Justiça reconhece fraude na privatização da Vale
Maíra Kubík Mano, via Blogão dos Lagos
Se você tivesse um cacho de bananas que valesse R$9,00, você o colocaria
à venda por R$0,30? Óbvio que não. Mas foi isso que o governo federal
fez na venda de 41% das ações da Companhia Vale do Rio Doce para
investidores do setor privado, em 1997. Eles pagaram R$3,3 bilhões por
uma empresa que vale perto de R$100 bilhões. Quase dez anos depois, a
privatização da maior exportadora e produtora de ferro do mundo pode ser
revertida.
Em 16 de dezembro do ano passado, a juíza Selene Maria de Almeida, do
Tribunal Regional Federal (TRF) de Brasília, anulou a decisão judicial
anterior e reabriu o caso, possibilitando a revisão do processo. “A
verdade histórica é que as privatizações ocorreram, em regra, a preços
baixos e os compradores foram financiados com dinheiro público”, afirma
Selene. Sua posição foi referendada pelos juízes Vallisney de Souza
Oliveira e Marcelo Albernaz, que compõem com ela a 5ª turma do TRF.
Entre os réus estão a União, o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento
Econômico e Social) e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Eles
são acusados de subvalorizar a companhia na época de sua venda. Segundo
as denúncias, em maio de 1995 a Vale informou à Securities and Exchange
Comission, entidade que fiscaliza o mercado acionário dos Estados
Unidos, que suas reversas de minério de ferro em Minas Gerais eram de
7.918 bilhões de toneladas. No edital de privatização, apenas dois anos
depois, a companhia disse ter somente 1,4 bilhão de toneladas. O mesmo
ocorre com as minas de ferro no Pará, que em 1995 somavam 4,97 bilhões
de toneladas e foram apresentadas no edital como sendo apenas 1,8 bilhão
de toneladas.
Outro ponto polêmico é o envolvimento da corretora Merrill Lynch,
contratada para avaliar o patrimônio da empresa e calcular o preço de
venda. Acusada de repassar informações estratégicas aos compradores
meses antes do leilão, ela também participou indiretamente da
concorrência por meio do grupo Anglo American. De acordo com o TRF, isso
comprometeu a imparcialidade da venda.
A mesma Merrill Lynch, na privatização da Yacimientos Petrolíferos
Fiscales (YPF) da Argentina, reduziu as reservas declaradas de petróleo
de 2,2 bilhões de barris para 1,7 bilhão.
Nova perícia
Depois da venda da Vale, muitas ações populares foram abertas para
questionar o processo. Reunidas em Belém do Pará, local onde a empresa
está situada, as ações foram julgadas por Francisco de Assis Castro
Júnior em 2002. “O juiz extinguiu todas as ações sem apreciação do
mérito. Sem olhar para tudo aquilo que nós tínhamos dito e alegado.
Disse que o fato já estava consumado e que agora analisar todos aqueles
argumentos poderiam significar um prejuízo à nação”, afirma a deputada
federal doutora Clair da Flora Martins (PT/PR).
O Ministério Público entrou com um recurso junto ao TRF de Brasília, que
foi julgado no ano passado. A sentença determinou a realização de uma
perícia para reavaliar a venda da Vale. No próximo passo do processo, as
ações voltam para o Pará e serão novamente julgadas. Novas provas
poderão ser apresentadas e os réus terão que se defender.
Para dar visibilidade à decisão judicial, será criada na Câmara dos
Deputados a Frente Parlamentar em Defesa do Patrimônio Público. A
primeira ação é mobilizar a sociedade para discutir a privatização da
Vale. “Já temos comitês populares em São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná,
Pará, Espírito Santo, Minas Gerais e Mato Grosso”, relata a deputada,
uma das articuladoras da frente.
“Precisamos construir um processo de compreensão em cima da anulação da
venda da Vale, conhecer os marcos gerais dessas ideias a partir do que
se tem, que é uma ação judicial, e compreendê-la dentro de um aspecto
mais geral, que é o tema da soberania nacional”, acredita Charles
Trocate, integrante da direção nacional do MST. Ele participa do Comitê
Popular do Pará, região que tem forte presença da Vale.
Entre os marcos da privatização, que serão estudados e debatidos nos
próximos meses nos comitês, está o Plano Nacional de Desestatização, de
julho de 1995. A venda do patrimônio da Vale fez parte de uma estratégia
econômica para diminuir o déficit público e ampliar o investimento em
saúde, educação e outras áreas sociais. Cerca de 70% do patrimônio
estatal foi comercializado por R$60 milhões, segundo o governo.
