Quando os pobres pagam pelos ricos.
Nosso sistema tributário tem atuado com um Robin Hood às avessas, que tira o dinheiro dos pobres para dar aos ricos. No topo da lista dos privilegiados, estão as grandes corporações (principalmente os bancos) e as multinacionais.
por Clair Hickmann*
Uma conta que poucos gostam de pagar é a dos impostos. Alguns privilegiados conseguem escapar, mas para o cidadão comum a conta aumentou muito nos últimos anos. Em geral, esquecemos que os tributos são também o preço da cidadania, fundamentais para financiar um conjunto de serviços - educação, saúde, previdência e assistência social - que depende da ação do Estado.
Mas não basta o Estado arrecadar tributos, é necessário cobrá-los do cidadão que tem capacidade contributiva. Caso contrário, o sistema tributário acaba sendo um Robin Hood às avessas, pois os tributos sobre o consumo oneram principalmete a classe de renda mais baixa, concentrando renda. O inverso ocorre quando a opção é por um sistema tributário progressivo, taxando mais o patrimônio e a renda. Há quem entenda que distribuição de renda se faz apenas via gastos sociais. Porém, diante da elevada concentração de renda no Brasil, é preciso atacar o mal de todas as formas.
COMO SE OBTEVE O AUMENTO DE ARRECADAÇÃO
A política tributária brasileira, a partir de 1995, foi determinante para as ações macroeconômicas que deram sustentação ao Plano Real. A superação da crise fiscal e a formação de superávit primário foram viabilizadas pelo aumento da arrecadação de impostos cumulativos sobre o consumo, agravando a regressividade do sistema tributário. A carga tributária subiu de 26% para 35%, de 1996 a 2006(1). Os tributos federais sobre o consumo aumentaram 110%, em termos reais, nos últimos dez anos.(2)
Esse aumento foi obtido, basicamente, com a majoração de alíquotas e base de cálculo de tributos sobre bens e serviços, como a Cofins (Contribuição para Financiamento da Seguridade Social), o PIS (Programa de Integração Social) e a criação da CPMF (Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira), além do aumento não legislado do Imposto de Renda das Pessoas Físicas (IRPF), congelando a tabela e as deduções do Imposto de Renda.
Atualmente, os tributos sobre o consumo representam 67% da arrecadação total, o imposto sobre a renda, 29%, e os impostos sobre o patrimônio, apenas 4% (3). Nos países da Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), ocorre o contrário: a arrecadação de impostos sobre consumo é menor do que a arrecadação de impostos sobre a renda, enquanto 7% recaem sobre o patrimônio (4).
Recente estudo realizado pela Fipe comprova a elevação da carga tributária das famílias de menor renda (5). Em 1996, a carga indireta sobre uma renda familiar de até dois salários mínimos representava 26,5% de sua renda; em 2004, esse número pulou para 45,8%. Para uma família com renda superior a trinta salários mínimos, a carga tributária foi de 7,3% e 16,4%, em 1996 e 2004, respectivamente.
O clamor por uma reforma tributária é grande, mas o debate gira em torno apenas da redução do tamanho da carga e não da melhor distribuição entre as bases de incidência. A participação nas discussões sobre o tema limita-se ao empresariado e ao governo, nos âmbitos municipal, estadual e federal. O cidadão comum participa muito pouco desse debate, apesar da "derrama" atual ser bem maior que os "quintos" dos tempos da Inconfidência Mineira.
O CONGELAMENTO DA TABELA DO IMPOSTO DE RENDA
Também pesou no bolso do brasileiro o congelamento da tabela do Imposto de Renda (IR), que deixou de ser corrigida no período de 1996 a 2001. Com isso, milhares de trabalhadores passaram a pagar IR. O cidadão que ganhava até 10,48 salários mínimos, em 1996, estava isento de Imposto de Renda. Em 2007, está isento apenas quem recebe até 3,46 salários mínimos.
O rendimento do trabalho do cidadão comum é taxado de forma implacável, na tabela progressiva, em até 27,5%, enquanto o rendimento do capital é isento ou sofre uma incidência bem mais suave e não é submetido à tabela progressiva. Os lucros e dividendos distribuídos aos sócios ficaram isentos, os rendimentos e ganhos de capital são tributados com alíquotas de 15% ou no máximo 20%. O tratamento diferenciado é gritante.
