU, passe fome no mundo.
É caminhar junto aos marginalizados; é repartir aquilo que se tem e até mesmo aquilo que falta, sem sacrifício e sem estardalhaço. À direita, cabe a tarefa de dar o que sobra, em forma de esmola e de assistencialismo, com barulho e holofotes. Ser de esquerda é reconhecer no outro sua própria humanidade, principalmente quando o outro for completamente diferente. Os homens e mulheres de esquerda sabem que o destino de uma pessoa não deveria ser determinado por causa da raça, do gênero ou da religião.
Ser de esquerda é não se deixar seduzir pelo consumismo; é entender, como ensinou Milton Santos, que a felicidade está ancorada nos bens infinitos. É mergulhar, com alegria e inteireza, na luta por um mundo melhor e neste mergulho não se deixar contaminar pela arrogância, pelo rancor ou pela vaidade. É manter a coerência entre a palavra e a ação. É alimentar as dúvidas, para não cair no poço escuro das respostas fáceis, das certezas cômodas e caducas. Porém, o homem de esquerda não faz da dúvida o álibi para a indiferença. Ele nunca é indiferente. Ser de esquerda é saber que este “mundo melhor e possível” não se fará de punhos cerrados nem com gritos de guerra, mas será construído no dia-a-dia, nas pequenas e grandes obras e que, muitas vezes, é preciso comprar batalhas longas e desgastantes. Ser de esquerda é, na batalha, não usar os métodos do inimigo.
Fernando Evangelista

terça-feira, outubro 04, 2016

“Produção cultural brasileira: dificuldade e resistência”

“Produção cultural brasileira: dificuldade e resistência” 

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Posted: 03 Oct 2016 08:03 AM PDT
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No dia 15 de setembro deste ano, a morte do ator Domingos Montagner, protagonista da novela Velho Chico, da TV Globo, comoveu o Brasil. Muito antes de fazer televisão, ele fez carreira no teatro e no circo, atuando como palhaço, mas só obteve grande reconhecimento quando alcançou projeção nacional na novela global Cordel Encantado, em 2011.
A morte de um ator com essa trajetória nos leva a questionar o total esquecimento em que vivem os artistas à margem da produção televisiva. Questões de ordem econômica, política e social se entrelaçam para tornar difícil a produção cultural e, consequentemente, a formação do público para essas produções.
De um ponto de vista econômico, a televisão ainda é o campo mais seguro para aqueles que optam por trabalhar com artes dramáticas. Com a expansão do acesso à internet, muitas pessoas podem divulgar seus trabalhos e se tornar conhecidas de uma parte do público. Entretanto, se antes as peças teatrais de maior sucesso eram aquelas em cujos elencos constavam atores televisivos, hoje estes foram substituídos por webcelebridades. O que, obviamente, não é suficiente para se julgar o valor artístico de uma peça, mas influencia na formação do público e afeta aqueles que não são famosos.
Outro fator problemático é que o ingresso para teatro e cinema ainda tem um preço alto para a grande maioria do povo, que sobrevive com uma renda média mensal de um a dois salários mínimos. Como dizia Brecht: “o acesso à cultura está ligado ao poder”, e não é por acaso o preço dos ingressos e as dificuldades burocráticas e financeiras que enfrentam aqueles que tentam fazer uma arte para o povo. Uma peça de teatro de rua tem que superar obstáculos, como a licitação para apresentação em espaço aberto, o que impede que a peça circule em determinados locais. Uma peça cujo mote é a luta de classes dificilmente teria permissão para ser apresentada em uma área que abrigue grandes centros financeiros; enfrentaria dificuldades que peças com outras temáticas não enfrentam. Apresentações na rua incomodam o Estado burguês: vide o caso do palhaço Tico Bonito, detido no ano passado em Cascavel, no Paraná, por criticar o governador Beto Richa pela repressão aos professores.
No Brasil, a produção cultural não consegue se sustentar “por si só” e fica à mercê do financiamento da iniciativa privada ou da abertura de editais de empresas estatais. A polêmica Lei Rouanet é um processo burocrático no qual o proponente deve apresentar um projeto e o Ministério da Cultura deve decidir se ele está apto ou não para a captação de recursos. Uma vez aprovado o projeto, o proponente tem um tempo determinado para recolher esses recursos em empresas, o que significa que são aqueles que detêm o poder econômico que decidirão o que será produzido no campo cultural. Ter o projeto aprovado pelo MinC (ou qualquer outro edital, seja municipal ou estadual, que funcione de modo semelhante) não garante sua realização. Um exemplo disso é o que está acontecendo com Wagner Moura, que pretende realizar um filme sobre o revolucionário Carlos Marighella, e declarou não estar conseguindo captar recursos.
Além dos empecilhos burocráticos e econômicos, a produção cultural precisa lidar também com a formação do público. As novelas, os programas de humor e os filmes exibidos nos grandes meios de comunicação atuam sobre o consumo cultural da população. Isso, claro, é consequência de todos os obstáculos que o Estado coloca para a democratização da arte, impedindo que as classes populares tenham acesso a formas variadas de produção teatral e cinematográfica. Não significa que aquela parcela da população não possa vir a se interessar por distintas produções. Pelo contrário, a questão é justamente que teatro e cinema não estão entre os produtos consumidos pela maioria devido àqueles obstáculos impostos ao acesso e à produção de espetáculos.
A Lei Rouanet tentou resolver parte disso colocando como requisito que o proponente cumpra com medidas de democratização, como, por exemplo, distribuir uma porcentagem de ingressos para alunos de escolas públicas. Entretanto, isso é muito pouco quando o problema está na forma como a produção cultural acontece, quando artistas independentes são, muitas vezes, impedidos de realizar seus projetos (ou precisam modificá-los até ficarem de acordo com o que a empresa patrocinadora quer).
Importante ressaltar que o patrocínio não está relacionado com a qualidade artística de determinada obra. O grande acesso das classes alta e média a produtos culturais também não significa que eles sejam de qualidade. A arte, tornada produto, entra na lógica de mercado. Não por acaso vemos os cinemas de rua se acabando e salas de cinema pertencentes a redes mundiais se concentrando em shoppings centers: as salas passam a se localizar onde há uma enorme rede de lojas porque o objetivo é que as pessoas consumam cada vez mais.
O teatro e o cinema são políticos mesmo quando não pretendem ser. A formação dos produtores, a burocracia, a forma de incentivo da produção cultural, os locais em que os espetáculos são apresentados, o público que visam atingir, tudo isso é questão política. A falta de acesso das classes populares se relaciona com a falta de incentivo aos artistas independentes, que geralmente são originários daquelas.
Ainda assim, com todas as dificuldades, os artistas independentes resistem. Que esses trabalhadores da arte sejam valorizados e respeitados tanto quanto os conhecidos pelo grande público.
Carolyne Dornelles Melo é produtora teatral no Paraná

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