A ineficiência estatal tem causas conhecidas. A princípio, três grandes problemas afetam o uso do dinheiro público: a corrupção, o mau uso dos recursos e a predominância de investimentos em um projeto liberal de país. Há ainda, entretanto, um quarto elemento muito importante, e pouco comentado, que compromete a eficácia do Estado nas iniciativas de reduzir as desigualdades sociais e criar um modelo libertário de economia. São os desvios de recursos para paraísos fiscais que, em geral muito volumosos, significam, na prática, menos impostos, e por consequência menos investimento. Não é fácil lutar contra isso, uma vez que o sistema financeiro mundial é completamente desregulado, e os países têm autonomia sobre sua legislação. Atenta a esses problemas, a sociedade civil organizada esboça uma reação mais orquestrada.
Mais de 50 organizações de todo o mundo lançaram, em 26 de julho, a campanha “Fim aos Paraísos Fiscais”. O objetivo é pressionar os líderes do G20 a adotarem um planejamento para acabar com o sigilo fiscal em determinados países. A medida está aberta à adesão popular, no site da campanha. O primeiro passo é exigir que as empresas publiquem o lucro obtido, e que paguem todos os impostos, com transparência sobre a movimentação de seus recursos. Há cálculos de que os paraísos fiscais provocam perdas globais de mais de 500 bilhões de dólares, por conta de sonegação fiscal. Só o Brasil, que acaba de aderir à campanha, teria perdido 60 bilhões dólares em recursos enviados a paraísos fiscais em 2009.
Estima-se que os países em desenvolvimento percam, no mínimo, cerca de R$ 160 bilhões por ano em recursos. O valor é muito maior do que o que eles recebem em ajuda humanitária. O sigilo fiscal faz com que os recursos fiquem escondidos. Por isso a transparência no sistema financeiro internacional, hoje quase inexistente, ganha importância. Suspeita-se, ainda, que haja em torno de 800 bilhões de dólares a 1 trilhão de dólares reunidos em fundos espalhados em diversos paraísos fiscais, que tenham origem ilícita.
“Nós queremos que os líderes do G20 adotem medidas para acabar com o sigilo, como requerer que empresas publiquem o lucro que elas obtêm e pagam em cada país onde operam e também que haja a troca automática de informações entre jurisdições de impostos”, afirma Mariana Paoli, da ONG britânica Christian Aid, uma das principais articuladoras da campanha.
O instituto estadunidense Global Financial Integrity realizou pesquisa em que comprova a relação intensa entre a sonegação e os depósitos em paraísos fiscais. Quando o dinheiro chega nesses países, deixa de haver informação sobre sua movimentação. Quando os recursos saem de um paraíso fiscal, portanto, deixam de ser mapeados como dinheiro sujo. Muitas vezes, voltam ao país de origem como investimento. Pesquisa do Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário detectou fortes indícios e sonegação em 26,8% das empresas (chegou a 39% em 2004). Enquanto o faturamento não declarado chega a R$ 1,32 trilhões, a sonegação fiscal atinge nada menos do que R$ 200 bilhões. Somados, os tributos sonegados por pessoas físicas alcançou 9% do PIB.
Conselhão
O fluxo financeiro ilegal do Brasil de 2000 a 2008 é avaliado em 23,5 bilhões dólares – média 2,6 bilhões dólares anuais. Ao longo desses nove anos, o maior fluxo ilícito foi da China, com 2,18 trilhões dólares, seguida pela Rússia, com 427 bilhões dólares. As assinaturas recolhidas pela campanha serão entregues aos integrantes do G20, em reunião marcada para a França, em novembro. Recolhidas no site “Fim aos Paraísos Fiscais”, as adesões já somam quase dez mil. Lucídio Bicalho, do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), que centralizou a participação brasileira no movimento, faz questão de desconstruir simplismos. Ele lembra que nem todo dinheiro que sai dos paraísos fiscais tem origem ilícita, e nem todo recurso ilegal tem como destino os paraísos fiscais. Segundo dados divulgados pelo Banco Central, os investimentos brasileiros no exterior foram, apenas em 2009, 132 bilhões dólares.
“Queremos levar esses dados ao Conselhão (Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social). Vamos buscar apoio político do governo”, revela Lucídio. Em 2009, segundo o Inesc, foram enviados, na forma de participação em capital, 18,3 bilhões dólares para as Ilhas Cayman, 13,3 bilhões dólares para as Ilhas Virgens Britânicas e 10,2 bilhões dólares para as Bahamas. Todos esses países são considerados paraísos fiscais. As Ilhas Cayman também receberam, como empréstimos entre empresas vindos do Brasil, 90,5 bilhões dólares dos recursos, de 2007 a 2009. O valor representa 88% do total, e 28 vezes o dinheiro que seguiu para os Estados Unidos. “A evasão fiscal provoca pobreza e miséria em larga escala. Por isso acreditamos que a União Europeia deve tomar medidas para detê-la, e assentar as bases de um sistema financeiro mais justo e igualitário”, defende Isabel Ortigosa, da ONG espanhola InspirAction.
Há expectativa de que o G20 apoie a iniciativa porque os paraísos fiscais também funcionariam, segundo as organizações, como reserva de recursos para terrorismo e tráfi co de drogas. Segundo divulgou recentemente o jornal Times, o papa Bento XVI estaria preparando uma encíclica com um capítulo intitulado “Fraude e Fisco”. O líder da Igreja Católica pretende estabelecer o desvio de recursos a paraísos fiscais como condenação moral aos países e aos fraudadores. Em sua primeira encíclica, o papa já estabelecera como “moralmente inaceitável” a transferência de dinheiro para se fraudar o fisco.
Autonomia dificulta ação
Uma das dificuldades de ação do G20 é que os países do mundo têm, evidentemente, autonomia sobre seu território e sua legislação. Dessa forma, estabelecem como desejam sua regulação das transações financeiras. Qualquer intervenção do G20 sobre isso pode ser interpretada como ação imperialista – até pelo currículo condenável que têm esses países. Como poderiam, portanto, agir? “Empresas multinacionais operam em diferentes países ao redor do globo, então há limites no que cada país pode fazer individualmente, pois empresas inescrupulosas sempre acabam dando um jeito de continuar não pagando impostos”, explica Mariana Paoli.
Ela cita o exemplo da Argentina, que há alguns anos tentou banir empresas registradas como off-shore de operar em Buenos Aires. Ao menos se elas pudessem comprovar que tivessem negócios, de fato, no local onde estavam registradas. Mais recentemente, os argentinos tentaram uma forma de controle semelhante com as empresas multinacionais exportadoras de grãos. Para a maioria dos estudiosos, não haveria problema se houvesse, finalmente, uma ampla regulação do sistema financeiro mundial, jamais realizada. Entretanto, isso coloca em risco uma série de interesses de organizações, empresas e governos.
*Cappacete