Darcy Ribeiro, 90 anos
“Mais que uma simples etnia, o Brasil é uma etnia nacional, um povo-nação,
assentado num território próprio e enquadrado dentro de um mesmo Estado
para nele viver seu destino”
– Darcy Ribeiro
Darcy Ribeiro, se vivo fosse, completaria hoje 90 anos. (Foto: Arquivo do Senado Federal) |
Nascido em Montes Claros, Minas Gerais, em 26 de outubro de 1922, Darcy
Ribeiro foi um destacado antropólogo e político brasileiro. Além de
ensaísta e romancista – membro da Academia Brasileira de Letras
–, destacou-se como educador, chegou a ser ministro da Educação e
colaborou decisivamente para a fundação da Universidade de Brasília
(UNB). Nesta sexta, estaria completando 90 anos se estivesse vivo.
Darcy estudou ciências sociais na Escola de Sociologia e Política de São
Paulo, graduando-se em 1946. Trabalhou com indígenas do Centro-Oeste e
do Norte, contribuiu para a criação do Museu do Índio e do parque do
Xingu.
Foi exilado após o golpe de 1964, retornou ao Brasil em 1976. Nesse
período dedicou-se a importantes estudos antropológicos. O último volume
desse trabalho, “O Povo Brasileiro”, foi publicado apenas em 1995. No
livro, o autor investiga a formação do povo brasileiro e as
configurações que tomou ao longo dos séculos, projeto sem precedentes
quando foi concebido.
Durante o primeiro governo de Leonel Brizola no Rio de Janeiro
(1983-1987), Darcy foi o responsável pela criação, planejamento e
direção da implantação dos Centros Integrados de Ensino Público (CIEP),
um projeto pedagógico visionário e revolucionário no Brasil de
assistência em tempo integral às crianças.
Nas eleições de 1986, Darcy foi candidato ao governo fluminense pelo PDT
mas não conseguiu êxito nas urnas. Em 1992 foi eleito membro da
Academia Brasileira de Letras (ABL) onde ocupou a cadeira número 11.
Também foi ministro-chefe da Casa Civil do presidente João Goulart,
vice-governador do Rio de Janeiro de 1983 a 1987 e exerceu o mandato de
senador pelo Rio de Janeiro, de 1991 até sua morte. Darcy faleceu de
câncer aos 74 anos, no dia 17 de fevereiro de 1997.
Trecho da introdução de O Povo Brasileiro
Por Darcy Ribeiro
O Brasil e os brasileiros, sua gestação como povo, é o que trataremos de
reconstituir e compreender nos capítulos seguintes. Surgimos da
confluência, do entrechoque e do caldeamento do invasor português com
índios silvícolas e campineiros e com negros africanos, uns e outros
aliciados como escravos.
Nessa confluência, que se dá sob a regência dos portugueses, matrizes
raciais díspares, tradições culturais distintas, formações sociais
defasadas se enfrentam e se fundem para dar lugar a um povo novo
(Ribeiro 1970), num novo modelo de estruturação societária. Novo porque
surge como uma etnia nacional, diferenciada culturalmente de suas
matrizes formadoras, fortemente mestiçada, dinamizada por uma cultura
sincrética e singularizada pela redefinição de traços culturais delas
oriundos. Também novo porque se vê a si mesmo e é visto como uma gente
nova, um novo gênero humano diferente de quantos existam.
Povo novo, ainda, porque é um novo modelo de estruturação societária,
que inaugura uma forma singular de organização socioeconômica, fundada
num tipo renovado de escravismo e numa servidão continuada ao mercado
mundial. Novo, inclusive, pela inverossímil alegria e espantosa vontade
de felicidade, num povo tão sacrificado, que alenta e comove a todos os
brasileiros.
Velho, porém, porque se viabiliza como um proletariado externo. Quer
dizer, como um implante ultramarino da expansão européia que não existe
para si mesmo, mas para gerar lucros exportáveis pelo exercício da
função de provedor colonial de bens para o mercado mundial, através do
desgaste da população que recruta no país ou importa.
A sociedade e a cultura brasileiras são conformadas como variantes da
versão lusitana da tradição civilizatória européia ocidental,
diferenciadas por coloridos herdados dos índios americanos e dos negros
africanos. O Brasil emerge, assim, como um renovo mutante, remarcado de
características próprias, mas atado genesicamente à matriz portuguesa,
cujas potencialidades insuspeitadas de ser e de crescer só aqui se
realizariam plenamente.