É preciso resgatar o Imposto de Renda como instrumento de distribuição de renda, aumentando a progressividade e tributando todos os rendimentos na tabela, independente da origem da renda.
BENEFÍCIO QUE FAVORECE GRANDES CORPORAÇÕES
Ao contrário do contribuinte comum (pessoa física), que tem sofrido a ação implacável do fisco para pagar a conta do ajuste fiscal, grandes grupos econômicos e rendas de capital receberam privilégios tributários. A maioria desses benefícios nem mesmo é computada como
renúncia fiscal no orçamento da União, apesar da exigência prevista no parágrafo 6º do artigo 165 da Constituição. Um dos benefícios fiscais, criado no final de 1995, é a permissão legal (6) para deduzir do lucro tributável uma despesa fictícia denominada "juros sobre o capital próprio", reduzindo com isso os tributos sobre o lucro - Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ) e Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL). Essa inovação permite à empresa remunerar o capital próprio, pagando juros aos sócios e acionistas e deduzindo a suposta despesa do lucro. Grandes empesas com lucros fabulosos deixam de distribuir dividendos nos moldes típicos do sistema capitalista para distribuir juros aos sócios e aos acionistas, visando unicamente à redução do pagamento de tributos na empresa. Os maiores beneficiários desse incentivo são as grandes corporações, capitalizadas e lucrativas, principalmente bancos. Em 2005, os cinco maiores bancos brasileiros distribuíram aos seus acionistas R$ 6,1 bilhões de juros sobro o capital próprio, o que representou uma redução nos seus encargos tributários da ordem de R$ 2 bilhões (7).
Para os cofres públicos, somente em 2006, a distribuição de juros sobre o capital próprio significou uma renúncia fiscal da ordem de R$ 4,24 bilhões.
ISENÇÃO QUE PRIVILEGIA AS MULTINACIONAIS
Outro privilégio criado durante o governo FHC é a isenção de Imposto de Renda dos lucros e dividendos distribuídos. O lucro passou a ser tributado apenas na pessoa jurídica. Até 1995, os dividendos eram taxados na fonte ou na declaração anual de IR dos beneficiários. Na verdade, criou-se um privilégio para os rendimentos de capital. O princípio da isonomia foi ignorado.
Com essa isenção, os cofres públicos deixaram de arrecadar aproximadamente R$ 5,4 bilhões em 2006 (8).
Isentou-se também de imposto de renda a remessa de lucros e dividendos ao exterior (9). Até 1995, essas remessas eram tributadas em 15%. Estima-se a renúncia fiscal em R$ 4 bilhões para o ano de 2006 (10).
Esse benefício estimulou a remessa de lucros e dividendos ao exterior pelas multinacionais, batendo recorde em 2005, no valor de R$ 12,7 bilhões, maior montante desde 1947, segundos dados do Banco Central.
A soma desses três benefícios mencionados, em 2006, significa uma renúncia tributária a favor da renda do capital da ordem de R$ 13,4 bilhões.
Esses privilégios são desconhecidos pela maioria da populaçnao e os recursos que o Estado deixa de arrecadar com eles
são omitidos do orçamento público (11).
O contrário acontece com os gastos que o cidadão comum deduz do imposto de renda. As despesas com saúde, educação e dependentes são computadas no orçamento da União como renúncias fiscais. Isso é um equívoco completo, porque tais gastos representam o mínimo existencial e, portanto, não podem ser considerados renda potencial a tributar. Como se vê, são dois pesos e duas medidas.
A estimativa do governo federal com desonerações de natureza tributária, para o ano de 2007, é de R$ 52,7 bilhões. Isso representa 2,29% do PIB e 12,79% da arrecadação tributária adminstrada pela SRF. Esses números são bastante questionáveis, visto haver renúncias tributárias expressivas não computadas, enquanto outras, que não representam potencial arrecadação, são consideradas benefícios fiscais. Além disso, há também benefícios e isenções concedidos pelos governos estaduais e municipais que têm gerado forte discussão, porque, muitas vezes, provocam guerra fiscal entre os entes federados. Mas esse é assunto para outro artigo. Meu objetivo aqui foi apenas mostrar que o privilégio de alguns é pago pelo cidadão comum.
*Clair Hickmann é auditora fiscal da Receita Federal. Foi diretora de Estudos Técnicos do Unafisco Sindical de agosto de 2001 a julho de 2003 e de agosto de 2005 a julho de 2007.