“Vendendo a Vale, nosso povo vai ser mais feliz, vai haver mais comida
no prato do trabalhador”, disse o ex-presidente Fernando Henrique
Cardoso em 1996. A dívida interna, entretanto, não diminuiu: entre 1995 e
2002 ela cresceu de R$108 bilhões para R$654 bilhões.
Na época, a União declarou que a companhia não custava um centavo ao
Tesouro Nacional, mas também não rendia nada. “A empresa é medíocre no
contexto internacional. É uma péssima aplicação financeira. Sua
privatização é um teste de firmeza e determinação do governo na
modernização do Estado”, afirmou o deputado Roberto Campos (PPB/SP) em
1997. No entanto, segundo os dados do processo, o governo investiu
R$2,71 bilhões durante toda a história da Vale e retirou R$3,8 bilhões, o
que comprova o lucro.
“O governo que concordou com essa iniciativa não tinha compromisso com os interesses nacionais”, diz a deputada doutora Clair.
Poder de Estado
A Vale se tornou uma poderosa força privada. Hoje ela é a companhia que
mais contribui para o superávit da balança comercial brasileira, com 54
empresas próprias nas áreas de indústria, transporte e agricultura.
“Aqui na região de Eldorado dos Carajás (PA), a Vale sequestra todo
mundo: governos municipais e governo estadual. Como o seu Produto
Interno Bruto é quatro vezes o PIB do estado Pará, ela se tornou o
estado econômico que colonizou o estado da política. Tudo está em função
de seus interesses”, coloca Charles Trocate.
Trocate vivência diariamente as atividades da empresa no Pará e a acusa
de gerar bolsões de pobreza, causados pelo desemprego em massa,
desrespeitar o meio ambiente e expulsar sem-terra e indígenas de suas
áreas originais.
“Antes da privatização, a Vale já construía suas contradições. Nós temos
clareza de que a luta agora é muito mais ampla. Nesse processo de
reestatização, vamos tentar deixar mais claro quais são as mudanças que a
empresa precisa fazer para ter uma convivência mais sadia com a
sociedade na região”, diz Trocate. De acordo com um levantamento do
Instituto Ipsos Public Affairs, realizado em junho de 2006, a
perspectiva é boa: mais de 60% dos brasileiros defendem a nacionalização
dos recursos naturais e 74% querem o controle das multinacionais.
Patrimônio da Vale em 1996
● maior produtora de alumínio e ouro da América Latina
● maior frota de navios graneleiros do mundo
● 1.800 quilômetros de ferrovias brasileiras
● 41 bilhões de toneladas de minério de ferro
● 994 milhões de toneladas de minério de cobre
● 678 milhões de toneladas de bauxita
● 67 milhões de toneladas de caulim
● 72 milhões de toneladas de manganês
● 70 milhões de toneladas de níquel
● 122 milhões de toneladas de potássio
● 9 milhões de toneladas de zinco
● 1,8 milhão de toneladas de urânio
● 1 milhão de toneladas de titânio
● 510 mil toneladas de tungstênio
● 60 mil toneladas de nióbio
● 563 toneladas de ouro
● 580 mil hectares de florestas replantadas, com matéria-prima para a produção de 400 mil toneladas/ano de celulose
Fonte: Revista Dossiê Atenção – “Porque a venda da Vale é um mau negócio
para o país”, fls. 282/292, da Ação Popular nº 1997.39.00.011542-7/PA.
Quanto vale hoje
● 33 mil empregados próprios
● participação de 11% do mercado transoceânico de manganês e ferro-liga
● suas reservas de minério de ferro são suficientes para manter os níveis atuais de produção pelos próximos 30 anos
● possui 11% das reservas mundiais estimadas de bauxita
● é o mais importante investidor do setor de logística no Brasil, sendo
responsável por 16% da movimentação de cargas do Brasil, 65% da
movimentação portuária de granéis sólidos e cerca de 39% da movimentação
do comércio exterior nacional
● possui a maior malha ferroviária do país
● maior consumidora de energia elétrica do país
● possui atividades na América, Europa, África, Ásia e Oceania
● concessões, por tempo ilimitado, para realizar pesquisas e explorar o
subsolo em 23 milhões de hectares do território brasileiro (área
correspondente aos territórios dos estados de Pernambuco, Alagoas,
Sergipe, Paraíba e Rio Grande do Norte)
Fonte: 5ª Turma do TRF da 1ª Região