A confluência de tantas e tão variadas matrizes formadoras poderia ter
resultado numa sociedade multiétnica, dilacerada pela oposição de
componentes diferenciados e imiscíveis. Ocorreu justamente o contrário,
uma vez que, apesar de sobreviverem na fisionomia somática e no espírito
dos brasileiros os signos de sua múltipla ancestralidade, não se
diferenciaram em antagônicas minorias raciais, culturais ou regionais,
vinculadas a lealdades étnicas próprias e disputantes de autonomia
frente à nação.
As únicas exceções são algumas microetnias tribais que sobreviveram como
ilhas, cercadas pela população brasileira. Ou que, vivendo para além
das fronteiras da civilização, conservam sua identidade étnica. São tão
pequenas, porém, que qualquer que seja seu destino, já não podem afetar à
macroetnia em que estão contidas.
O que tenham os brasileiros de singular em relação aos portugueses
decorre das qualidades diferenciadoras oriundas de suas matrizes
indígenas e africanas; da proporção particular em que elas se
congregaram no Brasil; das condições ambientais que enfrentaram aqui e,
ainda, da natureza dos objetivos de produção que as engajou e reuniu.
Essa unidade étnica básica não significa, porém, nenhuma uniformidade,
mesmo porque atuaram sobre ela três forças diversificadoras. A
ecológica, fazendo surgir paisagens humanas distintas onde as condições
de meio ambiente obrigaram a adaptações regionais. A econômica, criando
formas diferenciadas de produção, que conduziram a especializações
funcionais e aos seus correspondentes gêneros de vida. E, por último, a
imigração, que introduziu, nesse magma, novos contingentes humanos,
principalmente europeus, árabes e japoneses. Mas já o encontrando
formado e capaz de absorvê-los e abrasileirá-los, apenas estrangeirou
alguns brasileiros ao gerar diferenciações nas áreas ou nos estratos
sociais onde os imigrantes mais se concentraram.
Por essas vias se plasmaram historicamente diversos modos rústicos de
ser dos brasileiros, que permitem distingui-los, hoje, como sertanejos
do Nordeste, caboclos da Amazônia, crioulos do litoral, caipiras do
Sudeste e Centro do país, gaúchos das campanhas sulinas, além de
ítalo-brasileiros, teuto-brasileiros, nipo-brasileiros etc. Todos eles
muito mais marcados pelo que têm de comum como brasileiros, do que pelas
diferenças devidas a adaptações regionais ou funcionais, ou de
miscigenação e aculturação que emprestam fisionomia própria a uma ou
outra parcela da população.
A urbanização, apesar de criar muitos modos citadinos de ser, contribuiu
para ainda mais uniformizar os brasileiros no plano cultural, sem,
contudo, borrar suas diferenças. A industrialização, enquanto gênero de
vida que cria suas próprias paisagens humanas, plasmou ilhas fabris em
suas regiões. As novas formas de comunicação de massa estão funcionando
ativamente como difusoras e uniformizadoras de novas formas e estilos
culturais.
Conquanto diferenciados em suas matrizes raciais e culturais e em suas
funções ecológico-regionais, bem como nos perfis de descendentes de
velhos povoadores ou de imigrantes recentes, os brasileiros se sabem, se
sentem e se comportam como uma só gente, pertencente a uma mesma etnia.
Vale dizer, uma entidade nacional distinta de quantas haja, que fala
uma mesma língua, só diferenciada por sotaques regionais, menos
remarcados que os dialetos de Portugal. Participando de um corpo de
tradições comuns mais significativo para todos que cada uma das
variantes subculturais que diferenciaram os habitantes de uma região, os
membros de uma classe ou descendentes de uma das matrizes formativas.
Mais que uma simples etnia, porém, o Brasil é uma etnia nacional, um
povo-nação, assentado num território próprio e enquadrado dentro de um
mesmo Estado para nele viver seu destino. Ao contrário da Espanha, na
Europa, ou da Guatemala, na América, por exemplo, que são sociedades
multiétnicas regidas por Estados unitários e, por isso mesmo,
dilaceradas por conflitos interétnicos, os brasileiros se integram em
uma única etnia nacional, constituindo assim um só povo incorporado em
uma nação unificada, num Estado uniétnico. A única exceção são as
múltiplas microetnias tribais, tão imponderáveis que sua existência não
afeta o destino nacional.
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