Notas:
(1) Cálculo feito com o novo PIB, reclaculado pelo IBGE.
(2) Hickmann, Clair Maria, e Salvador, Evilásio da Silva. Dez anos de derrama: a distribuição da carga tributária no Brasil. Brasília: Unafisco Sindical, 2006, p.30
(3) Fonte: Unafisco Sindical
(4) Dados da OCDE disponíveis em www.oecd.org
(5) Ver Dez anos de derrama: a distribuição da carga tributária no Brasil, cit., p.28.
(6) Artigo 9 da Lei 9.249/95.
(7) Dez anos de derrama: a distribuição da carga tributária no Brasil, cit., p.36
(8) Foi considerada apenas a isenção de lucros e dividendos distribuídos das empresas que adotam o regime de apuração de lucro real. Valores estimados com base no DIPJ de 2000, aplicando a variação do IPCA.
(9) Artigo 10 da Lei 9.249/95.
(10) Remessa de lucros para o exterior convertidas à taxa de câmbio comercial média de 2006, aplicando a alíquota de 15% que vigorava até 1996.
(11) Ver www.receita.fazenda.gov.br: Demonstrativo de Benefícios Fiscais 2006 - SRF.
dobocanotrombone
CARGA TRIBUTÁRIAMais injusta que excessivaA carga tributária do Brasil perpetua a desigualdade, desestimula os investimentos produtivos e é moderada sobre o patrimônio.Por Gerson Freitas Jr. e Luiz Antonio Cintra, na Carta Capital
De tempos em tempos, principalmente durante as eleições, esquenta o debate sobre os impostos pagos pela sociedade brasileira. Distorcida a partir da perspectiva de uns poucos atores sociais, destaque para a eterna choradeira do empresariado, a discussão em geral cria mais fumaça do que luz. Reforça-se a falsa impressão de que a carga tributária brasileira é das mais altas do planeta. E que o apetite aguçado do Leão seria a principal causa do desempenho econômico insatisfatório do País nas últimas décadas, o que também é outro mito. Longe de ser um exemplo virtuoso para o restante do mundo, a estrutura tributária brasileira – mais do que o nível da carga – é ao mesmo tempo espelho e motor da brutal desigualdade da sociedade brasileira. Herança do período colonial, ela taxa pouco a renda e o patrimônio daqueles que ocupam o topo da pirâmide social. Um estudo do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicada (Ipea) indica que os 10% mais ricos se apropriam de 75% da riqueza atualmente. No fim do século XVIII, na então escravocrata sociedade carioca, a parcela mais rica era mais moderada em sua ofensiva, ficava com 69% do bolo.
A estrutura tributária atual, como frisam os especialistas, perpetua as diferenças abissais entre os mais ricos e os mais pobres ao eleger os que têm menos para boi de piranha. Atualmente, metade da renda das famílias que ganham até dois salários mínimos (cerca de mil reais) segue para o governo federal, estados e municípios. A “mordida” cai a 26% para as famílias com rendimento mensal acima de 15 mil reais.
Dessa montanha de recursos, uma parte muito pequena, menos de 10% do arrecadado, volta para a sociedade na forma de saúde, educação, segurança e saneamento, sem entrar no mérito da qualidade dos serviços prestados. Os detentores de títulos da dívida pública levam bem mais: cerca de 35% do Orçamento da União, parcela que tende a crescer neste ano à medida que sobe a taxa básica de juros, a que remunera os credores.
Com doutorado sobre o sistema tributário brasileiro, o economista Evilásio Salvador, professor da Universidade de Brasília, centra suas críticas na distribuição do bolo tributário. “O problema não é o nível da carga, que nem é tão alto como os empresários gostam de dizer. Temos um monstrengo regressivo que taxa principalmente o consumo, por meio de impostos indiretos, como o ICMS, pago por todos, independentemente da condição social. Deveríamos aumentar a taxação sobre os rendimentos mais altos e principalmente sobre o patrimônio.”
No ranking da carga tributária (quadro à pág. 24), o Brasil aparece em primeiro lugar na América Latina, com o dobro da média dos países da região. A secretária de Estado dos EUA, Hillary Clinton, chegou a elogiar o sistema brasileiro, que lhe deu musculatura durante a turbulência. Imagine-se qual seria a nossa situação se, a exemplo do México, nossa carga fosse de apenas 10% do PIB. O indicador, longe de ser um problema, dá margem de manobra ao Brasil e nos ajudou a superar a crise de 2008. O PIB mexicano caiu 6% em 2009, e o país parece hoje uma ilha de maquiladoras cercada pela violência do narcotráfico.
