por
Santiago Zabala*
Ler
Marx e escrever sobre Marx não faz de ninguém comunista, mas a
evidência de que tantos importantes filósofos estão reavaliando as
ideias de Marx com certeza significa alguma coisa.
Depois
da crise econômica global que começou no outono de 2008, voltaram a
aparecer nas livrarias novas edições de textos de Marx, além de
introduções, biografias e novas interpretações do mestre alemão.
Por mais que essa ressurreição[2]tenha
sido provocada pelo derretimento financeiro global, para o qual não
faltou a empenhada colaboração de governos democráticos na Europa e nos
EUA, esse ressurgimento[3]de Marx entre os filósofos não é consequência nem simples nem óbvia, como creem alguns.
Afinal, já no início dos anos 1990s, Jacques Derrida[4],
importante filósofo francês, previu que o mundo procuraria novamente
por Marx. A previsão certeira apareceu na resposta que Derrida escreveu a
uma autoproclamada “vitória neoliberal” e ao “fim da história”
inventados por Francis Fukuyama.
Contra as previsões de Fukuyama, o movimento Occupy e
a Primavera Árabe demonstraram que a história já caminha por novos
tempos e vias, indiferente aos paradigmas econômico, neoliberal e
internacional sob os quais vivem alguns. Vários importantes pensadores
comunistas (Judith Balso, Bruno Bosteels, Susan Buck-Mors, Jodi Dean,
Terry Eagleton, Jean-Luc Nancy, Jacques Rancière, dentre outros), dos
quais Slavoj Zizek é o que mais aparece, já operam para ver e mostrar
como esses novos tempos são descritos em termos comunistas, quer dizer,
como via de ação radical.
O movimento acontece não só em conferências de repercussão planetária em Londres[5], Paris[6], Berlin[7]e New York[8](com participação de milhares de professores, alunos e ativistas) mas também na edição de livros que se convertem em best-sellers globais como Império [9] de Toni Negri e Michael Hardt, A Hipótese Comunista [10] de Alain Badiou e Ecce Comu [11] de
Gianni Vattimo, dentre outros. Embora nem todos esses filósofos
apresentem-se como comunistas – não, com certeza, como o mesmo tipo de
comunista – a evidência de que o pensamento comunista está no centro de
seu trabalho intelectual autoriza a perguntar por que há hoje tantos
filósofos comunistas tão ativos.
A ressurgência do marxismo
Evidentemente,
nessas conferências e nesses livros, o comunismo não é proposto como
programa para partidos políticos, para que reproduzam regimes
historicamente superados; é proposto como resposta existencial à atual
catástrofe neoliberal global.
A
correlação entre existência e filosofia é constitutiva, não só da
maioria das tradições filosóficas, mas também das tradições políticas,
no que tenham a ver com a responsabilidade sobre o bem-estar existencial
dos seres humanos. Afinal, a política não é apenas instrumento posto a
serviço da vida burocrática diária dos governos. Mais importante do que
isso, a política existe para oferecer guia confiável rumo a uma
existência mais plena. Mas quando essa e outras obrigações da política
deixam de ser cumpridas pelos políticos profissionais, os filósofos
tendem a tornar-se mais existenciais, vale dizer, tendem a questionar a
realidade e a propor alternativas.
Foi
o que aconteceu no início do século 20, quando Oswald Spengler, Karl
Popper e outros filósofos começaram a chamar a atenção para os perigos
da racionalização cega de todos os campos da atividade humana e de uma
industrialização sem limites em todo o planeta. Mas a política, em vez
de resistir à industrialização do homem e da vida humana, limitou-se a
seguir uma mesma lógica industrial. As consequências foram devastadoras,
como todos já sabemos.
Hoje,
as coisas não são essencialmente diferentes, se se consideram os
efeitos igualmente calamitosos do neoliberalismo. Apesar do discurso
triunfalista do neoliberalismo, a crise das finanças globais neoliberais
do início do século 21 serviu para mostrar que nunca as diferenças de
bem-estar material foram maiores ou mais claras que hoje: a população
que vive em favelas urbanas alcança hoje a cifra espantosa de 25 milhões
de pessoas; e a devastação dos recursos naturais do planeta já provoca
efeitos assustadores em todo o mundo, tão devastadores que, em alguns
casos, já não há remédio possível.
Por isso tudo, relatório recente do Ministério da Defesa da Grã-Bretanha[12]previa,
além de uma ressurgência de “ideologias anticapitalistas, possivelmente
associadas movimentos religiosos, anarquistas ou nihilistas, também
movimentos associados ao populismo; além do renascimento do marxismo".
Essa ressurgência do marxismo é consequência direta da aniquilação das
condições de existência humana resultantes do capitalismo neoliberal
como o conhecemos.
O que é “comunismo”?
Por
mais que a palavra “comunista” tenha adquirido inumeráveis diferentes
significados ao longo da história, na opinião pública atual significa,
além de uma espécie de relíquia, também um sistema político cujos
componentes culturais, sociais e econômicos são todos controlados pelo
estado.
