Janio de Freitas: A força agitadora para a preparação do golpe de 64 foi a imprensa
“A
relação siamesa entre imprensa e democracia não se ajusta, no entanto,
aos 21 anos brasileiros entre 1964 e 1985, por exemplo.
Não só ao decorrer do período, mas também àquilo mesmo que lhe deu origem.
Durante
os 21 anos sem nem sequer os seus mínimos componentes da democracia, a
imprensa brasileira (vamos englobar assim jornais, TV, revistas e rádio)
teve lucros e outros enriquecimentos maiores, muito maiores, do que em
qualquer fase anterior na sua história.
A par
desse benefício generalizado, quanto mais próximo e a serviço do regime
antidemocrático, maior a compensação.” Janio de Freitas
Imprensa e democracia
Janio de Freitas
03/06/2012
Assim como a imprensa pode tirar a Constituição do papel, tira também o papel da Constituição
Já
que o ministro Carlos Ayres Britto é do Supremo Tribunal Federal, mas
não se sente sob perseguições, e muito menos imagina que queiram
“destruí-lo”, acredito não haver risco em negar a ideia que faz da
imprensa. E nela, sobretudo, da relação entre imprensa e democracia.
O
ministro falou no 5º Congresso Brasileiro da Indústria de Comunicação,
no qual também esteve o bispo Desmond Tutu. Foi o presidente da Comissão
da Verdade e Reconciliação criada na África do Sul, em 1995, por Nelson
Mandela.
Espera da nossa Comissão da Verdade
que busque “curar as feridas de uma nação traumatizada”. A idade não lhe
diminuiu a percepção nem a determinação de dizer as palavras adequadas.
Em
seu tema, o ministro Ayres Britto não se limitou à esperança. Tem a
convicção de que “a metáfora de que a imprensa e a democracia são irmãs
siamesas não é exagerada. É, de fato, um vínculo umbilical, a ponto de
que, se for cortado esse cordão, é a morte das duas -da imprensa e da
democracia”.
A relação siamesa entre imprensa e democracia não se ajusta, no entanto, aos 21 anos brasileiros entre 1964 e 1985, por exemplo.
Não só ao decorrer do período, mas também àquilo mesmo que lhe deu origem.
Durante
os 21 anos sem nem sequer os seus mínimos componentes da democracia, a
imprensa brasileira (vamos englobar assim jornais, TV, revistas e rádio)
teve lucros e outros enriquecimentos maiores, muito maiores, do que em
qualquer fase anterior na sua história.
A par desse benefício generalizado, quanto mais próximo e a serviço do regime antidemocrático, maior a compensação.
Tanto
a proporcionada diretamente ou indiretamente por ligação ao poder, como
pela preferência publicitária por meios de comunicação identificados
com o regime. Do qual a publicidade foi instrumento fundamental, talvez
decisivo.
Mais importante jornal em todos
aqueles anos, o “Jornal do Brasil”, como principal órgão criador de
opinião pró iniciativas do regime (“milagre brasileiro”, “Brasil
grande”, a designação de “terroristas” para os oposicionistas, nem todos
armados, e muito mais) proporcionou o exemplo definitivo da ligação
ideológica-econômica dos meios de comunicação com a antidemocracia.
Habituara-se
tanto aos ganhos estupendos e fáceis com sua posição, que, vinda a
democracia, foi rápido para o colapso. Não o único a seguir tal
percurso.
“A censura à imprensa teve duração pequena” -é uma afirmação muito repetida sob variadas formas. E inverdadeira.
Todo
o período ditatorial foi atravessado por uma modalidade de censura sem
evidência pública: o afastamento, impositivo sobre as direções ou
proprietários, de jornalistas profissionais.
A
base da convicção “siamesa” de Ayres Britto está na ideia de que, “por
ser a instância que oferta à população uma alternativa, uma explicação
diferente da que o governo dá aos fatos, a imprensa tira a Constituição
do papel, vitaliza a Constituição”.
Está na
história: assim como a imprensa pode tirar a Constituição do papel, tira
também o papel da Constituição, na sociedade e no país. A força
agitadora para a preparação do golpe de 64 foi a imprensa. Com agitação
diuturna.
Todos os demais agentes foram
insignificantes em comparação com a imprensa, e dependentes dela. Quando
ganharam significação, já a imprensa e o golpismo estavam muito à sua
frente, vindo apenas a aproveitar, para a consumação do seu propósito,
os múltiplos e estimulantes erros da chamada “esquerda”.
A
Constituição vigente até 64 foi rasgada, muito antes, pela imprensa. A
pregação de Carlos Lacerda, de brilho incomum, afrontava a democracia e,
pelas leis de então, como seria pelas atuais, era crime indiscutível
contra a Constituição já desde os primeiros anos 50.
E
seus seguidores, só por sê-lo, puderam multiplicar a ação agitadora em
jornais, TV, rádio e Forças Armadas tão sem incômodo quanto seu líder.
Se
há siameses na relação de imprensa e democracia, então são trigêmeas. A
imprensa tem, de um lado, a democracia e, de outro, o regime de
prepotência. O que vier estará bom. E exceção na imprensa, se houver,
não passa de exceção.
*GilsonSampaio