Na avaliação do pesquisador Juan Pablo Jimenez, da Cepal, centro de pesquisas econômicas da ONU sediado no Chile, o Brasil, apesar de taxar mais, segue o padrão regional em matéria de estrutura tributária, e aí residem os maiores problemas. “Nos países latino-americanos, os sistemas tributários são em geral incapazes de cumprir suas duas funções primordiais: não conseguem garantir a estabilidade macroeconômica nem distribuir a riqueza. Também por esse motivo o México tem sofrido muito com a crise nos paí-ses ricos. O governo não tem meios de se contrapor à conjuntura ruim.”
O fato de os países latino-americanos, Brasil incluído, concentrarem a taxação sobre o consumo também é prejudicial, avalia Jimenez, já que a arrecadação tende a cair com maior vigor nos momentos de queda da economia, além de ser essencialmente injusto. Pela facilidade de cobrança, segundo especialistas, fica difícil imaginar no Brasil uma mudança radical no sentido de desonerar o consumo. Apesar das promessas dos candidatos, o mais provável é o aumento das transferências compensatórias de renda para quem necessita.
Economista-chefe da Confederação Nacional da Indústria (CNI), Flávio Castelo Branco bate na tecla de que a carga tributária brasileira é das mais elevadas do mundo, fato que a confederação atribui ao “peso do Estado”. “O gasto público é semelhante apenas ao de alguns poucos países da Europa Ocidental. Não tem nenhuma economia emergente, ou mesmo madura, como o Japão, que se assemelhe ao Brasil. Na América Latina, todos os países pagam menos impostos.” No dia 20, a CNI e várias outras entidades empresariais lançam novo movimento para chamar atenção para esse debate. O risco é mais uma vez ampliar a nebulosidade que costuma acompanhar iniciativas semelhantes.
As estatísticas indicam que o panorama internacional não condiz exatamente com a avaliação da CNI. Um estudo comparativo da Organização para a Coo-peração e o Desenvolvimento Econômico (OCDE) indica que a carga brasileira se aproxima da média da União Europeia, e não está muito distante do patamar estadunidense. Mas é fato que o Brasil é líder na América Latina. O que a CNI esquece de mencionar é que a África também é um exemplo de baixa carga tributária – e, como se sabe, não pode ser considerada exemplo de desenvolvimento social justo, assim como os latino-americanos. Além do mais, o Brasil tem a maior economia, a maior população e a maior área do subcontinente, o que demanda vasta presença do Estado.
Além do tamanho dos tributos, Castelo Branco considera negativa outra característica: os governos tendem a criar sistemas de exceção, que costumam vir acompanhados do risco de distorções. “Esses impostos não podem ser sustentados pelas microempresas? Então criamos o Simples. Um determinado segmento econômico não consegue competir? Então damos isenção. É difícil calcular? Então fazemos o cálculo com base no lucro presumido”, ironiza. E concorda em deslocar a cobrança dos impostos para a renda. “Fazendo isso, você abre espaço para taxar menos a produção. Mas aumentar imposto sobre a renda é sempre complicado, a gritaria é geral.”
A análise do economista Carlos Lessa, ex-presidente do BNDES, segue em outra direção. Para ele, a carga tributária não é alta. “Comparada aos países do Primeiro Mundo, considerando nossa renda per capita e a péssima distribuição de renda, a carga brasileira poderia ser até maior”, afirma. O economista pondera que, para o empresário, o problema não está exatamente em quanto se paga, mas em como se paga. “A questão principal é a burocracia, a dificuldade para se calcular o valor do imposto e recolhê-lo, as inúmeras exigências, fiscalizações e embargos. A carga não é alta, mas é irritante”, afirma Lessa.
Um estudo recente do Banco Mundial, dá uma ideia da complexidade do sistema. O Brasil ocupa a 150ª posição entre os paí-ses onde mais tempo é gasto para quitar os tributos: consome de uma empresa em média 2,6 mil horas ao ano. Nos demais países da América Latina, esse “custo” cai a 385 horas, e é de 194 nos países da OCDE. Também o custo para arrecadar impostos é elevado. No Brasil, chegou a 11,3 bilhões de reais em 2009 ou 1,35% da arrecadação total, de acordo com pesquisadores da FEA-USP. Apenas Portugal supera o Brasil nesse quesito, com um custo de 2,75% do arrecadado.