Por
mais que talvez seja o caso em alguns países, para a maioria dos
filósofos e pensadores contemporâneos esse significado é insuficiente,
está superado, é efeito de propaganda massiva e, sobretudo, é
diariamente desmentido pela evidência de que o mundo não estaria vivendo
uma “ressurgência” do marxismo, se o comunismo marxista fosse apenas
isso.
Como
diz Zizek, “o comunismo de estado não funcionou, não por fracasso do
comunismo, mas por causa do fracasso das políticas antiestatizantes,
porque não se conseguiu quebrar as limitações que o estado impôs ao
comunismo, porque não se substituíram as formas de organização do estado
por formas “diretas” não representativas de auto-organização social”.
O
comunismo, como ideário antiestatizante das oportunidades realmente
iguais para todos, é hoje a melhor orientação, o melhor guia, a melhor
ideia, a melhor hipótese para os movimentos políticos libertários
antipoder, como os que nasceram dos protestos em Seattle (1999),
Cochabamba (2000) e Barcelona (2011).
Por
mais que esses movimentos lutem em nome de causas e valores específicos
e diferentes entre eles (contra a globalização econômica
desigualitária, contra a privatização da água, contra políticas
financeiras danosas), todos lutam contra o mesmo adversário: o sistema
de distribuição não igualitária da propriedade, em democracias
organizadas pelos princípios impositivos do capitalismo.
Como
o demonstram a pobreza sempre crescente e o inchaço das favelas, o
modelo de capitalismo que conhecemos foi o que sobrou, depois de todas
as tentativas que o capitalismo empreendeu antes da mais recente, e que
fracassaram todas, uma depois da outra. Desses diferentes e variados
fracassos, brotaram diferentes e variados comunistas.
Comunismo e democracia
Em resumo, enquanto Negri e Hardt[13]buscam
no “comum” (quer dizer, nos modos pelos quais a propriedade pública
imaterial pode ser propriedade dos muitos), e Badiou busca nas
insurreições (em ações como a da Comuna de Paris)[14],
a possibilidade de se alcançarem “formas de auto-organização” não
estatais, quer dizer, a possibilidade de formas comunistas, Vattimo (e
eu)[15]sugerimos
que todos examinemos os novos líderes democraticamente eleitos na
Venezuela, Bolívia e outros países latino-americanos.[16]
Se
esses líderes conseguiram chegar ao governo e começar a construir
políticas comunistas sem insurreições violentas, não foi por terem
chegado ao mundo político armados por fortes conteúdos teóricos ou
programáticos; de fato, só levaram para dentro do poder de governos de
seus respectivos países as suas próprias respectivas fraquezas.
Diferente da agenda pregada pelo “socialismo científico”, o comunismo “fraco” (também chamado “hermenêutico”[17]) abraçou não só a causa ecológica[18]do
des-crescimento, mas também a causa da descentralização do sistema
burocrático estatal, de modo a permitir que se constituam conselhos
independentes locais, que estimulam o envolvimento das comunidades.
Que
ninguém se surpreenda pois se muitos outros filósofos continuarem a
aproximar-se e reaproximar-se do comunismo como resposta às políticas
neoliberais de destruição da vida e da felicidade pessoais e sociais, e
se virem, como nós vimos, a alternativa[19]que
se constrói na América Latina. Especialmente, porque as nações
latino-americanas demonstraram que os comunistas podem ter acesso ao
poder também pelas vias formais da democracia.
Notas e “links” de referência
[9] Império, 2005, Rio de Janeiro: Ed. Record, 501 p.
[10] A hipótese comunista, 2012, São Paulo: Boitempo Editorial, 152 p.
[17] Hermenêutico: adj. Relativo à interpretação dos textos, do sentido das palavras. (...)3) Rubrica: semiologia. Teoria, ciência voltada à interpretação dos signos e de seu valor simbólico. Obs.: cf. semiologia 4) Rubrica: termo jurídico. Conjunto de regras e princípios usados na interpretação do texto legal (...). Etimologia: gr. herméneutikê (sc. tékhné) “arte de interpretar”, herméneutikós,ê,ón “relativo a interpretação, próprio para fazer compreender” [NTs, com verbete HERMENÊUTICA do Dicionário Houaiss,
*Santiago Zabala é pesquisador e professor de filosofia da Institució
Catalana de Recerca i Estudis Avançats, ICREA [1], da Universidade de
Barcelona. É autor, dentre outros trabalhos, de The Hermeneutic Nature
of Analytic Philosophy (2008), The Remains of Being (2009), e, mais
recentemente, com G. Vattimo, Hermeneutic Communism (2011), todos
publicados pela Columbia University Press.
Fonte:http://redecastorphoto.blogspot.com.br/2012/07/por-que-tantos-filosofos-comunistas.html?utm_source=feedburner&utm_medium=feed&utm_campaign=Feed%3A+redecastorphoto+%28redecastorphoto%29