Lessa chama ainda a atenção para a má distribuição da carga tributária, “feita de modo a driblar aspectos constitucionais”. A partir da Constituição de 1988, os impostos dispararam em razão do regime de repartição de rendas tributárias, mais favoráveis aos estados e municípios, sem correspondentes transferências de encargos – o que obrigou a União a criar uma gama de contribuições que não são divididas com os demais entes da federação.
Mesmo assim, Lessa rechaça a crítica de que é preciso reduzir os gastos previdenciá-rios, a fim de diminuir o tamanho do Estado e, com isso, a porcentagem dos impostos sobre os empresários. “Não se discutem os gastos da seguridade social, porque ela foi pré-pactuada entre os brasileiros. Decidimos em 1988 que todos teriam direito à saúde e que cada brasileiro teria direito a uma aposentadoria digna. Fixamos entre nós mesmos um pacto pelo qual todo brasileiro garantiria a seguridade social dos demais.” Para ele, as contribuições sociais devem ser tratadas como impostos, com participação dos estados e municípios.
Para o ex-reitor da UFRJ, engana-se quem compara a carga brasileira com a de outros países que não oferecem qualquer rede de proteção social ao cidadão. “China e Índia possuem arranjos institucionais completamente diferentes do nosso. O Brasil é um país gigantesco e muito industrializado, muito urbanizado, que internalizou nas metrópoles a miséria social. Na China e na Índia, boa parte da população ainda está no campo.”
Na década de 1960, observa, metade da renda nacional (a totalidade do rendimento de todos os brasileiros) provinha do trabalho. Hoje o trabalho responde por apenas 37% da renda. “O que cresceu no Brasil foram os rendimentos do não trabalho, e a responsabilidade disso é dos lucros reais dos bancos brasileiros, que cresceram, em média, 11% ao ano durante o governo de Fernando Henrique Cardoso e 14% durante o mandato de Lula.”
O economista Antônio Correa Lacerda, do Departamento de Economia da PUC-SP, afirma que os problemas do sistema de impostos devem-se principalmente à concentração de renda. “Há dois efeitos. O primeiro é que a carga tem de ser elevada para que o Estado possa suprir a maioria da população que não tem renda, e isso sobrecarrega quem tem mais renda. Segundo, trata-se de uma carga pouco inteligente, que tributa muito o investimento e a exportação. Ao tributar o investimento, desestimula-se a produção e, ao tributar a exportação, perde-se competitividade.”
Diretor de estudos macroeconômicos do Ipea, João Sicsú critica o enfoque dominante na discussão em torno da reforma tributária no País. “As críticas vão sempre no sentido de mostrar que o Estado ocupa um tamanho exagerado na economia e que é preciso reduzi-lo. Mas os números indicam que isso não é verdade. É preciso considerar o conceito de carga tributária líquida, quando se leva em conta as transferências que a União faz, para pagar aposentadorias, subsídios, pensões etc. Por esse critério, a carga cai a 20% do PIB, menor que na Alemanha, de 21%, Canadá, que tem 23%, e pouco acima dos EUA, que é de 16%.”
Sicsú concorda com o caráter “regressivo e concentrador de riquezas” do sistema atual. “E é justamente nesse ponto que a reforma tributária deveria avançar. Mas o que vemos é uma discussão sobre a redistribuição entre os estados, o equilíbrio do pacto federativo, a eliminação da guerra fiscal e como cortar o custo da arrecadação. Mas não se discute como podemos avançar na justiça social. É essa a essência da questão.”
Ainda que haja muito a ser feito, é inegável que o País avançou em algumas frentes, realizando “minirreformas” aqui e ali. Foi esse o caso das micro e pequenas empresas. A preocupação com a questão tributária praticamente saiu da pauta desse segmento empresarial desde 2007, quando o governo instituiu o sistema Simples Nacional, que unificou o pagamento de oito tributos para empresas com faturamento de até 2,4 milhões de reais ao ano, com alíquotas de 4% a 17% da receita bruta.
Segundo o diretor-superintendente do Sebrae-SP, Ricardo Tortorella, o resultado da mudança legal é evidente. Há quatro anos, afirma, havia aproximadamente 2 milhões de pessoas jurídicas operando no Brasil, dos quais 1,7 milhão eram micro e pequenas empresas. Em 2009, o número dobrou, para 3,4 milhões. “Muitos empreendedores tomaram a decisão de abrir uma empresa ou se formalizar diante desse regime de tributação mais justo”, considera. Para Tortorella, as pequenas arcam com uma carga tributária média de apenas 5%, muito menos que as empresas que recolhem sobre o lucro presumido (12% a 15%). Mas o grande benefício do Simples, diz, foi a desburocratização. “Antes, o microempresário tinha de ir ao banco dez vezes por mês para recolher todos os impostos. Hoje, ele perde uma hora.” Atualmente, 70% das empresas no País operam no regime do Simples.
Diretor-executivo do Instituto de Estudos para o Desenvolvimento Industrial (Iedi), o economista Julio Sergio Gomes de Almeida filia-se à ala que defende a redução da carga tributária, dos atuais 35% para cerca de 30%. “Essa redução pode ocorrer, mas é preciso que o Estado tenha gastos sociais à altura das nossas necessidades e uma participação expressiva nos investimentos de infraestrutura, e ainda temos muito a fazer nessas duas frentes”, avalia, para quem o sistema vigente “trata mal” a atividade econômica.
A “redução seletiva” de impostos sugerida pelo Iedi procura ampliar a competitividade da indústria, setor que tem perdido espaço no mercado internacional. “As exportações não deveriam pagar impostos. Hoje, elas contam com um sistema de devolução que não funciona. Também é preciso reduzir os impostos sobre os investimentos produtivos. No mundo inteiro, esses investimentos dão direito a créditos tributários, mas aqui isso não acontece. É preciso tirar os impostos que incidem sobre a folha de pagamentos, de 20%, paga pelas empresas. Essa conta deveria migrar para tributos gerais, como o PIS/Cofins e o Imposto de Renda. Além disso, os produtos da cesta básica não deveriam pagar nenhum tipo de imposto, para minimizar a regressividade do sistema.”
Sicsú, do Ipea, chama atenção para outro ponto confuso do debate sobre os impostos, que tem origem no crescimento verificado na fatia do Leão, até chegar aos 36% do PIB. “Na década de 90, durante o governo FHC, vários tributos e impostos foram criados, inclusive para fazer frente às necessidades de gastos surgidas com a Constituição de 1988. Mas no governo Lula o crescimento da carga tem outra explicação. Ocorre que nos últimos anos, com o crescimento da economia, ampliou-se a formalização, mais empregos com carteira assinada surgiram, e tudo isso aumenta a arrecadação. Alguns economistas dizem que isso significa ampliar o sacrifício da sociedade, mas não é isso o que está acontecendo mais recentemente.” E cita o caso da CPMF, extinta desde 2008, numa vitória da oposição no Congresso.
Em ao menos um ponto empresários, governo e especialistas concordam: não há reforma tributária que resista a uma economia debilitada. A conjuntura desfavorável acirra as disputas pelos recursos públicos em queda ou estagnados. No momento em que a economia voltou a crescer – tendência reforçada pelas perspectivas abertas com o pré-sal – passa a ser possível alterar o estado das coisas. “É preciso avançar na isonomia, já que a carga recai principalmente sobre os trabalhadores com carteira assinada, os funcionários, além do consumo”, diz Salvador, da UnB. “É preciso retomar a discussão sobre uma maior participação de estados e municípios, mas as responsabilidades também têm de ir junto.”
Outro ponto da discussão tem a ver com a elisão fiscal, ou seja, a capacidade de algumas empresas (principalmente as de grande porte) driblarem o pagamento dos tributos. “Avançamos bastante na evasão fiscal, mas a elisão ainda é um problema. Existe uma verdadeira indústria para não pagar impostos no País que se alimenta da falsa impressão de que os impostos são exagerados”, afirma Salvador. De certa forma, é possível estabelecer um paralelo com o que acontece com o debate sobre a justiça. Quem costuma reclamar da existência de um “Estado policial” é justamente quem possui mais condições de remunerar advogados de grife e que, geralmente, não passa mais de duas noites em uma cela limpa na cadeia. Ou nem isso.
(Foto: Olga Vlahou)
Fonte: Carta Capital